terça-feira, 21 de setembro de 2021

Eliane Cantanhêde - Dois ‘Jaíres’, dois Brasis

O Estado de S. Paulo

Jair Bolsonaro, do Brasil, é o único presidente do G-20 (grupo das 20 maiores economias do mundo) que não tomou nenhuma dose contra a covid-19, empurrou ministros a se vacinarem escondido e recorre aos seus “sentimentos” para induzir o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, a suspender a imunização de adolescentes, conclamando pais e mães a não vacinarem seus filhos. Um espanto!

Mais espantoso ainda pode ser o discurso de Bolsonaro hoje, na abertura da Assembleia-geral da ONU, em Nova York: o mesmo presidente que se recusa a se vacinar e faz campanha contra imunização de adultos e de adolescentes vai fazer oba-oba com os números da vacinação no Brasil? E acenar com exportação de vacinas para a América Latina?

Não está claro que personagem prevalecerá ali, falando para o mundo. O Jair, obstinado guerreiro contra vacinas, máscaras e isolamento social, alvo de uma CPI entupida de provas, documentos, relatos, vídeos e fotos e capaz de dizer as maiores barbaridades sobre tudo? Ou o Bolsonaro que lê, balbuciante e a contragosto, discursos que assessores e diplomatas escrevem, assim como assinou um manifesto escrito por Michel Temer, propondo trégua e equilíbrio?

O Brasil racional e os governos relevantes ao redor do mundo já conhecem de cor e salteado os “sentimentos” do presidente e certamente saberão separar o que é real e o que é empurrado para Bolsonaro ler, mas quem já frequentou o “cercadinho” do Alvorada, gritando “mito, mito”, fazendo selfies e apoiando a baboseira pode ficar confuso. Quem é esse na ONU? Deve ser o do “manifesto do Temer”, pensarão.

Se haverá dois Bolsonaros no púlpito da ONU, serão também dois Brasis. Um será o do discurso do presidente, gabando-se da aplicação de 222 milhões de doses de vacina do País e 80,5 milhões de pessoas totalmente imunizadas, discorrendo sobre o combate ao desmatamento e a preservação da Amazônia, relatando maravilhas sobre a recuperação econômica, o auxílio emergencial e o “novo” Bolsa Família.

O outro Brasil, o real, é um bocado diferente: a vacinação só começou por pressão popular e competição com o governador de São Paulo, só 38,1% da população recebeu duas doses ou a dose única da Janssen, o desmatamento e as queimadas na Amazônia batem recorde sobre recorde, as reservas indígenas são constantemente ameaçadas e a economia… Bem, quedas seguidas nas projeções de crescimento, disparada de inflação e juros, desemprego desesperador, miséria desoladora.

Se os dois presidentes e os dois Brasis têm apoios para um lado e para o outro, isso também ocorre com a própria comitiva de Bolsonaro em sua terceira ida a Nova York para abrir a assembleia anual da ONU. Diplomatas e os “pragmáticos” (até onde exista essa espécime no governo) insistem e torcem para ele incorporar o Jair do manifesto e falar com moderação, realismo e elegância. Assessores diretos e os “ideológicos”, ao contrário, atiçam para ele chutar o pau da barraca, coerente com o do “cercadinho”. E seja o que Deus quiser.

Já os vexames são um caso à parte.

Bolsonaro disse aos jornalistas que faria o discurso “em braile” (formato de texto para deficientes visuais) e ninguém entendeu nada. Será que ele confundiu com braile com libras (linguagem para deficientes auditivos)? Ou foi só mais uma brincadeirinha de mau gosto, no lugar errado e na hora errada?

E que tal o presidente da República comendo pizza de pé na calçada com ministros e subordinados, porque não se vacinou e não pode entrar em restaurante nenhum? Há quem ache o máximo um presidente que usa copo de geleia para receber autoridade estrangeira, come sozinho no bandejão de Davos, não põe máscara e conta piadas de quinta em audiências com chefes de Estado. Mas há controvérsias. E o fato é que cada país tem o presidente que merece.

 

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