terça-feira, 31 de agosto de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Setor produtivo deve firmar compromisso com a democracia

O Globo

Teria sido oportuno o manifesto do setor produtivo em defesa da Constituição e do equilíbrio entre os Poderes da República. O documento vinha sendo escrito nos últimos dias como tentativa de transmitir um recado claro de compromisso do empresariado com a democracia diante dos acenos golpistas do presidente Jair Bolsonaro. Foi adiado depois da conversa entre os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf. No começo de agosto, economistas, banqueiros e empresários assinaram um documento defendendo as instituições. O manifesto avançava ao somar à assinatura de cidadãos a de entidades. O peso é outro.

Intitulada “A Praça é dos Três Poderes”, a versão do texto a que o GLOBO teve acesso não tem nenhum caráter partidário. Não faz menção à absurda campanha de desinformação contra o voto eletrônico nem às sucessivas ameaças de Bolsonaro a integrantes do Supremo. Reitera apenas que o princípio da harmonia entre os Poderes “está presente de forma clara na Constituição Federal, pilar do ordenamento jurídico do país”. “Diante disso”, prossegue o texto, “é primordial que todos os ocupantes de cargos relevantes da República sigam o que a Constituição nos impõe”. Em seguida, o documento lembra que “o momento exige de todos serenidade, diálogo, pacificação política, estabilidade institucional e, sobretudo, foco em ações e medidas urgentes e necessárias para que o Brasil supere a pandemia, volte a crescer, a gerar empregos e assim possa reduzir as carências sociais que atingem amplos segmentos da população”. E conclui: “Que cada um atue com responsabilidade nos limites de sua competência, obedecidos os preceitos estabelecidos em nossa Carta Magna. Este é o anseio da Nação brasileira”. Nada além de bom senso e serenidade.

Até domingo, 200 entidades haviam aderido ao texto, entre elas a Fiesp e a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). A decisão de Skaf de adiá-lo até as manifestações marcadas para o Sete de Setembro é um erro que enfureceu representantes do setor privado. Revela uma falta de convicção inaceitável. É como se desse para transigir no compromisso com a democracia diante dos humores das ruas ou se ele pudesse flutuar ao sabor da conveniência política.

Mais vexaminosa foi a movimentação de dirigentes do Banco do Brasil e da Caixa para pressionar a Febraban a boicotar o manifesto. Eles ameaçaram abandonar a instituição que ajudaram a fundar em 1967. Mostraram estar mais preocupados em manter lealdade a Bolsonaro que com o zelo pelas regras democráticas, essenciais para garantir o patrimônio de seus acionistas.

A passividade diante da crise institucional, cujos contornos têm piorado a cada semana, é um mal que o setor produtivo deveria ajudar a combater. Os efeitos da tensão política são perceptíveis na cotação do dólar, nos preços da gasolina e dos alimentos e na dificuldade para debelar o risco de crise energética. As ameaças de Bolsonaro contribuem para o impasse na tramitação de reformas que destravariam o investimento. Democracia não é só um valor essencial à sociedade e aos cidadãos, mas está também na base da estabilidade e do crescimento econômico. Em sua defesa, não há espaço para tibieza nem margem para hesitação. O país exige do empresariado e do setor produtivo um compromisso inequívoco com os valores democráticos.

É descabido e sem sentido aprovar uma nova lei contra o terrorismo

O Globo

É descabida e sem sentido a tentativa da bancada bolsonarista de aproveitar a vitória do Talibã no Afeganistão para aprovar um projeto de lei contra o terrorismo que começou a tramitar na Câmara há cinco anos por iniciativa do então deputado Jair Bolsonaro. Sem justificativa plausível, a proposta estabeleceria no Brasil, sob o pretexto de garantia da segurança, uma estrutura inédita de violação das liberdades individuais.

Não é que o Brasil seja imune à ação do terrorismo. Ataques em países vizinhos, em particular Argentina, Peru e Colômbia, demonstram que a América Latina também é um terreno fértil para o florescimento do terror. A Polícia Federal já desbaratou células jihadistas por aqui e mantém cooperação estreita com autoridades internacionais especializadas na prevenção de atentados.

Mas o Congresso Nacional já aprovou, em 2016, uma lei satisfatória que caracteriza o crime de terrorismo nos moldes das convenções internacionais de que o Brasil é signatário. Naquele mesmo ano, a legislação foi usada para denunciar um grupo que planejava atentados na Olimpíada do Rio. O que a nova proposta, de autoria do deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), faz é ampliar de modo insólito as garras do Estado criando uma Política Nacional Contraterrorista, um Sistema Nacional Contraterrorista, uma Autoridade Nacional Contraterrorista e uma Autoridade Militar Contraterrorista. O que tudo isso significa na prática não está claro.

Numa série de formulações vagas, o projeto legaliza práticas como uso de identidade falsa, infiltração em movimentos considerados terroristas, monitoramento sigiloso de comunicações com maior facilidade, além de isentar de responsabilidade os agentes públicos que porventura atirarem com resultado “diferente do desejado” ou cometerem atos que noutras situações seriam classificados como crimes. Organizações de direitos humanos definem esse tipo de autorização como uma “licença para matar”.

É comum, entre os críticos do projeto, o temor de que ele seja usado para “criminalizar movimentos sociais”. O risco mais preocupante, contudo, é outro: criar uma força paraestatal usada pelo governo de modo abusivo. Em países onde o combate ao terrorismo é política de Estado consolidada, costuma haver, além da supervisão rígida do Judiciário, uma estrutura de vigilância do Legislativo sobre o aparato encarregado dessa tarefa. Foi um relatório do Senado americano que desmascarou os abusos e a ineficácia das “técnicas de interrogatório aprimoradas” — eufemismo para tortura —, adotadas em instalações secretas da CIA depois do 11 de Setembro.

Felizmente, o Brasil foi até hoje poupado de atentados terroristas de vulto. É fundamental que tenhamos capacidade de reação e combate ao terror proporcional à dimensão da ameaça que sofremos. E que evitemos os erros cometidos por outros países, onde o combate ao terrorismo se tornou um pretexto para práticas arbitrárias e desumanas.

Tensão no mercado desafia gestão da dívida mobiliária

Valor Econômico

Clima adverso pode se acentuar no próximo ano, diante da proximidade das eleições

A virada do semestre marcou uma mudança de cenário que tornou mais desafiadora a administração da dívida mobiliária federal. O acirramento das tensões políticas, as dúvidas a respeito da disciplina fiscal e a trajetória de alta dos juros obrigaram o Tesouro a reformular a estratégia na venda de títulos para rolar a montanha crescente da dívida pública, que encostou nos R$ 5,4 trilhões. Apesar das providências tomadas, foi inevitável pagar mais caro e mudar o mix de títulos oferecidos para levantar mais recursos. A perspectiva é que esse é apenas o início de uma nova realidade que vai marcar os próximos meses.

O quadro começou a mudar quando o presidente Jair Bolsonaro revelou a disposição de vencer as próximas eleições a qualquer preço, ao acentuar o tom das críticas ao sistema de votação com urnas eletrônicas e ao Judiciário. A disposição também ficou evidente no projeto de ampliação do alcance do Bolsa Família e do aumento do benefício pago para conquistar os votos desse segmento da população, mesmo às custas de driblar as regras fiscais, como o teto de gastos. Isso ficou claro na proposta de parcelar o pagamento dos precatórios devidos pela União. Para complicar, tudo isso aconteceu em momento de escalada da inflação que obrigou o Comitê de Política Monetária do Banco Central (BC) a elevar os juros, que mais do que dobraram de 2% no início do ano para os atuais 5,25%.

As repercussões na administração da dívida pública foram inevitáveis. O reflexo mais negativo foi o encarecimento da rolagem dos papéis. O custo médio das emissões subiu a 6,1% ao ano em julho, de acordo com dados divulgados pelo Tesouro na semana passada, acima dos 5,8% ao ano de junho e quase dois pontos acima dos 4,4% de dezembro, então calculados por outra metodologia.

O custo médio acumulado em 12 meses do estoque dessa dívida também subiu, de 7,2% em junho para 7,6% em julho, perdendo parte da economia feita no início do ano, depois de ter chegado a 8,4% em dezembro.

O aumento no custo de rolagem da dívida mobiliária é consequência da mudança no mix de títulos públicos oferecidos e da oferta de juros maiores diante da piora de humor do mercado. Em julho, as emissões somaram R$ 142,4 bilhões para fazer frente a resgates de R$ 118,1 bilhões, com saldo líquido de R$ 24,4 bilhões. A venda de títulos prefixados foi reduzida e sua participação caiu de 33,3% para 32,1%. Por outro lado, aumentou a participação dos títulos atrelados a índice de preços, de 27,1% para 27,6%, com a previsão da tendência de alta da inflação; e dos títulos pós-fixados, indexados à Selic, de 35,1% para 35,7%.

Não houve mudanças significativas na relação dos principais compradores dos títulos públicos. Os maiores seguem sendo as instituições financeiras, que concentraram 30,8% das compras em julho, um ponto a mais do que os 29,6% de dezembro. Os fundos de investimento ficam em segundo lugar com 9,7%, acima dos 9,2% de dezembro; e a previdência vem a seguir, com 22,3%, pouco menos do que os 22,7% do fim do ano. Já o investidor estrangeiro teve participação de 9,7%, acima dos 9,2% de dezembro.

Nos leilões do Tesouro realizados até o fim da terceira semana de agosto, as tendências se acentuaram, com a pressão cada vez maior no mercado futuro de juros. A participação relativa das LFTs, indexadas à taxa Selic, atingiu 49%, bem acima dos 33% da fatia das NTN-Bs, atrelados ao IPCA; e despencou praticamente pela metade a dos prefixados (LTNs e NTN-Fs), para 18%.

Para tentar acalmar o mercado, o Tesouro disse ter um colchão de liquidez de R$ 1,159 trilhão, apenas ligeiramente inferior ao R$ 1,167 trilhão de junho. A reserva é suficiente para cobrir quase totalmente os vencimentos dos próximos dez meses à frente, que somam R$ 1,2 trilhão. Até agora, a rolagem tem superado os vencimentos em 20%. Além disso, o BC acelerou o projeto de criação dos depósitos remunerados voluntários, que podem jogar luz nas operações compromissadas, que beiram R$ 1 trilhão, e limpar a contabilidade da dívida mobiliária, embora há quem avalie que a medida pode abrir espaço para um endividamento disfarçado.

Tudo indica que o clima de tensão persistirá no mercado financeiro e até pode se acentuar no próximo ano, diante da proximidade das eleições, testando as habilidades do Tesouro. Daí a importância da manutenção do colchão de liquidez do Tesouro, o que lhe dá mais margem de manobra.

Desfecho inglório

Folha de S. Paulo

Aposta de Biden é de que danos à imagem na saída do Afeganistão serão absorvidos

A mais longa guerra já travada pela maior potência militar da história acabou oficialmente nesta segunda (30), quando o último avião de transporte americano deixou Cabul com as forças remanescentes da caótica retirada após duas décadas de presença no país asiático.

O quanto as imagens de caos e desespero na pista do aeroporto da capital afegã, os mortos estrangeiros e americanos no grande atentado da quinta (26) e a humilhação de mais uma derrota pesarão para Joe Biden é incerto.

Evidente no momento é o fim da lua de mel entre o presidente e o eleitorado que se cansou de Donald Trump em novembro de 2020, como a queda da popularidade do democrata para o pior nível desde sua posse atesta.

O desempenho do presidente, que se amparava no aferível fastio americano ante uma guerra insolúvel, mostrou-se desastrado durante toda a crise terminal afegã.

Primeiro, acelerou a saída confiando que as Forças Armadas de Cabul segurariam o Talibã ao menos por algum tempo. A ofensiva final dos fundamentalistas engoliu o país em duas semanas.

Depois, conduziu uma retirada complexa sem um plano coerente em mãos, gerando uma crise humanitária instantânea. Para piorar, revelou a inexistência de empatia em seus comentários sobre o desenrolar da crise.

Na semana passada, ainda viu quase 200 pessoas morrerem pelas mãos de um inimigo do qual poucos haviam ouvido falar. E 13 delas voltaram aos EUA em caixões enrolados em bandeiras.

Como se não bastasse, Biden tem sua retórica triunfalista sobre a Covid-19 desafiada pelo avanço da variante delta e, numa sinistra coincidência, precisa lidar com um furacão em Louisiana —a mancha da crise do Katrina em 2005 para o homem que começou a guerra ora finda, George W. Bush, foi indelével.

Seus rivais republicanos afiam as facas, de olho nas eleições congressuais do ano que vem. Limitados conceitualmente, já que a retirada afegã foi arquitetada por Trump, deverão focar o aspecto de competência gerencial.

O democrata parece disposto a pagar a aposta, cioso da curta extensão da memória do eleitorado e colocando mais peso no apoio que a retirada galvanizou.

Os EUA de 2021 não estão lidando com um trauma nacional da magnitude da derrota no Vietnã, em 1975. A velocidade da sociedade interconectada e o cinismo de quem se acostumou a perder guerras sem ameaças existenciais consequentes fazem o resto.

Pode dar certo para Biden, a depender da eficácia dos oponentes em denunciá-lo ao eleitorado pendular que define pleitos. Ou poderá ser, na pior hipótese, a sua Saigon.

A ideia fixa de Lula

Folha de S. Paulo

Com fala que soa a tentação autoritária, petista insiste na regulação da mídia

Em pré-campanha à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva volta a se equilibrar entre as exigências da política real e as bandeiras destinadas a mobilizar a militância petista. Enquanto viaja pelo país a restabelecer pontes com forças até outro dia tratadas como golpistas, achou tempo para retomar a cantilena da regulação da mídia.

A bem da verdade, esse é um tema em que as preferências do pragmático cacique e das correntes ideológicas da sigla coincidem. Lula convive mal com a crítica e a cobrança, que dirá com o relato de desmandos, e correligionários ambicionam aplicar suas teses dirigistas aos meios de comunicação.

Não se sabe ao certo qual é a proposta desta vez. Em declarações recentes, o ex-presidente citou como argumento uma suposta perseguição da imprensa ao venezuelano Hugo Chávez, numa total inversão dos fatos. Vangloriou-se, em outro momento, de que seu governo multiplicou o número de veículos beneficiários de verbas públicas.

Disse que não deseja o modelo cubano ou chinês de regulação, mas o inglês ou o alemão. E defendeu normas para que a internet “se transforme em uma coisa do bem”.

Nessa mixórdia não se compreende se o plano é combater monopólios, um objetivo correto, usar dinheiro do Estado para favorecer coberturas favoráveis, uma má política, ou intervir sobre conteúdos —o que é inadmissível.

Em seu governo Lula tentou criar um tal Conselho Federal de Jornalismo, voltado a “orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista e da atividade do jornalismo”. A propositura, enterrada pelo Congresso, mal disfarçava suas intenções censórias.

A Constituição já estabelece com clareza o que é relevante para a atividade jornalística —garantia da livre manifestação de pensamento e do acesso à informação, tendo como contrapartidas o direito de resposta e indenizações por eventuais danos provocados.

Profissionais e veículos estão sujeitos aos rigores da lei em casos de erros, abusos e condutas delituosas. Descabida é a censura prévia, deploravelmente ainda encontradiça em decisões judiciais como as que nos últimos dias atingiram O Globo, Piauí e RBS TV.

É também desejável, como defende esta Folha, que jornais articulem alguma instância de autorregulamentação, como no setor publicitário. Para além disso, discursos tortuosos e propostas obscuras soam a tentação autoritária.

O Supremo e as terras indígenas

O Estado de S. Paulo

A solução para a questão das terras indígenas foi dada pela Assembleia Constituinte. Cabe ao Supremo Tribunal Federal aplicá-la

Em tempos de debate acirrado sobre o papel e os limites do Supremo Tribunal Federal (STF), a Corte retoma nesta semana um julgamento que tem despertado especial atenção. Trata-se do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 que, sob o pretexto de discutir a reintegração de posse de uma área em Santa Catarina, tenta reabrir a questão da demarcação das terras indígenas. O tema exige especial prudência, seja por respeito à Constituição, seja por suas muitas implicações sociais, políticas e econômicas.

Chama a atenção, em primeiro lugar, o tratamento desvirtuado que alguns têm dado ao caso, como se fosse uma manobra de produtores rurais para que o Supremo negue ou restrinja um direito previsto na Constituição. Nada mais distante disso. O recurso foi apresentado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e envolve uma área de proteção ambiental cuja posse foi atribuída ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina. É essa a área que a Comunidade Indígena Xokleng pleiteia.

Resistindo à pretensão de alguns para transformar a disputa numa questão política, cabe ao STF aplicar a Constituição. “São reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, diz o art. 231.

Os índios não têm direito sobre qualquer terra que eventualmente venham a ocupar, e sim “as terras que tradicionalmente ocupam”. Além disso, para pacificar discussões que poderiam surgir, a própria Assembleia Constituinte definiu que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Em 2009, o Supremo tratou longamente da questão, no julgamento sobre a Reserva Raposa Serra do Sol. O acórdão não apenas pacificou uma disputa que vinha desde os anos de 1970, mas definiu as diretrizes a serem seguidas em todos os processos de demarcação de terras indígenas em curso. Por sua relevância, foi chamado de “estatuto das reservas indígenas”.

Em seu voto, o relator daquela ação, ministro Ayres Britto, lembrou “que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, ‘dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam’. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena”.

A Constituição de 1988 não veio estimular indefinidamente a criação de novas reservas ou favorecer a proliferação de novos conflitos sobre o tema. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu art. 67, indica precisamente que “a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. O texto constitucional tem, assim, um nítido sentido de pacificação, com precisa limitação temporal.

Por mais que agora determinados movimentos sociais façam barulho – tem gente alardeando que não aceitará decisão do Supremo contrária a seus interesses –, a revogação do chamado marco temporal não é uma medida que esteja à disposição do Supremo, como se coubesse à Corte redigir os direitos indígenas.

A solução para a questão das terras indígenas foi dada pela Assembleia Constituinte, dentro do expresso objetivo de pacificar os conflitos. Cabe ao Supremo aplicá-la, sem ter a pretensão de inventar um novo ajuste. Além de extrapolar suas competências, uma medida à margem da Constituição suscitaria novas e infindáveis disputas.

Sem dinheiro para fuzil

O Estado de S. Paulo

Inflação alta e renda baixa impedem o povo de se armar como propõe Bolsonaro

Sai a inflação da pandemia, entra a inflação da seca, sem trégua para o consumidor, cada vez mais atormentado pelo custo da comida e pela conta de luz. O preço da alimentação subiu 1,17% em agosto, bem mais que no mês anterior, quando havia aumentado 0,59%, de acordo com a Fundação Getulio Vargas (FGV). Com a geração mais cara, a tarifa de eletricidade já aumentou duas vezes, 5,87% e 3,26%, e deve ser de novo reajustada em setembro, segundo avisou o governo. “Qual o problema de a conta de luz ficar um pouco mais cara?”, perguntou há poucos dias o ministro da Economia, Paulo Guedes. Não há problema, é claro, para quem tem a conta paga pelo Tesouro.

Com a cesta básica de alimentos e artigos de higiene e limpeza custando quase um salário mínimo, o brasileiro comum nem tem tempo para pensar na pergunta do ministro. Nem terá, ainda por muitos meses, se os fatos confirmarem as expectativas do mercado. As projeções colhidas em pesquisa do Banco Central (BC) apontam inflação de 7,27% em 2021 e de 3,95% em 2022. Os economistas do mercado elevaram sua projeção pela 21.ª semana consecutiva. As tensões políticas, a confusão, o populismo e a irresponsabilidade fiscal do presidente Jair Bolsonaro também afetam as expectativas, com ou sem pandemia e com mais ou menos chuva nas lavouras e no sistema de reservatórios.

A meta oficial de inflação deste ano é 3,75%. A do próximo é 3,50%. As duas serão amplamente superadas pela alta real de preços, de acordo com as previsões correntes. Em setembro, também segundo avaliação do mercado, o BC deve elevar os juros básicos de 5,25% para 6,25% ao ano, para tentar conter a inflação. A taxa deve atingir 7,50% até dezembro e continuar nesse nível durante um ano.

A elevação de juros, principal terapia anti-inflacionária do BC, começou há meses, mas sem efeito perceptível até agora. Para o consumidor o quadro tem piorado sem interrupção. No varejo, a comida encareceu 4,45% no ano e 11,44% em 12 meses, pelas contas da FGV. Os números são do Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M), formado por três itens – um indicador de preços por atacado, um de preços ao consumidor e um de custos da construção.

Durante algum tempo, a partir do ano passado, os preços foram impulsionados pela forte demanda global, sustentada inicialmente pela recuperação chinesa. As cotações internacionais já estão mais acomodadas, mas os preços têm sido afetados pela estiagem mais severa em 91 anos. Neste ano, os produtos agropecuários ficaram 16,54% mais caros, no atacado. Em 12 meses a alta chegou a 47,91%. Esses aumentos têm sido passados apenas em parte ao varejo e, portanto, ao comprador final, pressionado também pelo encarecimento do gás de cozinha, da eletricidade e da gasolina.

Para os mais pobres nem há como recompor as despesas. Não há como evitar, no caso desses consumidores, a mera redução de gastos essenciais.

Além da inflação e da renda curta, milhões ainda enfrentam as péssimas condições do mercado de trabalho, com alto desemprego e muita insegurança para quem tem a sorte de conseguir uma ocupação. Grande parte dos contratos é informal e sem garantias elementares para o assalariado.

O emprego continuará escasso enquanto faltarem melhores perspectivas econômicas. A economia deve crescer 5,22% neste ano, segundo a última projeção do mercado, e apenas 2% no próximo. Sem expectativa de atividade bem mais intensa, a procura de mão de obra só deverá melhorar lentamente. Mas os condutores da política econômica agem como se bastasse baratear a mão de obra para estimular contratações, mesmo sem previsão de aumento significativo e duradouro dos negócios.

Enquanto isso, o presidente recomenda a compra de fuzis e chama de idiota quem defende prioridade para o feijão. Mas é difícil achar um bom fuzil por menos de R$ 12 mil. É complicado atender o presidente, quando boa parte dos empregados mal consegue receber dois salários mínimos por mês. Seria o caso de decretar um grande aumento salarial para facilitar o acesso a armas de alta qualidade?

Terror em Araçatuba

O Estado de S. Paulo

Uma boa política de segurança pública é essencialmente preventiva

As Polícias Civil e Militar do Estado de São Paulo são as forças de segurança pública tidas como as mais bem preparadas e equipadas do País. Há razões para a boa reputação de ambas as instituições. Portanto, custa crer que, com os recursos humanos e materiais que têm à disposição, não tenham sido capazes de impedir uma ação criminosa como a que fez a população de Araçatuba, a 521 km da capital paulista, viver horas de terror na madrugada de domingo para segunda-feira.

Está claro que não houve um trabalho policial de inteligência – se houve, obviamente falhou – para evitar mais um assalto nos moldes do que ficou conhecido como “novo cangaço”, tipo de crime, cada vez mais ousado e violento, que tem levado pânico aos moradores de pequenas e médias cidades, principalmente nas Regiões Sul e Sudeste.

Uma quadrilha de pelo menos 15 bandidos fortemente armados invadiu a cidade do interior paulista para roubar três agências bancárias. Cerca de dez carros foram usados na ação, além de um caminhão e um carro-forte. Bombas foram espalhadas pelos criminosos em pontos específicos da cidade. Veículos foram incendiados para impedir a movimentação da polícia. Do alto, um dos bandidos monitorava por drone toda a circulação dos policiais locais, orientando a ação dos comparsas, tanto na chegada do comboio em Araçatuba como na fuga. Como se vê, trata-se de um crime planejado com tempo e minúcia, executado por profissionais que dispunham de meios que não são triviais nem mesmo em ações semelhantes. O mais chocante é que bancos federais que haviam recebido grandes reservas em numerário não comunicaram o fato à Polícia estadual para as devidas providências de resguardo e proteção.

De acordo com a Polícia Militar, três pessoas morreram, um bandido e dois moradores. Um destes foi o dono de um posto de gasolina sumariamente executado ao ser surpreendido filmando a ação dos criminosos. Um homem teve a perna decepada ao passar de bicicleta sobre um artefato explosivo deixado pelos bandidos.

Os criminosos tomaram moradores como reféns durante a fuga. Nas redes sociais, circulam vídeos de fileiras de civis que serviram como “escudo humano”, além de chocantes imagens de pessoas que foram amarradas nos tetos e capôs dos carros em fuga a fim de impedir uma reação mais incisiva dos policiais.

O prefeito de Araçatuba, Dilador Borges (PSDB), acionou o governador João Doria (PSDB) ainda durante a madrugada de segunda-feira. O governador determinou o reforço do contingente policial na cidade. Em entrevista à Rádio Eldorado, o porta-voz da Polícia Militar informou que 380 homens foram mobilizados para combater os criminosos. Além dos PMs locais, outros vieram de Bauru, São José do Rio Preto e Presidente Prudente. Dois bandidos foram presos até o momento.

A ação dos criminosos em Araçatuba deve ser rigorosamente investigada. Não se executa um assalto daquela magnitude, com tamanho desassombro, sem uma ampla rede de apoio, informacional, logístico e, sobretudo, financeiro. Especialistas em segurança pública estimam que o planejamento e a execução de um assalto como o que houve em Araçatuba não custam menos de R$ 1 milhão para os criminosos. Há quem forneça os meios materiais, como as armas, explosivos, veículos e equipamentos de comunicação. Há quem planeje e coordene a ação. Há quem proveja informações, tão valiosas neste tipo de crime. Como os bandidos sabiam que encontrariam grande quantidade de dinheiro nas agências atacadas? Como conheciam o dispositivo policial contra o qual teriam de lidar? Tudo deve ser apurado e os suspeitos devem ser investigados e julgados.

Poucas e efetivas ações podem ser implementadas para coibir este tipo de crime, que não necessariamente passam pelo reforço bélico das corporações, bem equipadas, como já dito. Estas ações vão desde o tingimento de cédulas até sofisticadas análises de serviços de inteligência. Uma boa política de segurança pública é essencialmente preventiva.

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