quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Daniel Rittner - Mentira na ONU é fácil de pegar. E distorções?

Valor Econômico

Desinformação e fake news também podem ser sutis

Fake news não é necessariamente inventar um dado sem pé nem cabeça e divulgá-lo sem lastro nenhum na realidade. Também é pegar um número verdadeiro e distorcê-lo maliciosamente, com o objetivo de manipular a opinião pública ou reforçar as convicções pré-existentes de um segmento dela. Dizer na tribuna das ONU que brasileiros mais vulneráveis receberam US$ 800 do governo não é de todo uma mentira quando a conta soma sabe-se lá quantas parcelas de auxílio emergencial durante a pandemia. Mas é mais ou menos como dar os parabéns para quem ganhou salário mínimo a vida inteira e se aposentou depois de 30 anos: “Caramba, você teve uma renda acumulada de R$ 1 milhão”.

Como há dois anos, quando atacou seus antecessores socialistas no Palácio do Planalto por terem desviado “centenas de bilhões de dólares” para comprar jornalistas e parlamentares, o presidente brasileiro mentiu novamente na ONU. Cifras imaginárias ou fantasmas comunistas que se escondem debaixo da cama ainda podem ser boas armas para animar grupos de WhatsApp de quem está #fechadocombolsonaro, mas são as distorções mais sutis que fazem a turma menos apaixonada balançar em dúvidas quando exposta à máquina de desinformação.

Às vezes, como ontem, basta omitir para distorcer. É verdade que o crescimento da economia está estimado em 5% em 2021, apenas repondo as perdas do ano anterior, mas esconde-se que o desempenho do segundo trimestre foi o terceiro pior do G-20 e que o maior banco privado do país rebaixou sua previsão de alta do PIB em 2022 para meros 0,5% após o flerte golpista de Jair Bolsonaro no 7 de setembro.

Que bom se pudermos acolher todos os cristãos do Afeganistão, não mais de 12 mil entre 38 milhões de habitantes no país. Mas celebremos mesmo a nova Lei de Migração (13.445 de 1997), por meio da qual qualquer perseguido pelos talebãs, independentemente do credo, pode pisar no Brasil e obter refúgio imediatamente.

É a lei que substituiu um dos últimos entulhos da ditadura - o Estatuto do Estrangeiro (de 1980) - e foi tão duramente criticada por Eduardo Bolsonaro, o filho 03 do presidente, quando este comandava a Comissão de Relações Exteriores da Câmara em 2019. Eduardo relatou ter ouvido de uma funcionária de companhia aérea no aeroporto de Guarulhos, maior porta de entrada e saída do Brasil, como chegavam aviões “normalmente vindos da África” com dezenas de passageiros mal-intencionados, sem nenhum conhecimento da língua portuguesa, que “só sabem falar autorrefugiado e já têm a petição de autorrefúgio no smartphone delas”. Em apenas um dos voos, disse o 03 em tom de indignação, foram “mais de 30 pessoas” pedindo refúgio. Viktor Orbán, Marine Le Pen ou a líder do Alternative für Deutschland não teriam reparos à observação.

Tarcísio Freitas, o melhor ministro da Esplanada, terá ouvido com orgulho o chefe afirmar, no púlpito mais famoso do mundo, que “em nosso governo promovemos o ressurgimento do modal ferroviário”. Tarcísio teve o mérito de conceder a Norte-Sul e sempre descreve muito bem como a reta final de um leilão é tão cheia de percalços que mais parece parto de porco-espinho.

Com todos os seus erros - fraudes, corrupção, projetos de engenharia mal feitos -, a ferrovia só existe graças ao que tem mesmo de ser feito na infraestrutura: visão de Estado, planejamento que ultrapassa um mandato só. Na inauguração de trecho da Norte-Sul, em março, caberia uma cortesia com quem ajudou a colocá-la nos trilhos: Temer, Dilma, Lula, até mesmo FHC, Collor, Sarney. No vizinho Uruguai, quando cortaram a fita do novo aeroporto de Montevidéu, o presidente Tabaré Vázquez (esquerda) fez questão de convidar seu antecessor e rival político Jorge Batlle (direita) para a festa. Não é feio estender a mão ao adversário, ele não é inimigo.

Bolsonaro levou cidadãos de bem à loucura mencionando o uso do BNDES para financiar obras em países comunistas, mas se esquece docemente de informar que a China anunciou investimentos de US$ 12,8 bilhões por aqui só nos dois primeiros anos de seu governo.

É fácil apontar mentira no anúncio de redução de 32% do desmatamento na Amazônia, em agosto, quando números da véspera vão em sentido oposto. Mais difícil é explicar que abertura da economia não se concilia com nova lei de licenciamento ambiental, PL da grilagem, mineração em terras indígenas. Pode-se até discutir o mérito de cada proposta, sem preconceitos e clima de flá-flu, mas a avaliação da comunidade internacional é tão negativa que não tem como fugir. É defender isso ou fazer de conta que vamos ter acordo de livre-comércio Mercosul-União Europeia, entrada na OCDE, investidores estrangeiros na Ferrogrão. As duas coisas, juntas, não rolam.

Por falar em reputação, Bolsonaro se vangloriou por ter recuperado a credibilidade externa do país. Ontem, no exato minuto em que o presidente terminou o discurso, Ian Bremmer, analista de risco político mais paparicado da atualidade, tuitou com deboche: “Primeiro, Fidel Castro teve que procurar um quarto no Harlem [durante uma Assembleia Geral da ONU]. Agora isso”. E vinha uma foto da comitiva brasileira comendo pizza na rua, em Nova York, porque seu líder não pode entrar em nenhum restaurante.

Promoção de olavista

O diplomata Roberto Goidanich assumiu recentemente o Departamento de Índia, Sul e Sudeste da Ásia no Itamaraty. Ministro de segunda classe (abaixo apenas de embaixador na carreira diplomática), chefiava até julho a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), que virou um parque de diversões olavista durante a gestão Ernesto Araújo.

Sob o comando de Goidanich, a Funag promovia debates com blogueiros investigados por fake news e outros ultraconservadores, sem pluralidade de ideias. Um dos palestrantes, então assessor de Damares Alves, discorreu sobre “a nocividade do uso de máscaras”.

Herdeiro de trono extinto e trineto de Dom Pedro II, Bertrand de Orleans e Bragança fez palestra na Funag e foi apresentado na ocasião como “Sua Alteza Real e Imperial”. Ele contou à plateia virtual que não existe racismo no Brasil e atacou os comunistas que, conforme suas palavras, saquearam o país. Ora, pois: a família da majestade, ao voltar para Lisboa em 1821, levou no porão do navio todo o dinheiro depositado no Banco do Brasil.

 

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