quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Zeina Latif - Ouvidos moucos ao estrondo da inflação

O Globo

O ministro Paulo Guedes reafirma sua tranquilidade com a condução da política fiscal - inclusive a proposta de parcelamento de precatórios. Para ele, a alta nos juros de mercado decorre de um “barulho” causado por análise equivocada do mercado quanto à reação de Bolsonaro à candidatura de Lula – trocando em miúdos, o medo de populismo. Guedes não reconhece o estrondo da inflação produzido pelo aumento cotidiano do risco fiscal.

As expectativas inflacionárias dos analistas de mercado atingiram 7,05% em 2021 e 3,9% em 2022, ante metas de 3,75% e 3,5%, respectivamente. Essas projeções se referem ao cenário básico das instituições e, não necessariamente, embutem elevada convicção ou probabilidade.

Há muitas incertezas, que se refletem nas taxas de inflação de mercado (taxa implícita nos títulos indexados ao IPCA) acima de 5% para 2021, e em alta.

De fato, é difícil acreditar em recuo tão expressivo no ano que vem, diante dos muitos riscos e da natural resistência da inflação em um país com economia ainda indexada.

Exemplo disso são os reajustes salariais nas negociações coletivas praticamente repondo a elevada inflação passada, o que realimenta o processo inflacionário.

O IPCA atingiu 9% na variação anual (7,4% para preços livres, ou seja, excluindo os preços administrados) e está bem disseminada na cesta de consumo. Os números guardam semelhança com os do governo Dilma em 2014, mas com o dobro de taxa de desemprego.

O retrato não é bom, e as perspectivas, tampouco. Naquilo que o BC chama de balanço de riscos, ou seja, fatores que podem ajudar ou atrapalhar a convergência da inflação às metas, o resultado líquido pende para mais altas nas projeções atuais.

As leituras mensais da inflação de serviços voltaram a correr em linha com o padrão dos últimos anos e podem subir mais, pois a demanda de serviços prestados às famílias - em recuperação - está 20% abaixo do pré-pandemia.

Há pressão de custos a ser repassada pelo varejo, já que a inflação de bens finais no atacado tem rodado acima de 22% ao ano enquanto a mesma medida no varejo está em 10% - ambas costumam caminhar juntas. A inflação disseminada reduz o temor do comércio de perder vendas ao reajustar preços, especialmente quando recompõe estoques.

É verdade que a pressão de custos do atacado poderá arrefecer, pois a desaceleração no comércio mundial contribui para refrear a alta de preços de commodities. Fica a dúvida quanto à cotação do dólar. A alta da Selic ajuda a conter a depreciação cambial, mas não faz milagre diante dos riscos fiscais.

A inflação mundial também é fator de risco, especialmente a dos EUA – também sofre com os excessos nos gastos do governo. Há dois canais de contaminação: o próprio impacto indireto na inflação doméstica (pelas importações) e a perspectiva de elevação da taxa de juros do Fed e, assim, da cotação do dólar.

Nos EUA, os preços de insumos da indústria acumulam alta expressiva (25% na variação anual), que deverá ser repassada aos bens de consumo no atacado (11%), a julgar pela elevada aderência entre essas variáveis. Depois, do atacado para o varejo.

Além disso, há alguns sinais de aperto no mercado de trabalho, apesar de o desemprego não ter retornado ao pré-crise.

De um lado, a abertura de vagas como proporção da população está bem acima da tendência histórica e, de outro, a oferta de trabalho se retraiu. Há relatos de dificuldades de recrutamento pelas empresas – algo citado pelo Fed. Podem decorrer do medo da Covid-19 e da ajuda monetária recebida do governo americano; fatores passageiros, mas que, diante da perda de ritmo da vacinação, podem durar o suficiente para pressionar salários. A remuneração do trabalho (salários e benefícios) no primeiro semestre subiu 4,1% na variação anual ante inflação (núcleo) média de 2,6%.

Não faltam motivos para preocupação do BC - o que lhe faltou foi desconfiar das promessas de responsabilidade fiscal.

A alta da Selic não mudará o quadro tão cedo, por conta de seu efeito defasado sobre a inflação. Sem contar que parte do trabalho do BC será enxugar gelo, compensando os excessos fiscais. O BC, por ora, dependerá de sorte para a inflação cair, como a seca deixar de pressionar os preços de alimentos e, talvez, as tarifas de energia - o alívio seria mais moderado, segundo a Aneel.

O BC está sozinho e o fardo é grande. Boa sorte, BC!

 

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