terça-feira, 7 de setembro de 2021

Merval Pereira - Situação-limite

O Globo

Não é normal chegarmos ao ponto de ter data marcada com antecedência para um golpe de Estado. E, quando o dia chega, como hoje, não se sabe o que pode acontecer. É perigoso que se considere normal que um presidente da República faça ameaças aos componentes do Supremo Tribunal Federal, ao Congresso e que isso não seja motivo imediato para um processo de impeachment.

Ainda estamos na fase de ver no que vai dar o discurso antidemocrático de Bolsonaro, de achar que ele ainda não atravessou nosso Rubicão. Às vésperas dos 200 anos de Independência — hoje é o 199º aniversário —, já deveríamos ter superado essa instabilidade política.

Pela movimentação que vem sendo feita há tanto tempo e pelo engajamento do próprio presidente, os atos de hoje serão grandiosos, não no sentido de admiráveis, mas no de tamanho. Embora esteja caindo em popularidade, Bolsonaro mantém ainda um núcleo de apoiadores muito importante, cerca de 20%, 25%, e, se mantiver esse tamanho, tem lugar garantido no segundo turno da eleição presidencial do ano que vem.



Importante é saber se esses números se manterão. Durante a campanha, ele pode se desidratar mais, mas, no momento, tem muita gente ainda que segue seus pensamentos e acredita nele. Minha dúvida e meu temor são quanto à possibilidade de violência e arruaças, e esses sentimentos têm sobretudo uma responsável, a retórica agressiva do presidente Bolsonaro. Receio que, diante de uma multidão ensandecida, ele não se controle e incite o povo contra o Estado de Direito e as instituições democráticas, o que poderá ter consequências.

Bolsonaro avança contra marcos democráticos como liberdade de expressão e direitos humanos alegando estar defendendo essas mesmas liberdades, desconstruindo as palavras numa novilíngua que pretende transformar o indefensável em palatável, a anormalidade em novo normal.

O governo jogou tanta força da sua capacidade de mobilização nas manifestações que pode haver uma realidade contrária. Estão esperando muita gente — Bolsonaro chegou a falar em 2 milhões de pessoas nas ruas —, o que deve ser decepcionante para ele. Esse exagero numérico já o coloca como perdedor, pois, pelas modernas técnicas de medição do número de pessoas por metro quadrado, muitos eventos monumentais já foram desmoralizados.

Então a situação de Bolsonaro começará a ficar insustentável. Mas nada disso é admissível numa verdadeira democracia. Não é aceitável que se tenha de medir forças nas ruas para saber que rumo o país terá, fora do resultado de eleições diretas. O que Bolsonaro está fazendo é querer levar o resultado das urnas em 2022 para um plebiscito antecipado.

A intenção declarada é ter uma foto da multidão para mostrar ao mundo sua força popular, como se essa suposta força fosse suficiente para autorizá-lo a transgredir a lei. A minoria barulhenta e arruaceira que apoia Bolsonaro é o oposto da maioria nem tão silenciosa que se opõe a seu desgoverno. E também oposta à maioria que irá às ruas hoje, querendo participar de manifestação pacífica que pode se transformar em tragédia insuflada por radicais. Essa minoria quer impor sua vontade como se majoritária fosse, transformar a democracia representativa em letra morta.

Nem que fosse maioria, poderia impor sua vontade, pois a democracia tem mecanismos para proteger as minorias. Mas não as minorias que querem tomar o poder à força. Esse é o paradoxo que temos de enfrentar, uma minoria antidemocrática que não aceita os poderes que impõem a ela os limites democráticos.

O engano vem de longe, de quando Bolsonaro foi eleito com quase 58 milhões de votos e incorporou a seus apoiadores todos os que votaram nele, mesmo sem gostar. Ser antipetista não significa ser bolsonarista, e tanto um grupo quanto o outro têm de respeitar a regra democrática. Estamos numa situação-limite. Depois das manifestações, teremos uma visão clara do que pode acontecer no país.

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