sábado, 11 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Meia-volta retórica

Folha de S. Paulo

Após fracasso em superar a fraqueza com gritaria, Bolsonaro encena recuo cínico

Depois de uma jornada de exaltações no 7 de Setembro, em que proferiu ameaças golpistas ao Supremo Tribunal Federal, dirigiu ofensas ao ministro Alexandre de Moraes, pregou desobediência à Justiça e anunciou que só deixará morto a Presidência, Jair Bolsonaro divulgou nota na qual afirma que não teve “nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes”.

Os excessos, tentou explicar, deveram-se ao “calor do momento”.

Em tom cínico, a meia-volta retórica teve o intuito de salvar do incêndio as pontes que ainda permitem algum tráfego entre a Presidência, os Poderes constituídos e a economia —depois que a tentativa de mostrar força nas ruas só deu em gritaria irracional.

Se Bolsonaro já se encontrava em avançado estágio de isolamento político, após o festival de afrontas que promoveu em Brasília e São Paulo o quadro se agravou.

Com mais ou menos veemência, mas sempre em tom de reprimenda, sucederam-se pronunciamentos contrários à atuação do presidente por parte de autoridades da República. Também vieram à luz palavras de apreensão por parte do setor empresarial.

Algum arreglo, portanto, precisava ser providenciado. Com esse propósito, Bolsonaro convocou o ex-presidente Michel Temer (MDB), que prestou assessoria no esforço de salvar o possível das aparências: auxiliou na redação da nota e agenciou uma conversa telefônica com Moraes, principal desafeto do mandatário no STF.

Também a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, entidade presidida pelo emedebista Paulo Skaf desde 2004, contribuiu para a coreografia dos panos quentes com uma carta a favor do entendimento entre os Poderes.

Desde o início de sua gestão, Bolsonaro comporta-se de modo errático. Já em 10 de janeiro de 2019, esta Folha noticiava que nos primeiros nove dias no Planalto, o presidente já havia voltado atrás em pelo menos nove anúncios.

Parte desses recuos deveu-se à incompetência e descoordenação do governo. Outra parte, todavia, veio em resposta a reações de apoiadores organizados na internet.

A presente mudança de tom contradiz esse padrão. O mandatário, que já fora compelido por sobrevivência política a negociar com o centrão, vê-se agora constrangido a decepcionar sua turba extremista.

Tudo somado, o alarido antidemocrático, os ataques às instituições, as conclamações exorbitantes e a encenação do recuo parecem indicar a atrofia de um presidente.

Incapaz de enfrentar os reais problemas do país, Bolsonaro não cessa de promover tumultos, movido pelo temor de que ele próprio e membros de sua família tenham de prestar em breve contas à Justiça.

Aborto, México e Texas

Folha de S. Paulo

Avanço no país latino contrasta com legislação persecutória no estado americano

O debate em torno do direito ao aborto conheceu nos últimos dias movimentos opostos dentro do continente americano.

No México, a Suprema Corte decidiu de forma unânime descriminalizar a interrupção da gravidez. Os magistrados reconheceram que a prática pertence à esfera da saúde pública e dos direitos da gestante.

É como esta Folha entende que a questão deva ser tratada, isto é, do ponto de vista da preservação da vida, da segurança e da escolha das mulheres, e não sob a ótica do direito penal. No Brasil, infelizmente, vigora ainda a visão punitivista.

O veredicto mexicano, referente à constitucionalidade de leis do estado de Coahuila que estipulavam até três anos de prisão para mulheres que abortassem, deve pressionar a aprovação de normas que legalizem a prática —hoje permitida em três estados e na capital.

A decisão estabelece um precedente para todos os tribunais de instâncias inferiores, podendo servir também, segundo especialistas, para livrar da cadeia mulheres presas em razão de abortos ilegais.

A ilustrar as dificuldades que essa pauta enfrenta, o avanço ocorrido no México se dá de maneira quase simultânea ao retrocesso registrado no vizinho estado americano do Texas. Ali, no dia 1º de setembro, entrou em vigor a lei sobre aborto mais restritiva dos Estados Unidos, onde esse direito existe há quase cinco décadas.

A nova regra proíbe a prática após seis semanas de gestação, período em que muitas mulheres ainda não sabem que estão grávidas, e não abre exceções nem para casos de estupro ou incesto.

Não bastasse, a norma incentiva os cidadãos a se tornarem delatores. Quem denunciar mulheres, médicos ou quaisquer pessoas envolvidas em abortos ilegais serão recompensados financeiramente.

Nada disso seria possível se a Suprema Corte tivesse bloqueado a legislação, como já havia feito em casos semelhantes. Ao rechaçar sua suspensão, o tribunal, hoje de maioria conservadora, abre um inquietante precedente legal. Diante disso, o governo Joe Biden anunciou a abertura de um processo contra o Texas para tentar reverter a regra.

Tanto evidências internacionais como a realidade do continente mostram que a lei texana dificilmente impedirá abortos. Antes empurrará uma legião de mulheres, em especial as mais vulneráveis, para a clandestinidade, colocando em risco sua saúde e sua vida.

O recuo de Bolsonaro é insuficiente

O Estado de S. Paulo

O fim da produção diária de conflitos é bem-vindo, mas Jair Bolsonaro não foi eleito apenas para ser pacífico, e sim para governar

Guiado pelas mãos do ex-presidente Michel Temer, o presidente Jair Bolsonaro fez, na quinta-feira passada, seu mais significativo recuo. 

A Declaração à Nação, que o presidente divulgou apenas dois dias depois de ter açulado seus seguidores contra o Supremo Tribunal Federal (STF), diz exatamente o oposto do que ele vinha declarando até então. “Nunca tive nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes”, diz a declaração daquele que, no 7 de Setembro, havia chamado de “canalha” o ministro Alexandre de Moraes, do STF. “Sempre estive disposto a manter diálogo permanente com os demais Poderes pela manutenção da harmonia e independência entre eles”, diz a declaração daquele que promoveu uma manifestação multitudinária contra o Supremo e anunciou, aos gritos, que não cumpriria mais nenhuma ordem judicial assinada por Moraes.

Como se sabe, a palavra de Bolsonaro não vale nada. No início de agosto, diante de novos ataques de Bolsonaro contra ministros do Supremo, o presidente da Corte, Luiz Fux, cancelou uma reunião prevista entre os chefes dos Três Poderes. “Diálogo eficiente pressupõe compromisso permanente com as próprias palavras, o que, infelizmente, não temos visto no cenário atual”, disse Luiz Fux na ocasião.

Não existe, portanto, expectativa de que Jair Bolsonaro, cuja carreira é marcada pela truculência, passe de repente a agir de forma civilizada. Na prática, sua Declaração à Nação se presta a tentar fazer os brasileiros esquecerem que ele passou seu mandato se dedicando a criar uma crise atrás da outra, inflamando o País e cometendo crimes de responsabilidade em profusão, tudo isso para esconder sua profunda incompetência.

Na mais recente turbulência inventada por Bolsonaro, o presidente, exercendo sua vocação de líder sindical, estimulou os caminhoneiros a bagunçar o País e, assim, intimidar o Supremo e gerar pretexto para soluções de força. “Essa greve vai cair diretamente no seu colo”, alertou Michel Temer, com conhecimento de causa: foi em seu governo que uma grande greve de caminhoneiros – apoiada pelo então deputado Bolsonaro – prejudicou imensamente os brasileiros e custou muito caro à economia. Ou seja, Bolsonaro estimulou forças destrutivas que ameaçavam sair de seu controle e que certamente lhe causariam prejuízo eleitoral, conforme o sábio conselho de Temer. 

Bolsonaro pode não cumprir nada do que disse na declaração de 9 de setembro, mas o fato é que reconheceu que suas ações extrapolam os limites institucionais – o que poderia lhe custar o cargo. Antes, pediu o impeachment de Alexandre de Moraes e exigiu que o presidente do Supremo “enquadrasse” o desafeto; agora, afirmando o que deveria ser óbvio, declarou que suas “naturais divergências” com Alexandre de Moraes “devem ser resolvidas por medidas judiciais”, e não no grito.

Dado o imenso contraste com o discurso golpista de Bolsonaro até então, a Declaração à Nação – que, como lembrou Michel Temer, é “um compromisso formal, escrito e assinado com a Nação, um compromisso de moderação” – gerou grande perplexidade nas bases bolsonaristas. O gesto incluiu até uma civilizada conversa telefônica de Bolsonaro com Alexandre de Moraes. 

Num Estado Democrático de Direito, o exercício do poder exige necessariamente diálogo, respeito ao outro, reconhecimento dos erros. Por sua vez, a aposta no conflito gera impasse e paralisia. Resultado do exercício da política e expressão da necessidade de harmonia institucional, a Declaração à Nação é, assim, a perfeita antítese do bolsonarismo. Não se deve estranhar a frustração dos bolsonaristas com o texto.

Mas o gesto de Bolsonaro, em si, é insuficiente. Não basta parar as agressões contra juízes e as difamações contra as eleições. Há um País a ser governado. Existem problemas sérios a serem enfrentados. Talvez aqui esteja o aspecto central de desconfiança em relação a Jair Bolsonaro. O fim da produção diária de conflitos, se for para valer, é certamente bem-vindo, mas Bolsonaro não foi eleito apenas para ser pacífico, e sim para governar – o que não fez até agora.

A disciplina da PM

O Estado de S. Paulo

PMs observaram a cadeia de comando, mas a democracia demanda esforço de manutenção

As manifestações antidemocráticas no 7 de Setembro, em apoio à agenda golpista do presidente Jair Bolsonaro, mostraram ao País que as Polícias Militares (PMs) não são forças incontroláveis.

Não sem razão, temia-se que um bom contingente de policiais militares da ativa participasse dos atos em defesa do voto impresso, da cassação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do descumprimento de decisões judiciais, inclusive portando suas armas de fogo. O vírus do bolsonarismo há muito foi inoculado nas forças de segurança pública, seja porque Bolsonaro sempre encampou – em seu favor e de sua família, diga-se – os anseios dos praças, seja porque ele mesmo foi um mau militar, um soldado absolutamente avesso aos dois pilares do estamento militar: a hierarquia e a disciplina. Portanto, quando insufla a balbúrdia e a insubordinação dos policiais militares, Bolsonaro fala com conhecimento de causa.

Mas, em que pese a violência do conteúdo das palavras de ordem, não houve nenhum incidente de maior gravidade em todo o País. As PMs cumpriram a lei, como era sua obrigação. Nas cerca de 200 cidades onde houve manifestações pró-governo, principalmente em Brasília, no Rio de Janeiro e em São Paulo, os apoiadores de Bolsonaro puderam se insurgir contra a Constituição com absoluta tranquilidade, sem se machucar ou machucar outras pessoas e sem provocar maiores danos ao patrimônio, público ou privado.

A participação de policiais militares da ativa nas manifestações de rua, especialmente em se tratando de manifestações de clara natureza golpista, seria um intolerável descumprimento da ordem jurídica. A missão precípua das PMs é diametralmente oposta. A Constituição diz categoricamente que “às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”. Tal dispositivo encontra-se no Título V da Constituição, que trata da defesa do Estado e das instituições democráticas, e não da defesa de um governo ou, menos ainda, de um presidente.

O ordenamento jurídico brasileiro veda a participação de militares da ativa em manifestações de natureza político-partidárias por duas razões elementares. Primeiro, porque são forças a serviço do Estado, como dito, e não de governos. Segundo, porque na democracia os debates acerca das questões de interesse público são vencidos pela força dos argumentos dos atores políticos, vale dizer, pela força da palavra, e não das armas.

Poderia ter sido outro o resultado não fosse a ação incisiva e oportuna dos governadores de Estado, a quem os comandos das PMs estão subordinados, e do Ministério Público. Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) afastou imediatamente do comando um coronel da ativa que havia convocado seus “amigos” para as manifestações pró-governo na Avenida Paulista. Por sua vez, três dias antes das manifestações, o procurador-geral de Justiça do Estado, Mário Sarrubbo, expediu recomendação aos comandos da PM e do Corpo de Bombeiros de São Paulo para que adotassem medidas a fim de “prevenir, buscar e, se for o caso, fazer cessar, inclusive por meio da força, quaisquer manifestações político-partidárias promovidas por ou com participação de agentes da ativa”. Doria e Sarrubbo acompanharam as manifestações na Avenida Paulista e no Vale do Anhangabaú desde o Centro de Operações da Polícia Militar (Copom), na região central da capital paulista.

Ao contrário do que supõe, Bolsonaro não tem controle sobre as Polícias Militares, como se pudesse convertê-las em guarda pretoriana a seu bel-prazer. O que se viu nas ruas no Dia da Independência foi uma estrita observância às leis e às cadeias de comando por parte dos policiais militares. Os que estavam em serviço não participaram dos atos, nem tampouco os que estavam de folga. Noticiou-se que apenas PMs aposentados aderiram às manifestações, o que não é ilegal.

Contudo, não se deve com isso baixar a guarda e subestimar a ação insidiosa do bolsonarismo no seio das forças de segurança pública. A democracia é um regime que exige enorme esforço de manutenção e, como se diz, vigilância constante.

 

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