terça-feira, 14 de setembro de 2021

Entrevista | Carlos Melo, cientista político: 'Protestos vazios cobram preço político'

Para analista, contradições na convocação e carta de Bolsonaro com aceno ao STF esfriaram manifestações contra o governo

Guilherme Caetano / O Globo

SÃO PAULO — As imagens da Avenida Paulista com uma presença modesta de manifestantes contra Jair Bolsonaro rodaram as redes, utilizadas à esquerda e à direita como mostra do insucesso do protesto. Para o cientista político Carlos Melo, do Insper, os organizadores cometeram um erro ao realizar um ato com baixa adesão — e isso pode cobrar um preço. Mas isso, diz ele, não representa o potencial eleitoral dos grupos políticos. Melo diz que o esvaziamento do protesto começou em contradições na própria convocação e que a carta elaborada por Michel Temer, publicada via Palácio do Planalto, arrefeceu o sentimento de que seria preciso uma resposta rápida a um iminente golpe por parte de Bolsonaro. Para o cientista político, a centro-direita precisa se "fulanizar" em torno de um nome antes de buscar uma união com a esquerda: "enquanto a chamada terceira via não tiver um rosto, a dispersão é natural".

A reprovação ao governo federal é aproximadamente o dobro da aprovação, de acordo com as últimas pesquisas. Mas o ato do domingo, convocado por MBL, Vem Pra Rua e Livres contra Bolsonaro, não conseguiu encher mais de duas quadras da Avenida Paulista. Por que essa dificuldade?

Me parece ter um problema com a convocação do ato, que desde o princípio foi convocado para ser "nem Lula nem Bolsonaro". Depois de quarta-feira (pós 7 de Setembro), ele muda sua natureza, então já tem um problema aí. Estamos falando de apenas quatro dias (até o domingo da manifestação). Além disso, existiram vetos cruzados em todo esse antibolsonarismo. Vimos pessoas do PT dizendo que não participariam de atos junto do MBL, Vem Pra Rua, mas também houve pessoas como o (deputado federal) Marcel van Hattem (Novo-RS) dizendo que "o ato que era para ser 'nem Lula nem Bolsonaro' se transformou em 'fora, Bolsonaro' e daqui a pouco vira 'volta, Lula'". Por fim, houve acordos que não foram cumpridos. O sujeito de esquerda que se prepara para sair de casa (e ir ao ato) e vê aquele pixuleco enorme (boneco inflável de Bolsonaro equiparado a Lula), ele não vai mais. Esse foi um ponto de divergência entre os organizadores.

O protagonismo do MBL, que tem histórico de ataques à esquerda e engajamento no impeachment de Dilma, também interferiu na baixa adesão?

Ressentimentos políticos existem e são marcantes, mas eles fazem parte. A superação desses ressentimentos se dá ao longo do tempo e precisa ser operado politicamente. Não é do dia 7 para o dia 12 que esse negócio vai ser feito. Esse processo foi atropelado pelo que decorreu do discurso do Bolsonaro (no 7 de Setembro).

Qual é a influência do recuo do presidente, expresso em carta, nessa desarticulação?

Em se tratando do Bolsonaro, recuos são sempre muito precários e duvidosos. Mas a carta tira o sentido de emergência e de temor de um "golpe já", esfria aquele calor, aquele ambiente do dia 8, em que havia caminhoneiros nas ruas.  Para muita gente, ela veio como uma espécie de alívio. Dizer que a carta é um fator preponderante (para o esvaziamento do protesto) talvez seja um exagero.

Bolsonaristas debocharam do ato de domingo. Vale a pena botar carro de som na rua para encher duas quadras na Paulista?

Não vale a pena. É um erro que tem consequências. Cobra um preço político. O que que as pessoas razoáveis fazem diante dos erros? Avaliam e tentam corrigir. Claro que os adversários vão tirar sarro dos seus erros. Encontrar a justa medida, o timing certo para sair às ruas, é uma arte. Agora eles deveriam tentar fazer um balanço sincero, às vezes doloroso, dos erros que cometeram, e corrigir.

O que esperar dos próximos protestos antibolsonaro?

Há uma tendência de o próximo ser um protesto mais vigoroso do que vimos no domingo. Já houve alguns protestos feitos pela esquerda nos últimos meses, com um número bem razoável de pessoas, então há uma tendência de você ter protestos maiores. Mas é necessário colocar as barbas de molho e primeiro construir. Eles (esquerda) não chamaram um protesto para o dia 19. Chamaram para dia 2 de outubro. Então há 20 dias para se construir. Segundo lugar, é necessário ter cuidado em não cometer o erro que Bolsonaro cometeu em dizer que suas manifestações seriam gigantes. Porque depois, por maiores que elas sejam, há sempre uma frustração perto da expectativa que se criou. Criar expectativas irreais fazem você pagar um preço político alto demais por não realizá-las.

O protesto do domingo serviu para medir a expressividade de um terceiro grupo, a viabilidade eleitoral entre as esquerdas e Bolsonaro?

Acho que não. Mesmo a manifestação do 7 de Setembro ficou muito aquém do potencial do bolsonarismo. É um erro acreditar que Bolsonaro colocou todo o seu potencial ali (no 7 de Setembro). Da esquerda, a mesma coisa. Não expressa o potencial eleitoral, expressa o setor mais engajado. O problema desse terceiro grupo é que, enquanto os bolsonaristas e lulistas têm símbolos, esse não tem. Você olha para o palanque de ontem e vê vários candidatos disputando a preferência dos presentes, isso é ruim. Enquanto a chamada terceira via não tiver um rosto, essa dispersão será natural.

Em um dos carros de som na Paulista, lideranças discursaram contra PT e Lula, equiparando-os a Bolsonaro. Esse tipo de atitude pode ditar a amplitude dos próximos protestos da oposição?

É claro, isso atrapalha muito a aproximação, mas radicais existem dos dois lados. Como o PCO também é um problema quando a esquerda faz suas manifestações. No primeiro ato antibolsonaro em que o PSDB aderiu, eles foram agredidos pelo PCO.

É possível dissociar o aspecto eleitoral do cálculo da oposição na articulação desses protestos contra Bolsonaro?

Infelizmente não, pelo menos até aqui. O fator eleitoral está presente, mas não deveria estar. Se fosse um candidato de centro favorito em disputar contra Bolsonaro, será que ele abriria mão de ter Bolsonaro como adversário? É natural esse cálculo eleitoral, mas quando o que está em jogo é a própria democracia, isso é um erro.

O ex-presidente Lula lidera as pesquisas de intenção de voto. O senhor vê indisposição por parte do PT em derrubar Bolsonaro agora e prejudicar o cenário eleitoral de 2022?

Esse cálculo se baseia no seguinte princípio: tudo o mais constante, a democracia e as eleições garantidas, evidentemente parece que para o PT o melhor cenário seria disputar com Bolsonaro. Mas na percepção de que a democracia de fato não chega até lá, isso pode de fato colocar outro tipo de cálculo, de racionalidade, para os petistas. Quanto mais essa percepção se fortalecer, menos tende a se pensar na eleição, e mais na manutenção da democracia. Quanto mais o sistema político conseguir produzir conciliações, como a carta do Bolsonaro, quanto maior for a impressão de que o leão ruge muito alto mas não é feroz, o cálculo eleitoral passa a ter predominância.

Que tipo de concessão cada um dos grupos terá de fazer daqui em diante para conseguirem estar nas ruas juntos pelo impeachment?

Tem uma questão aí que é a agenda econômica, onde reside boa parte dos problemas. A agenda econômica será obrigada a ser discutida com uma pauta de políticas públicas que mitiguem todo o problema social que a gente está vivendo, o desemprego estrutural, o desalento, a miséria que voltou, inflação. Aí tanto os setores à esquerda que quiserem dialogar vão ter que encontrar uma possibilidade de complementação de políticas econômicas que ajudem no desenvolvimento, ao mesmo tempo em que protejam as pessoas.

E concessões em termos discursivos, para um lado atrair o outro?

Acho que no caso da esquerda, o movimento do Lula não é só discursivo, é simbólico. É apresentar quem será o coordenador do seu projeto econômico. Seria esse o sinal importante. Mas para o outro lado também vale questionar qual é a opinião dessas pessoas sobre a deterioração do ambiente social no Brasil. O que fazer? Só deixar por conta do mercado... A gente sabe que não resolve. O grande problema é que quando você fala na centro-direita, você fala "tá, mas quem?". Na esquerda você pode "fulanizar". É o Lula. Mas o outro campo ainda não se decidiu. Se ele ainda está internamente fragmentado, como você pode buscar uma união com a esquerda? Como resultado você tem aquela manifestação de domingo.

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