Correio Braziliense
Durante 350 anos,
os estrangeiros se espantaram com a escravidão e com o fato de os brasileiros
não se espantarem com o tratamento dado aos escravos. Se um visitante
comentasse o assunto, o brasileiro branco diria: “São negros”. Passados 133
anos da Abolição, se algum estrangeiro comenta a má educação recebida por
alunos das escolas públicas, ouve como resposta: “São pobres”.
Espanta os turistas como em nossas praias convivem banhistas ao lado de trabalhadores servindo sob o sol e sobre a areia, vendendo o que a moderna indústria oferece. Se o visitante estrangeiro disser “vocês ainda mantém privilégios do tempo da escravidão”, os brasileiros respondem: “Mas precisam desse trabalho para sobreviver”. Os escravos também. Ao voltar do século XIX ao século XXI, o visitante pensaria que a escravidão continua como se as algemas fossem invisíveis.
A ideia de que a
escola deve ter a mesma qualidade, independentemente da renda e do endereço da
criança, espanta tanto quanto no século XIX espantava a ideia de negros e
brancos terem os mesmos direitos. Espantaria quem dissesse que os resquícios da
escravidão decorrem da desigualdade no acesso à educação.
Nós brasileiros
não nos espantamos que os republicanos tenham escrito lema, na bandeira que
desenharam, sabendo que naquela época 6,5 milhões de adultos, 65% da população,
não sabiam ler, nem mesmo o “Ordem e Progresso”. Aos estrangeiros causa espanto
que, 132 anos depois, temos 12 milhões de adultos que não sabem ler a própria
bandeira. O espanto só chega para quem tem olhos para vê-lo e percepção para
senti-lo como algo estranho.
Qualquer pessoa,
salvo os próprios brasileiros, se espantaria ao ver a notícia que o Brasil é o
maior exportador de alimentos do mundo, seguida da informação de que dezenas de
milhões passam fome todos os dias. Ainda mais ao ver, no mesmo noticiário da
televisão, ao lado de famílias com fome, publicidade de competições entre
candidatos a chefes de cozinha. Espanta que, apesar de milhões de desempregados
sem salários, os empregados e patrões com altos salários recebem vales para
pagar alimentação nos mais caros restaurantes, com dinheiro de impostos que os
desempregados também pagam. Os estrangeiros se espantam quando sabem que os
encarregados de zelar pelos interesses do povo – parlamentares, governantes,
juízes, inclusive servidores da rede pública – usam seguro de saúde privada
pago pelo setor público, como forma de proteger-se da má qualidade dos serviços
que oferecem ao público .
Percebemos a
injustiça de jovens que fazem ENEM em condições precárias por falta de aulas
durante a pandemia, mas espanta a falta de espanto diante de pelo menos 80
milhões de brasileiros impedidos de se inscrever, porque ficaram para trás, sem
um ensino médio minimamente satisfatório. Espanta a preocupação maior para
entrar na universidade do que para abolir o analfabetismo. O Brasil que
espantava por não se espantar com a escravidão, agora espanta por não se
espantar com a imensa maioria de sua população analfabeta para o mundo
contemporâneo: sem falar um idioma estrangeiro, sem saber as bases da ciência,
da matemática, sem conhecer os problemas do mundo contemporâneo, e sem um
ofício que lhe permita emprego e renda.
Os estrangeiros
se espantam que o Brasil seja capaz de contabilizar 100 milhões de votos em
poucas horas, e esses votos elejam presidente contrário à democracia que o
elegeu. Espanta que o espetáculo tecnológico da contagem eletrônica dos votos
não garanta a posse do eleito, se militares e milícias não estiverem de acordo
com o resultado; também que o pagamento de contas pelo sistema pix fique
prejudicado pelo clima de violência e criminalidade.
Parece que é
permanente e ilimitada a capacidade brasileira de espantar ao mundo, sem se
espantar aqui dentro.
Nesta semana, os brasileiros comemoraram o último 7 de setembro de seu segundo centenário, espantando o mundo pelas realizações de nosso desenvolvimento, e por nossa negação em distribuir os resultados do que realizamos, caindo em um abismo histórico. Por falta de espanto com a concentração e privilégios, não fazemos a distribuição necessária para construir um futuro com coesão e rumo, vitalidade nacional e inclusão social.
*Professor
Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação.
Maravilha de texto, Cristovam
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