domingo, 5 de setembro de 2021

Alberto Aggio* - “Que país é esse?”

O Brasil não é para principiantes”. Quantas vezes já se leu ou ouviu esta frase, atribuída a Antonio Carlos Jobim? Frequentemente, ela é mencionada para atestar a dificuldade de se compreender o país. Está presente em quase todos os exercícios de revisão das principais interpretações sobre a formação histórica brasileira. Comunidades de cientistas sociais se dedicam recorrentemente a pensar e repensar os interpretes do país em encontros científicos, seminários e antologias de ensaios, sem chegarem a conclusões mais definitivas.

Como se sabe, as interpretações sobre o Brasil compõem uma tradição de enorme multiplicidade em suas abordagens, nada uniforme e harmônica, produzida em diversos momentos da sua história. Uma tradição que ensejou embates inclinados tanto à conciliação quanto ao rechaço a ela. Um paradoxo nem sempre percebido nas disputas políticas e culturais que se desenrolam no presente. Pensar o Brasil nunca foi apenas um exercício acadêmico ou intelectual. Trata-se de um debate que alimenta, o tempo todo, projetos que visam o futuro do país.

O Brasil, seguramente, não é para principiantes. Contudo, não seria absurdo pensar, ultrapassando o senso comum, que tal asseveração poderia ser aplicada a inúmeros países, dos EUA à Rússia, da China ao México, do Afeganistão à Bolívia, apenas para mencionar alguns exemplos. Em todos eles há incógnitas a serem decifradas e seus problemas atuais não são nada simples, como temos visto.

É preciso estabelecer também um questionamento a respeito do exagero de que o Brasil guarda uma excepcionalidade superlativamente distinta de outras experiências históricas, com seus maneirismos típicos dos quais o “jeitinho” ou a “gambiarra” são incensados ad nauseum. Além de um ar de troça e menosprezo, há nesse tipo de leitura uma soberba que visa desacreditar a tarefa do pensamento na compreensão do país bem como do seu lugar no mundo. Essa forma de conceber o país é inútil e improdutiva diante dos desafios civilizatórios que temos diante de uma mundialização que se impõe a cada dia. Se o Brasil for apenas isso estamos fritos.

O realismo nos indica que, para pensar a experiência histórica brasileira, isolando os esquemas sociológicos abstratos, o exercício da comparação é vital. A equalização ao tempo dos contemporâneos não poderá ser sequer vislumbrada caso não se reconheça que a vida social e política, a economia e os valores civilizatórios são hoje História global. Seria importante pensar intelectualmente o Brasil por meio de uma análise capaz alocá-lo num quadro comum de problemas de natureza interdependente, entre os quais pode-se mencionar os desafios da consolidação da democracia, da inserção na globalização da defesa e afirmação da sustentabilidade ecológica.

Embora não se possa dizer que exista uma linhagem do pensamento brasileiro seguindo essas indicações, há quem já a percorra sob uma chave de leitura que afirma analiticamente que a sobreposição, combinação e síntese entre a matriz ibérica e uma tradução particular do americanismo deram ao país a morfologia da sua formação social. A partir dessa chave, o Brasil pode ser pensado concretamente, ainda que essa não seja uma tarefa exclusiva do pensamento social e de seus intelectuais. A complexidade que daí deriva supõe a recusa à adoção da estratégia de um “tempo exaltado” como solução dos nossos dilemas históricos ao se sugerir, como faz Luiz Werneck Vianna, a proposição de “exploração do transformismo ‘de registro positivo’” como a melhor indicação para a compreensão dos “processos societais novos na sociedade brasileira (…) depois da institucionalização da democracia política em meados dos anos 80”[1].

O Brasil moderno se fez em meio às disputas intelectuais e políticas pela hegemonia no andamento da sua “revolução passiva”, uma história de paradoxos, contradições e incompletudes. Até mesmo movimentos que buscaram um caminho modernizador e democrático, como foi o Modernismo de 100 anos atrás, vivenciaram isso e, de acordo com Vinicius Müller, acabaram produzindo “uma nova situação de exclusão ou, no mínimo, de diferenciação, entre os membros iluminados da intelligentsia e aqueles que mesmo formando uma grande parte do país, são, segundo esse olhar, analfabetos políticos, ignorantes religiosos, facilmente manipuláveis e/ ou pouco conhecedores da própria história”[2].

Que país é esse? se perguntava um atormentado Renato Russo numa de suas canções no final dos anos 1980. Décadas à frente, ainda perplexos, somos nós que indagamos: que país é esse que entronizou Bolsonaro? Não há como não reconhecer que o Brasil sob Bolsonaro é sintoma evidente de uma história que precisa ser decifrada. Não pode ser visto como um parêntesis. Ele já estava aí, mas não foi percebido em sua barbárie e no seu espantoso espelhismo antiglobalista. Não será possível superá-lo, verdadeiramente, apenas apertando os botões da urna eletrônica, embora esse seja um passo necessário e imprescindível.

*Professor Titular de História da UNESP-Franca-SP

[1] VIANNA, L. W. A revolução passiva – iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 10.

[2] MÜLLER, V. A História como presente. Brasília: FAP, 2020, p. 191-2.

(Publicado originalmente em Política Democrática Online, n. 35, setembro de 2021, p.09-11)

 

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