sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Pedro Doria - O golpista e o ridículo

O Globo / O Estado de S. Paulo

Existe um conhecimento de política que se adquire nos livros e na prática. E existe outro, que se aprende na internet. Que sempre se aprendeu, desde os anos 1990. Quem se informa sobre política debatendo na rede por muitos anos aprende alguns truques valiosos — como manipular grupos até criar consensos sobre determinados temas. Também aprende argumentos menos úteis do que parecem. Ocorre toda hora de alguém ser equiparado a Adolf Hitler ou de um acordo entre adversários ser comparado ao pacto entre o premiê britânico Neville Chamberlain e, claro, o próprio Hitler. Nestes últimos dias, o Palácio do Planalto usou fartamente um desses truques adquiridos na lição da política popular da internet: alargar a Janela de Overton. Mas, ao fazê-lo, não atentou para uma lição importante que só se aprende em livros. (E, sim, até o final desta coluna alguém terminará comparado a um fascista. Só não a Hitler.)

Joseph Overton foi um analista político americano, morto precocemente no início deste século, aos 43 anos. Ele alertava seus clientes políticos de que há uma janela de temas que podem ser debatidos em público sem chocar a população.

Um assunto começa inimaginável de tão fora da norma. Tabu. À medida que um grupo minoritário da sociedade passa a falar dele com desenvoltura, se torna radical. Não é mais inimaginável. Se mais pessoas são expostas, um novo passo é dado. Torna-se uma visão aceitável. Não é para todo mundo, tampouco é absurdo. Quando quase metade da população aceita aquilo, a ideia já é razoável. Passe de metade, torna-se uma ideia popular. Até que vira ação, política pública ou lei.

Não foi por acidente que houve um desfile de tanques que passou por Supremo, Planalto e Congresso. Que, depois, o presidente Jair Bolsonaro tenha disparado para grupos de WhatsApp uma mensagem falando em “contragolpe” e então, em sequência, os três generais-ministros que trabalham no Palácio, cada um a seu jeito, tenham tratado do assunto ditadura. Augusto Heleno sugeriu que a Constituição permite às Forças Armadas que intervenham no Judiciário ou no Legislativo. Braga Netto falou que, para ser ditadura, nossa ditadura teria de ter matado mais. E Luiz Carlos Ramos arrematou: ditadura ou democracia é só questão de semântica.

Estão normalizando a ideia da ruptura democrática. O tema era inimaginável há três anos. Já se tornou radical. Estão abrindo a Janela de Overton.

O truque é popularíssimo em fóruns de internet. O problema é que forçar uma ideia inimaginável goela adentro da sociedade não vem sem reação. O presidente da Câmara pode estar calado, e o procurador-geral da República fingindo que não vê. Mas o povo brasileiro tem anticorpos.

Em outubro de 1934, a Ação Integralista Brasileira organizou sua maior marcha até ali. Milhares de homens vestindo verde, com banda marcial, braçadeira de sigma e estandartes se reuniram enfileirados na Praça da Sé, em São Paulo. Desfiles fascistas são construídos para demonstrar força. Intimidar. Os fascistas brasileiros não sabiam é que, no topo dos prédios da praça estavam sendo aguardados por anarquistas, comunistas e veteranos da Coluna Prestes. Que abriram fogo. De cima, vendo o corre-corre desesperado dos homens verdes, alguém logo percebeu. Parecia um galinheiro quando alguém entra.

No momento em que os fascistas viraram Galinhas Verdes, caíram no ridículo, nunca mais foram levados a sério. Nas redes, o desfile de tanques com escapamento podre ganhou a trilha do desenho “Corrida maluca”. E o ataque da Marinha a uma casinha de bonecas circulou com a música dos “Trapalhões”.

Quando o brasileiro ridiculariza o fortão do recreio, não há ideia radical que possa ser levada a sério.

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