quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Zeina Latif - O exemplo da prefeita socialista de Paris

O Globo

Uma das promessas de Paulo Guedes na campanha de 2018 foi a venda de imóveis da União, com a inexequível receita de R$ 1 trilhão. Além do pouco cuidado técnico na estimativa, revelou-se o desconhecimento da complexa natureza do processo e das etapas a serem cumpridas, como a regularização e avaliação dos imóveis, em meio à excessiva burocracia.

Para imóveis tombados, as dificuldades se multiplicam por conta da complexidade e do excesso de regras e exigências para reformas e restaurações. Adicionalmente, os processos são morosos; sem prazo limite para o exame dos órgãos envolvidos. Tudo isso mina o interesse do setor privado nas aquisições, além de comprometer a capacidade do estado de gerir o patrimônio público.

Como resultado, em 2020, 80% dos leilões não tiveram interessados, sendo levantados apenas R$100 milhões, segundo o Valor Econômico.

Um triste exemplo desse quadro foi a tentativa fracassada de leilão, em 2015, do antigo edifício da Polícia Federal em São Paulo, marco arquitetônico tombado. O prédio acabou pegando fogo e desabando em 2018.

O governo tenta avançar nessa agenda. A Lei 14.011 sancionada em 2020 permite, por exemplo, descontos nos preços dos imóveis, caso não haja compradores na primeira tentativa de leilão – até então havia rigidez no preço mínimo, dificultando a venda. As soluções, porém, são mais complexas.

Recentemente, surgiu a polêmica sobre a venda do Palácio Capanema, patrimônio arquitetônico tombado, no centro do Rio. O prédio está em reforma desde 2014, com gastos na casa de R$100 milhões.

O governo recuou da decisão diante da grande reação contrária. Perdeu-se a oportunidade para um amplo diálogo sobre como preservar e valorizar nosso patrimônio, em benefício da sociedade, e sem onerar cofres públicos em um país com tantos desafios sociais.

Certamente, vender um ícone da arquitetura em um “feirão” pelo maior preço não é decisão sábia. Há opções mais inteligentes, como mostram algumas experiências no mundo, e no Brasil também.

No projeto Réinventer Paris, lançado em 2014 pela prefeita Anne Hidalgo, do Partido Socialista, a cidade oferece áreas para projetos urbanos inovadores, propostos em concurso mundial. O foco inicial foram os espaços públicos sem uso ou subutilizados.

A prefeitura disponibiliza a área – inclusive importantes prédios históricos -, podendo vendê-la ou alugá-la, e busca os projetos de maior qualidade, e não as melhores ofertas financeiras.

Os critérios para avaliação estão associados aos objetivos definidos pela cidade, como construção de moradia, cuidado com o meio ambiente, economia no uso de energia, viabilidade financeira e qualidade arquitetônica.

Um exemplo recente, em São Paulo, foi a concessão à iniciativa privada do Estádio do Pacaembu, por 35 anos. Foram estabelecidas premissas para o empreendimento – como restaurar a arquitetura original do clube poliesportivo, da década de 1940 - e as obras precisam ser aprovadas pelos órgãos competentes.

Além do centro esportivo, haverá um complexo comercial e espaço para convenções.

Há também a bem-sucedida experiência do Farol Santander, nos centros de São Paulo e Porto Alegre. Esses imóveis tombados estão bem preservados e são abertos ao público.

A venda de imóveis públicos não pode ser vista apenas pela ótica fiscal. O foco principal precisa ser o desenvolvimento e o bem-estar social.

A busca por uso integrado adequado do espaço das cidades encontra respaldo nas pesquisas de Economia Urbana. Contribui-se para reduzir custos de transporte, estimular a inovação e ganhos de produtividade, e também aumentar a segurança por conta do maior fluxo de pessoas. Prédios públicos abandonados não cabem nessa equação.

Enquanto em outros países os centros históricos são valorizados e habitados, e são fonte de receita de turismo, no Brasil nós os maltratamos e, assim, os esvaziamos. É necessário estimular parcerias com o setor privado – por meio de concessão ou venda -, sem preconceitos, pois o modelo atual não salvou nosso patrimônio histórico cultural, em escala.

Cabe ao poder público decidir sobre os objetivos a serem atingidos, de forma viável financeiramente, e eliminando os excessos de regras que inviabilizam a restauração.

Nestes tempos de princípios ESG, precisamos pensar no ESG-P, de Patrimônio Público.

(*) Agradeço as contribuições de Raul Juste Lores.

 

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