O Globo
Alguns anos atrás, numa viagem de surfe,
encontrei um surfista italiano. Conversamos numa mistura de português,
espanhol, italiano e nossas mãos. Depois de muitas risadas, me arrisquei a
perguntar: como uma figura tão polêmica, o então primeiro-ministro italiano
Silvio Berlusconi, conseguia se manter tanto tempo no cargo mesmo enrolado em
acusações de sedução de menores, corrupção e abuso de poder?
Meu amigo sacudiu os ombros e respondeu:
“Molto semplice. Berlusconi o comunisti, comunisti o Berlusconi”. Era isso
então, o eterno medo da ameaça vermelha fazendo um país inteiro refém de um
político fanfarrão.
Desde o Manifesto Comunista de 1848, o medo
da revolução do proletariado dominou o Ocidente. Marx e Engels pensaram numa
Alemanha industrializada e em sua enorme massa de trabalhadores como palco para
a primeira luta de classes e para o estabelecimento da ditadura do
proletariado.
O medo também pode ser um grande agente de mudanças. Em 1871, o ultraconservador Otto von Bismarck, primeiro chanceler alemão, transformou seu medo e ódio pelos comunistas em inteligência política. Percebeu como as péssimas condições de trabalho dos trabalhadores alemães os transformavam no público-alvo perfeito para a propaganda socialista. Em 1883, ele iniciou a aprovação de um conjunto de leis de proteção ao trabalhador que, juntas, se tornaram o primeiro Estado de Bem-Estar Social do mundo. Melhores condições de trabalho, seguro-desemprego, pensão por tempo de serviço, seguro de saúde. Tudo financiado pelas três partes interessadas: o trabalhador, o empregador e o Estado. Essa inédita rede de segurança social tirou o vento das velas revolucionárias na Alemanha. A Revolução Bolchevique e a ditadura do proletariado só deram certo em 1917 num Estado absolutista, retrógrado e agrário, a Rússia dos czares.
O medo do comunismo alimentou Hitler nos
anos 1930, a Guerra Fria nos 50 e a do Vietnã nos 60. Hoje, o comunismo é um
bicho-papão só na imaginação da extrema direita. Cuba é uma ilha socialista
cercada de capitalismo por todos os lados. A China teve em Deng Xiaoping um
Bismarck às avessas. Para manter o comunismo na fachada, abriu a China para a
economia de mercado. A Coreia do Norte é uma ditadura nepotista e brutal que
faria Marx e Engels rolarem em seus túmulos.
Mas continuamos divididos entre quem tem
medo do comunismo e quem tem medo do fascismo. Cada um manipulando o medo do
outro como ferramenta política. O medo embaça a razão, bagunça a lógica e
destrói fatos, trazendo à tona nossos instintos tribais de sobrevivência. Medo
é a matéria-prima do “nós contra eles”, radicaliza o discurso jogando no
ostracismo duas das principais ferramentas da política: o diálogo e o
compromisso.
Uma das colunas do grande Carlos Alberto
Sardenberg aqui no GLOBO conseguiu sintetizar nosso dilema político: “Seria
ridículo ter votado em Bolsonaro para tirar Lula, depois votar em Lula para
tirar Bolsonaro”. Ao ler isso, meu lado Poliana acordou. Sonhei que Bolsonaro
se tornou um Pedro I. Num novo Dia do Fico, ele desistiu da reeleição e
declarou: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, digo ao povo
que fico em casa”. Num momento de bom senso, percebeu que, com seu nome na
cédula, Lula e o PT voltariam fácil ao poder.
Minha Poliana surta e espera ver um Lula,
esvaziado se Bolsonaro não concorrer, fazer o mesmo: ficará em São Bernardo
dando espaço às lideranças do seu partido para tentarem explicar o passado e
convencer que representam o novo na política brasileira. Quem sabe aparece um
Bismarck brasileiro, tanto faz de direita ou esquerda, capaz de transformar
medo e ódio em bom senso, em política pública que mereça esse nome. Capaz de
unir pela inteligência, em vez de dividir pelo medo. Que pena! Meu lado Poliana
não sobreviveu dois parágrafos. O mais provável é encontrar meu amigo italiano
em 2023, e ele me fazer umas destas duas perguntas: por que o Lula voltou? Como
Bolsonaro se reelegeu? A resposta será uma só: “Molto semplice: Lula o
Bolsonaro, Bolsonaro o Lula”.
Dizer que Bismarck "tirou as velas" do movimento operário alemão é se esquecer que os trabalhadores germânicos tomaram o poder da Alemanha em muitas cidades importantes, depois de 1917.
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