terça-feira, 28 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Mil dias a menos

O Estado de S. Paulo

Este é um dos poucos motivos para celebrar o milésimo dia de Jair Bolsonaro no Planalto, o mais completo e desastroso desgoverno do Brasil independente

Completados mil dias, são mil dias a menos com Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto. Este é um dos poucos motivos para celebrar o milésimo dia do mais completo e mais desastroso desgoverno do Brasil independente. Haver sobrevivido também pode ser uma razão para festejar, se for possível conter, por algum tempo, a indignação e a dor pelos milhares de mortes atribuíveis ao negacionismo, à irresponsabilidade e a uma incompetência fora dos padrões conhecidos. Passados quase três quartos do mandato, restam, no entanto, os perigos associados à ambição de um presidente empenhado em continuar no poder – se possível, por meio de uma reeleição.

Não há por que esperar uma transfiguração de Bolsonaro, em sua luta para sobreviver politicamente e adiar, ou talvez evitar, as consequências legais de seus desmandos e omissões. Enquanto estiver na Presidência, ele tentará preservar o custoso apoio do Centrão. Além disso, continuará forçando a equipe econômica a encontrar, no Orçamento, recursos para gastos eleitoreiros. Não há por que esperar, também, um desempenho, em qualquer setor – educação, crescimento econômico, saúde, emprego e bem-estar –, melhor do que aquele registrado até agora.

O primeiro grande feito de Bolsonaro foi interromper a recuperação econômica iniciada em 2017, depois da recessão de 2015-2016. A economia cresceu apenas 1,4% em 2019, menos que no ano anterior, e já estava mais fraca no começo de 2020, antes da pandemia. O recuo de 4,1% naquele ano foi menor que o de várias economias desenvolvidas e emergentes, mas o País entrou em 2021 com desemprego de 14,7%, muito acima dos padrões dos países de renda média. Pior que isso, milhões de pessoas estavam desassistidas e dependentes de campanhas de solidariedade para comer.

Ameaças golpistas foram o complemento do cenário econômico de insegurança, desemprego e miséria crescente. Logo depois da invasão do Congresso americano por uma turba incitada pelo presidente Trump, Bolsonaro ameaçou algo semelhante, no Brasil, se a eleição do próximo ano for feita com voto eletrônico. Meses depois, um projeto de restabelecimento do voto impresso foi derrubado no Parlamento, mas o presidente continuou insistindo no assunto.

Conflitos com os Poderes Legislativo e Judiciário marcaram toda a gestão bolsonariana, e neste ano ele se concentrou em ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ataques às duas Cortes foram temas das manifestações golpistas de 7 de setembro, lideradas pelo presidente em Brasília e em São Paulo. Essas manifestações foram por ele descritas como democráticas, em seu vergonhoso discurso na abertura da assembleia anual das Nações Unidas, em Nova York.

Rejeição das instituições e ameaças de golpe, mais ou menos ostensivas segundo as circunstâncias, foram acompanhadas, em alguns dos momentos mais feios, de elogios à ditadura militar e a um notório torturador daquele período, o coronel Brilhante Ustra, chamado de herói por Bolsonaro. O mesmo qualificativo foi atribuído a um conhecido miliciano morto pela polícia na Bahia.

Elogios a um torturador e a um miliciano combinam com a política de facilitação de acesso às armas. Pessoas sérias podem apoiar essa política, mas seus principais beneficiários são obviamente os criminosos e os bolsonaristas dispostos a formar milícias de apoio a um líder antidemocrático.

Alimentada pela incompetência e pela irresponsabilidade, a inflação acumulada em 12 meses bateu em 10%, atormentando famílias já acuadas pelo desemprego e pela perda de renda. As projeções de crescimento econômico em 2022 estão abaixo de 2% e algumas instituições do mercado já anunciaram estimativas próximas de 0,5%. O desastre na saúde e o fracasso econômico foram complementados, nesses mil dias, com devastação ambiental, desmonte do Ministério da Educação e comprometimento da imagem do País, manchada por um extremista percebido em todo o mundo como caricatura patética do já patético Donald Trump. Cada um desses mil dias é para ser lamentado.

O Senado e a proteção das eleições

O Estado de S. Paulo

Entre os absurdos gerados na Câmara, tem até proposta de censura sobre pesquisas eleitorais

Sob a presidência de Arthur Lira (PP-AL), a Câmara tem produzido propostas legislativas que são verdadeiros retrocessos em matéria eleitoral. Felizmente, o Congresso é composto por duas Casas, e o Senado tem conseguido limitar os danos. Na quarta-feira passada, os senadores impediram a volta das coligações partidárias nas eleições proporcionais (deputado federal, deputado estadual e vereador). É preciso advertir, no entanto, que o Senado tem ainda muito a fazer na defesa do sistema eleitoral e dos direitos políticos. Entre os absurdos gerados na Câmara, tem até proposta de censura a pesquisas eleitorais.

São dois os principais projetos sobre legislação eleitoral: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 28/2021 e o projeto de um novo Código Eleitoral. No dia 22 de setembro, o plenário do Senado concluiu a votação da PEC 28/2021, mas sem a volta das coligações. Os senadores aprovaram a redação apresentada pela senadora Simone Tebet (MDB-MS), que, entre outros itens, estabeleceu novos critérios para a distribuição de recursos públicos entre as legendas e incluiu na Constituição a regra da fidelidade partidária. Além disso, a partir de 2026, a posse do presidente da República será no dia 5 de janeiro e a dos governadores, no dia 6. Como os senadores aprovaram uma parte da PEC original, o texto não voltará à Câmara.

Com a nova redação da PEC 28/2021, o Senado impediu um significativo retrocesso. Autorizadas até 2017, as coligações partidárias nas eleições proporcionais faziam com que o voto em determinado candidato pudesse eleger outro candidato, de outro partido, simplesmente em razão do convênio entre as legendas. Nesse sistema, o eleitor não tinha controle sobre os efeitos do seu voto, o que é profundamente problemático para a representação política.

Além disso, as coligações serviam para esconder a falta de representatividade de muitos partidos nanicos. Apesar de receberem pouquíssimos votos, candidatos dessas legendas usufruíam, em razão da coligação, dos votos de outros candidatos, de outras legendas, no cálculo do preenchimento das cadeiras legislativas. Com isso, as coligações ajudavam a viabilizar partidos totalmente inviáveis, sem nenhuma representatividade, o que favorecia a disfuncional e perniciosa fragmentação partidária.

Agora, o Senado recebeu a proposta relativa ao novo Código Eleitoral, com mais de 900 artigos, aprovada na Câmara. De pronto, chama a atenção a precipitação na tramitação de um projeto de tamanha envergadura. Em tempos de pandemia, com outras prioridades e, principalmente, com as limitações decorrentes das regras sanitárias, não há condições mínimas de avaliação desse novo marco legal.

A confirmar a precipitação, o projeto de novo Código Eleitoral contém graves e inconstitucionais aberrações. Prevê-se, por exemplo, a proibição da divulgação das pesquisas de intenção de voto na véspera e no dia das eleições. A proibição de cobertura jornalística sobre algum aspecto do pleito é violação das liberdades individuais e dos direitos políticos.

Além de configurar censura prévia e de tratar o cidadão como incapaz – o Estado assumiria o papel de interventor na autonomia individual, regulando o que cada um deveria utilizar na decisão sobre o seu voto –, a medida seria forte incentivo à desinformação e à manipulação. Com os veículos de comunicação impedidos de divulgar as pesquisas de intenção de voto, feitas com metodologia reconhecida, não haveria contraponto a pesquisas falsas ou distorcidas que certamente vão circular nas redes sociais e grupos de WhatsApp, confundindo os eleitores.

Além disso, o projeto do novo Código Eleitoral abranda a Lei da Ficha Limpa, diminui a transparência do uso do dinheiro público por partidos, exclui restrições relativas ao emprego desses recursos e diminui a punição de condutas que ferem a lei eleitoral. Diante desse perigoso quadro, cabe ao Senado ser muito cauteloso. É preciso submeter a proposta de um novo Código Eleitoral a uma rigorosa e pausada análise, que exclua os retrocessos e as inconstitucionalidades. Mudar para piorar é um atentado contra o eleitor.

O FMI e o Brasil emperrado

O Estado de S. Paulo

Relatório começa positivo, mas aponta baixo crescimento nos próximos anos

Crescimento medíocre, na faixa de 2% ao ano, é a previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o Brasil nos próximos cinco anos. Pouco dinamismo, dívida pública elevada e baixo investimento produtivo chamam a atenção no cenário dos números, embora o relatório recém-divulgado sobre a economia brasileira comece com palavras positivas e tom otimista. “O desempenho econômico tem sido melhor que o esperado”, anuncia o documento logo no início. O Produto Interno Bruto (PIB), informa-se depois, voltou ao nível pré-pandemia no primeiro trimestre de 2021, “em parte graças à vigorosa resposta política das autoridades”, e o impulso continua favorável, sustentado pelo comércio internacional, com forte evolução dos termos de intercâmbio, e pelo crédito robusto ao setor privado.

Mantido o impulso, a economia deve crescer 5,3% neste ano, de acordo com o relatório, produzido a partir de uma consulta anual entre técnicos do Fundo e fontes brasileiras, principalmente oficiais. Segundo o texto, o consumo será sustentado pela melhora do mercado de trabalho e pelos altos níveis até agora observados de poupança familiar. Estoques baixos devem ser recompostos, a melhora dos preços das commodities sustentará o investimento e a inflação cairá firmemente dos picos recentes até o centro da meta no fim de 2022. Tudo isso estará associado, naturalmente, ao avanço da vacinação.

Além disso, a dívida pública, depois de ter batido em 99% do PIB no ano passado, deve cair para 92% neste ano e permanecer em torno desse ponto no médio prazo. As incertezas são “excepcionalmente altas”, mas os riscos para o crescimento são vistos como amplamente equilibrados, acrescentam os autores.

Mas é difícil, mesmo com boa vontade e com esforço diplomático, normal nos documentos do FMI, sustentar por muito tempo esse otimismo, quando se trata de um país com baixo potencial produtivo. O otimismo seria ainda menor, se a equipe do Fundo considerasse a competência administrativa, o grau de organização do Executivo e, acima de tudo, as características de seu líder. Apesar disso, o relatório atribui seriedade e capacidade transformadora a uma agenda de reformas orientada, segundo o texto, para elevar a produtividade, o crescimento potencial, os padrões de vida e a governança.

O quadro ganha realismo quando a agenda se traduz em termos de prioridades e desafios, palavras mais adequadas para descrever as mudanças indispensáveis e as ações necessárias para concretizá-las. Reformas estruturais estão longe de ser garantidas e o combate à inflação pode implicar um forte aumento de juros (de fato, já iniciado). O controle da dívida pública dependerá do respeito ao teto de gastos e de maior capacidade administrativa.

Os autores do texto provavelmente ficariam menos animados se avaliassem mais de perto as demandas do Centrão e as preocupações eleitorais do presidente da República. Ainda faltaria analisar as condições de tramitação dos projetos, com distorções de finalidades, preservação de privilégios e farta introdução de jabutis e jabuticabas, tudo isso diante da inércia e da complacência da equipe econômica.

A realidade familiar aos brasileiros fica mais visível, enfim, quando se abandona o texto e se passa aos números do relatório. Apesar do tom otimista de alguns parágrafos, não há sinais importantes, nas tabelas, de expectativas de mudanças no cenário geral. Pelas projeções do FMI, a economia brasileira, depois de avançar 5,3% em 2021, crescerá 1,9% no próximo ano, 2% em 2023 e 2,1% anuais de 2024 a 2026. Esse tem sido o padrão das projeções, desde os tempos da presidente Dilma Rousseff.

O investimento em máquinas, equipamentos e obras deve sair de um mínimo de 16,5% do PIB neste ano para um máximo de 18,8% em 2026, superando 18% só a partir de 2023. Em outros emergentes, a taxa supera 24% do PIB e, com frequência, 30%. Sem surpresa, crescem mais que o Brasil. Surpresa, mesmo, haverá se a próxima missão do FMI, num ano de eleições, encontrar um quadro mais promissor e de mais seriedade.

Incerteza teutônica

Folha de S. Paulo

Derrota de partido de Merkel dá visibilidade a pontos controversos de seu legado

Marcado pela aversão ao risco, o longo reinado de Angela Merkel à frente do governo alemão chega ao fim sob incertezas.

A maior economia europeia foi às urnas no domingo (26) e apurou o pior desempenho histórico do partido da chanceler (primeira-ministra, na terminologia alemã e austríaca), a união de siglas democratas cristãs há 16 anos no poder.

A CDU-CSU teve 24,1% dos votos, ante 25,7% dos sociais-democratas (SPD), com quem coabitavam na chamada Grande Coalizão.

A depender do vitorioso Olaf Scholz (SPD), o novo governo terá os verdes (que somam 14,8% do eleitorado) e os liberais do FDP (11,5%). Isso garantiria 416 cadeiras no Parlamento, acima das 368 necessárias para uma maioria.

Haverá negociações, contudo, e mesmo um improvável acordo com a CDU-CSU não está totalmente descartado. Todo governo no pós-guerra alemão foi formado por coalizões, mas nunca houve eleição tão pulverizada —sendo a boa notícia a perda de espaço de radicais de direita e de esquerda.

É uma despedida algo inglória para Merkel, uma das únicas líderes mundiais digna do epíteto de estadista, como o manejo da pandemia comprova. Seu vasto prestígio, em particular no exterior, ofusca a série de problemas que ela deixa a seu sucessor.

Sua elogiada tendência à acomodação ajudou a Alemanha a passar por crises severas, como a econômica de 2008 e a sanitária atual.

Entretanto também a impediu de fazer avançar agendas importantes, como a reforma previdenciária —lacuna compreensível quando mais de 20% dos eleitores são idosos, mas que irá cobrar seu preço.

A Alemanha, a despeito da pujança de sua poderosa indústria, tem indicadores piores do que os de vizinhos em quesitos como competitividade e inovação. A má qualidade das redes de internet no país constitui um monumento muito tangível a essa contradição.

Mesmo com um Partido Verde dos mais influentes no mundo e uma agenda ambiental estabelecida, tem os piores índices de emissão de carbono da região.

A rigidez com que Merkel sempre lidou com temas orçamentários, algo obviamente positivo, muitas vezes foi vista como excessiva. A forma com que os países mais pobres da União Europeia foram tratados colocou Berlim na fronteira da insensibilidade social.

Ainda no campo externo, a Alemanha perdeu espaço para a França devido à pouca disposição para enfrentar temas como o status militar europeu em meio à Guerra Fria 2.0 travada entre China e EUA.

De forma mais controversa, em nome da segurança alemã Merkel consolidou o domínio do Kremlin sobre o mercado energético europeu ao finalizar dois gasodutos ligando seu país à Rússia.

Por fim, a atomização partidária não facilitará a abordagem decisiva dessas questões. Apesar de suas inegáveis qualidades, Merkel não legou um quadro político estável à semelhança de seus anos no poder.

Alívio parcial

Folha de S. Paulo

Delta não reverteu queda das mortes por Covid, mas números ainda exigem alerta

Como mostrou o Datafolha, 71% dos brasileiros acreditam que a pandemia do coronavírus está parcialmente controlada no país, e 9% veem controle total. A cautela da maioria é plenamente justificável, mas não deixa de ser motivo de alívio notar que a disseminação da variante delta não tem revertido a tendência de queda das mortes.

Nunca se poderá esquecer que o Brasil viveu uma catástrofe, por efeito direto da negligência do governo Jair Bolsonaro. Em abril, período mais letal da pandemia, atingiu-se média sinistra de mais de 3.000 mortos ao dia por Covid-19.

Nas duas últimas semanas, a média ficou em ainda muito elevados 500 óbitos diários. Nesse percurso, a identificação da variante delta em solo brasileiro levou a projeções de cenários alarmantes. A melhora gradual, no entanto, manteve-se.

Mais transmissível, a variante delta é resultado de alterações no material genético do vírus —as chamadas mutações. Isso ocorre quando o patógeno está circulando demais em uma população. Quanto mais oportunidades ele tem de se espalhar, mais se replica e está sujeito a sofrer mudanças.

No hemisfério norte, sabe-se que a delta causou aumento de casos (incluindo leves) e de mortes por Covid-19. Nos Estados Unidos, a variante levou o governo a rever flexibilizações sanitárias. Em julho, o uso de máscaras em ambientes fechados voltou a ser obrigatório.

Em Israel, houve uma ascensão gradual de óbitos a partir de meados de agosto. Era a quarta onda da pandemia naquele país.

Por aqui, há ressalvas a fazer. Os dados brasileiros sobre o novo coronavírus são precários e, sem investimentos e acompanhamento do Ministério da Saúde, a chamada vigilância genômica é ainda pior.

Não se sabe exatamente como a delta está se espalhando no país; há vasta evidência, isso sim, de subnotificação de casos da doença. Como a Folha noticiou, a quantidade de mortes por causas mal definidas saltou 30% na pandemia.

Com o arrefecimento relativo da Covid-19, avança-se na retomada de atividades, o que é um imperativo social e econômico. Os números e a experiência, entretanto, não permitem que se baixe a guarda.

Mil dias de Bolsonaro no poder, quase nada a comemorar

Valor Econômico

Projeto dava possibilidade de prorrogar por mais 30 anos os contratos em vigor

Mil dias de governo de um presidente como Jair Bolsonaro parecem uma eternidade. Em contraste, foi rápida a queda do véu eleitoral do candidato da “nova política”, inimigo da corrupção e liberal empedernido e a volta à realidade de um político sedento de poder, autoritário e corporativista da velha guarda, envolto em suspeitas de “rachadinhas” com seus filhos e ex-esposa. Bem no início de seu governo, Bolsonaro anteviu sua obra: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa”, disse. “Para depois começarmos a fazer” (17-3-2019). O capítulo da destruição segue avançado e inconcluso.

O presidente abriu seu mandato eliminando o Ministério da Cultura, hoje apêndice do Turismo, e seguiu em frente rumo à aniquilação da educação. As escolhas pessoais dos ministros da área seriam folclóricas, se não fossem letais. O primeiro deles, Ricardo Vélez Rodríguez, durou três meses, tempo bastante para mostrar sua bizarra incapacidade para o cargo, sabujice e, claro, falta de educação. Um mês após assumir ordenou aos diretores de escolas que filmassem os alunos cantando o Hino Nacional e citando o lema da campanha eleitoral de Bolsonaro. Será lembrado pela entrevista à revista Veja, revelando ternura pelos cidadãos do país. “O brasileiro viajando é um canibal”, disse. “Rouba coisas do hotel (...), acha que sai de casa e pode carregar tudo”. A associação entre roubo e canibalismo é pouco frequente.

Seu sucessor, o indescritível Abraham Weintraub, inapto para o trabalho e hoje em uma sinecura bem-remunerada no Banco Mundial, achou que sua tarefa era agredir supostos inimigos do governo. “Botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF”, disse, e saiu às pressas do país. O atual ministro, Milton Ribeiro, assumiu em plena pandemia e só deixou traços de sua presença quando resolveu dar palpites, como o de que as universidades, por meio do pensamento existencialista, incentivam sexo “sem limites”. Ribeiro esteve ausente o tempo todo e nenhuma grave questão do ensino, entre muitas - ensino à distância, reabertura das escolas, etc - mereceu sua atenção.

Da educação, uma unanimidade, depende o futuro do país, e o país, com Bolsonaro, retrocedeu. O presente, que continua sendo a pandemia e quase 600 mil cadáveres, foi igualmente desprezado. Bolsonaro trocou ministros no auge da mortandade e nomeou um neófito, o general Eduardo Pazuello, um desastre anunciado. O governo recusou-se a comprar vacinas, enquanto uma rede de aproveitadores, com conexões em um ministério repleto de militares, tentou extorquir dinheiro com esquemas malandros de obtenção de vacinas, como revelou a CPI. Bolsonaro até hoje diz que o kit covid é eficaz, ao contrário das vacinas, das quais desconfia, e que houve supernotificação das mortes por covid-19 nos hospitais.

Na economia, após uma reforma da previdência que já vinha andando do governo anterior, o liberalismo fake do presidente fez estrago. O ministro Paulo Guedes tentou com sua PEC Emergencial (5 de novembro de 2019) fazer três reformas em uma - só criou confusão sobre as prioridades e a PEC foi tosqueada pelo Congresso. O ministro tornou-se cabo eleitoral de Bolsonaro, e a economia segue o ritmo de cágado herdado, sem que suas ações tenham feito diferença relevante.

Bolsonaro mal completou três semanas no cargo até que viessem à tona depósitos de R$ 24 mil na conta da primeira dama, feitos pelo amigo miliciano Fabrício Queiroz, envolvido em processo de ‘rachadinhas’ que tem como protagonista Flavio Bolsonaro - investigação semelhante é feito sobre o vereador Carlos Bolsonaro. Ao mesmo tempo, descobriu-se o laranjal do PSL, com suspeitas sobre o ministro do Turismo, Marcelo Antônio. Em vez de afastá-lo, Bolsonaro ejetou do governo o ministro da Justiça, Sergio Moro, que impediu Lula de concorrer contra Bolsonaro.

Após ataques sem parar contra a democracia, culminando com as manifestações de 7 de setembro, Bolsonaro tem à frente popularidade em declínio, inflação em alta, perspectiva de crescimento medíocre e uma crise hídrica grave. Abraçado às forças do atraso no Congresso, o presidente, que prometeu acabar com a reeleição, só pensa nisso e afirmou: “Eu sempre fui do Centrão”. Sua piromania na Amazônia e em outros biomas impede o Brasil de se engajar em outra agenda do futuro.

Em retrospecto há poucas coisas a comemorar e uma é certa: Bolsonaro foi impedido de fazer quase tudo o que pretendia. Mas não desistiu ainda.

Lei de Improbidade Administrativa precisa ser alterada pelo Senado

O Globo

O Senado deu nas últimas semanas uma prova decisiva de estar à altura de seu papel de Câmara Alta na democracia brasileira. Soterrou a “contrarreforma” eleitoral engendrada pela Câmara, demonstrando ser capaz de equilibrar os exageros cometidos pelos deputados em causa própria. Fez isso em dois momentos.

Primeiro, a relatora Simone Tebet (MDB-MS) excluiu, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que mudou a lei eleitoral, a volta das coligações nas eleições proporcionais. Era uma manobra marota com que partidos fisiológicos tentavam aumentar as chances de sobrevivência nas eleições de 2022, as primeiras em que passarão a valer as regras para depurar o fragmentado sistema partidário brasileiro.

Segundo, o presidente Rodrigo Pacheco (DEM-MG) tomou a atitude sensata diante do Novo Código Eleitoral de 898 artigos, aprovado às pressas na Câmara. Constatou ser impossível votar lei tão abrangente no prazo necessário para que valesse já no ano que vem e decidiu dar tempo aos debates. Em consequência, o Brasil terá em 2022 eleições para o Parlamento sob a vigência de legislação mais razoável.

Por tudo isso, chama a atenção o tratamento dado à nova Lei de Improbidade Administrativa, cuja votação está prevista para esta semana. O relator do projeto recebido da Câmara, Weverton Rocha (PDT-MA), é réu em ações por peculato e... improbidade. Escolhido no dia 13, apresentou o relatório de 33 páginas em 24 horas sem acatar nem uma só das 42 emendas apresentadas (para evitar que o projeto tivesse de voltar a ser apreciado pelos deputados). É evidente a pressa para aprovar legislação mais branda com os corruptos.

Importante ressaltar que a Lei de Improbidade, em vigor desde 1992, precisa mesmo de mudanças. Anterior à Lei Anticorrupção e à Lei das Organizações Criminosas (ambas de 2013), foi durante muito tempo o único instrumento de que o país dispunha para combater a corrupção. Mas sua aplicação acabou desvirtuada. Ela tem funcionado para inibir bons profissionais de tomar parte na gestão pública, onde se veem sob ameaça constante de processos e evitam correr riscos diante de questões urgentes. Boa parte do atraso na produção do ingrediente ativo das vacinas pela Fiocruz se deve a temores inspirados pela Lei de Improbidade.

É correta, portanto, a principal mudança sugerida na nova lei: exigir comprovação de dolo para condenação. Do contrário, ela serviria para punir meros erros administrativos ou má gestão — que devem ser punidos, mas nas urnas, não nos tribunais. Só que o texto também traz mudanças cujo objetivo implícito é facilitar a vida dos corruptos.

A principal é a falha grosseira de não haver pena mínima para os crimes cometidos, além da redução nos prazos de prescrição e de períodos curtos para inquéritos apurarem desvios. O Senado tem a obrigação de corrigir esses e outros defeitos para que a nova lei iniba a corrupção sem afastar bons profissionais do serviço público. É preciso que, diante dela, o Senado saiba demonstrar a mesma sensatez que teve diante da contrarreforma eleitoral.

Não há mais tempo a perder na corrida pelo 5G

O Globo

Em meio à paralisia e à incompetência que campeiam no governo Bolsonaro, é auspiciosa a definição do dia 4 de novembro como data para o leilão das frequências destinadas à telefonia celular de quinta geração, o 5G. Depois de 15 meses de debates, o conselho diretor da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aprovou o edital na última sexta-feira. O recebimento dos documentos das teles interessadas começará no final de outubro. Não há mais tempo a perder.

Caso o cronograma seja cumprido, a tecnologia deverá ser oferecida nas capitais e em Brasília até o final de julho de 2022. Cidades menores também serão atendidas, num prazo mais longo. A inclusão desses municípios é um dos pontos positivos do que foi aprovado, por determinar a universalização de uma nova tecnologia que promete revolucionar várias esferas da vida e da economia.

O modelo de leilão adotado no Brasil ajuda a atingir esse importante objetivo. Em vez de dar ênfase à arrecadação para encher os cofres do governo, o leilão do 5G prevê que a maior parte dos recursos levantados será investida em infraestrutura de comunicação e na conectividade de áreas distantes dos grandes centros. Estima-se que a disputa entre as teles movimentará R$ 50 bilhões, pouco mais de R$ 10 bilhões destinados ao pagamento das outorgas.

Depois de muita negociação, o governo conseguiu acomodar interesses divergentes. As teles, preocupadas com os custos de implantação da nova tecnologia, fizeram pressão para que a fornecedora chinesa Huawei, já presente na rede brasileira e com produtos mais baratos, não fosse banida, como queriam o governo americano e as alas mais radicais do bolsonarismo. No edital, a Huawei não sofreu restrição.

Num aceno ao pedido dos Estados Unidos, o governo fez questão de incluir no edital a construção de uma rede privativa de comunicação para a administração pública federal. Antes de as obras começarem, é esperado que uma regra desqualifique a Huawei. A esta altura, isso é um mero detalhe. Tendo em vista que terão acesso ao mercado gigantesco das teles, qualquer reclamação dos chineses será meramente protocolar.

O Tribunal de Contas da União (TCU), ao analisar o texto, também fez uma ótima sugestão, mais tarde aprovada: cobertura de internet em todas as escolas de ensino básico até 2024 — parte com 5G, parte com uma versão menos potente ou 4G.

São incomensuráveis os benefícios de uma rede 5G. Não se trata apenas do aumento estonteante na velocidade de conexão. A nova tecnologia promete uma revolução na economia comparável ao advento da internet nos anos 1990. A comunicação entre máquinas se tornará mais ágil; na indústria e no agronegócio, as empresas terão como coletar mais dados, melhorando a produtividade; a medicina remota se tornará ubíqua; temas hoje esotéricos como “internet das coisas” ou “inteligência artificial” ganharão sentido mais concreto no dia a dia.

Claro que tudo isso não acontecerá de uma hora para outra. Dependerá de decisões tomadas pelas empresas nos próximos anos. As oportunidades demandarão investimentos e desenvolvimento de novas tecnologias. Mas que ninguém duvide: a partir do leilão, elas estarão abertas.

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