segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Fernando Gabeira - Pintando o sete

O Globo

Escrevo com antecedência habitual num hotel da Bahia. É perigoso escrever com alguma antecedência no Brasil. Segunda-feira nunca se sabe o que será.

Bolsonaro sequestrou o 7 de Setembro, transformando uma data nacional num evento partidário. Confesso que hesitei sobre o tema da semana passada. Pensei em escrever algo sobre como escapar dos primeiros efeitos do golpe de Estado.

Infelizmente, é essa a minha experiência. Gostaria de transmitir algo sobre reaproveitamento de alimentos ou como fazer móveis em casa. Mas o que retive foi como escapar nos primeiros e confusos momentos de um golpe.

Optei por uma outra análise e escrevi que tudo acabaria na quarta-feira. Esqueci que, no carnaval, alguns blocos resilientes saem às ruas mesmo com as cinzas.

Foi assim que vi os caminhoneiros nos 20 bloqueios pelos quais passei até chegar aqui. Eles não sabiam que tudo acabou. No Sul da Bahia, vi dois deles sentados no para-choque e pensei naquele soldado japonês que passou anos sem saber que a guerra acabara.

De fato, não acabou totalmente. Mas era evidente que Bolsonaro não tinha nada de durável a propor. Quando anunciou que reuniria o Conselho da República para mostrar a foto da multidão, era evidente que estava perdido.

Infelizmente, não foi possível para a imprensa entrevistar os manifestantes. Muitos questionam o STF por causa de sua postura contra a corrupção. Não sabem que o único ministro indicado por Bolsonaro é talvez menos rigoroso que os outros.

Alguns acham que o voto eletrônico não é auditável. O universo digital é etéreo e misterioso para eles, e compensa insistir na campanha que esclarece sobre a segurança do sistema.

É possível deslocar uma grande parte desse público do bloco de apoio a Bolsonaro. Essa é uma das tarefas diante do fracasso do mito.

A outra, naturalmente, foi realizada ontem. Uma união de pelo menos algumas forças democráticas para demonstrar que nenhum golpe passará: os dias de chantagem golpista chegam ao fim.

Para um resultado melhor, é preciso deixar de lado o slogan “nem Bolsonaro nem Lula”. É algo que diz respeito a uma escolha eleitoral que ainda está distante. O problema central agora é outro.

É preciso deter o processo de destruição do meio ambiente, encarar a crise hídrica, fortalecer o combate à pandemia, indicar as linhas mestras de uma retomada econômica.

Bolsonaro não se preocupa com isso. Ele queria uma foto da multidão e achava que, mostrando essa foto, mudaria o rumo do país, o que, no seu universo, significa ter voto impresso e derrubar alguns ministros. É incapaz de escrever uma nota admitindo que pintou o sete e foi socorrido pelo Michel Temer, que deveria ter lhe aplicado algumas mesóclises como castigo.

É hora de voltar à dura realidade do Brasil. Na televisão na terça-feira, disse que o Conselho da República se reuniria na realidade paralela do bolsonarismo. Na estrada, alguns caminhoneiros comemoram o estado de sítio e dizem que estão fazendo História.

As pessoas precisam compreender que não basta vestir uma camisa amarela, saudar o mito e comer sua macarronada para alterar o curso da História. As coisas são bem mais complicadas. Também para os que sempre fizeram oposição a Bolsonaro. O fato de tanta gente aceitar bandeiras que derrubam a democracia deve nos levar a uma reflexão. Até que ponto basta apenas defendê-la de seus inimigos, sem examinar suas fraquezas e tentar fortalecê-la no cotidiano?

Não é preciso apenas que Bolsonaro passe, mas que passem também as condições político-sociais que deram margem a essa ilusão coletiva. Na euforia do processo de redemocratização, não contávamos com retrocesso.

Estamos pagando um preço alto, em vidas humanas, recursos naturais, convivência fraternal, imagem externa; enfim, algo que já não temos como pagar no futuro. Hora de reconstruir.

 

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