segunda-feira, 6 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

O vírus do autoritarismo

O Estado de S. Paulo

Se cada cidadão agir conscienciosamente como um anticorpo, a democracia pode destruir o vírus do autoritarismo

Há um processo de erosão das instituições democráticas no Brasil? Nossa democracia está em risco? Ao fim e ao cabo, vai ter golpe? Para enfrentar essas perguntas cada vez mais presentes – das redes sociais à academia, da imprensa às salas de jantar –, a Fundação FHC e o Estado promoveram um debate com diversos cientistas políticos.

Como em todo bom debate, prevaleceu a dialética. E, como reza a boa dialética, as disputas foram travadas sobre uma base de consenso. O consenso é de que há uma crise global da democracia caracterizada pela ascensão dos populismos e tremendamente agravada no Brasil pelo autoritarismo desabrido do presidente da República. Os dissensos versaram sobre o grau de resiliência das instituições.

Há risco de ruptura? Carlos Pereira foi categórico: “Não”. O Judiciário vem dando “sinais coerentes e consistentes”. Contrastando com a cisão entre garantistas e punitivistas à época da Lava Jato, as ameaças de Jair Bolsonaro “unificaram o Supremo”. No Legislativo, as Comissões de Inquérito cumprem o papel de fiscalizar e constranger o presidente. A imprensa, como com todos os governos na redemocratização, dispara diuturnamente suas críticas. Nossa democracia é “incerta, vibrante e competitiva”, disse Pereira, “e isso lhe dá vitalidade”.

Jairo Nicolau falou em um “dilema” entre um “otimismo estrutural” e um “pessimismo conjuntural”. A crise de representatividade, as dificuldades de renovação partidária e o desgaste diário provocado por Bolsonaro evidenciam um “mal-estar”. Mas não há precedentes históricos para uma “quebra institucional” das democracias contemporâneas; as estruturas constitucionais brasileiras não permitem uma distorção tão extrema; e, embora haja um amplo contingente conservador na população, as evidências mostram que a extrema direita é só uma minoria, estridente, mas marginal. Eleitores conservadores que elegeram Bolsonaro não endossariam aventuras golpistas e podem migrar para um candidato competitivo de centro-direita.

Mas, mesmo que as estruturas políticas e civis sejam resistentes a rupturas, a “tensão máxima” a que estão submetidas turva o foco nos problemas reais da sociedade, aumentando “o custo de operação da democracia”, advertiu Magna Inácio. Alguns cidadãos se radicalizam, outros se distanciam, geram-se incentivos à “desmobilização dos mecanismos de controle”, e os corporativismos correm soltos. Mesmo não sendo um choque abrupto, essa degradação leva a uma democracia atrofiada e ineficiente para sanar distorções estruturais como a desigualdade social.

O tom mais pessimista do debate foi dado por Sergio Fausto. “A ideia de que as instituições estão rodando conforme a sua concepção original é uma cegueira.” O presidente da República anuncia que as eleições serão fraudadas a menos que ele vença; blinda seus crimes de responsabilidade traficando emendas parlamentares; e incita a população à luta armada. Uma coisa é a sociedade desconfiar das instituições e seus representantes, outra é “uma força política organizada querendo romper com o sistema, dizendo-o claramente, insuflando quartéis”.

Se o desfecho parece inconclusivo, não é pela fraqueza do debate, mas pela força de seu objeto. A democracia é por natureza dramática. “Otimismo” e “pessimismo” são simplificações convenientes para descrever emoções, mas inadequadas para orientar escolhas. A democracia não está nem pode estar predestinada a um futuro “ótimo” ou “péssimo”. A cada dia ela traz novas oportunidades de conflito, mas também de conciliação. O ônus dessa liberdade é uma espécie de risco permanente. Mas, pago o seu preço – a eterna vigilância –, o seu bônus são reservas inesgotáveis de energia cívica.

Como um organismo invadido por um vírus, a democracia brasileira pode adoecer – e mesmo morrer –, mas a Constituição deu boa compleição ao seu corpo (o Estado) e vigor aos seus órgãos (as instituições). Se cada cidadão agir conscienciosamente como um anticorpo, a democracia pode destruir o vírus do autoritarismo e emergir mais forte e imune às suas variantes.

A democracia no mundo

O Estado de S. Paulo

Em 2020, deterioração da liberdade global foi inaudita, segundo a Freedom House

Não bastasse a mortandade de mais de 4 milhões de vidas e a devastação econômica, o vírus pressionou ainda mais a balança global em favor da tirania contra a democracia.

Segundo o relatório anual Liberdade no Mundo da Freedom House, 2020 foi o 15.º ano consecutivo de declínio na liberdade global. Em 2005, a organização identificava 89 países considerados “livres”; hoje são 82. Os países “não livres” passaram de 45 para 54. Menos de 20% da população mundial vive em um país livre. Mas a deterioração em 2020 foi inaudita: 3 em 4 pessoas vivem em um país que experimentou declínio. A “diferença democrática” – o número de países que melhoraram menos o de países que declinaram – foi a maior da série iniciada em 1995: 45.

Da Venezuela ao Camboja, os déspotas aproveitaram a crise sanitária para esmagar oponentes, enquanto o fechamento das fronteiras dificultou o apoio internacional a ativistas democratas. A pandemia deu a autocracias como China e Rússia a oportunidade de acusar a inferioridade “inerente” da democracia, ao mesmo tempo que ampliam sua influência internacional.

“A influência maligna do regime na China, a ditadura mais populosa do mundo, foi especialmente profunda em 2020”, seja pela campanha global de desinformação e censura, seja pela extensão transnacional dos abusos cometidos no país, como na demolição das liberdades e da autonomia de Hong Kong. Ao mesmo tempo, o regime comunista aumentou seu peso em instituições multilaterais como o Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Os regimes democráticos adotaram recorrentemente medidas excessivas de vigilância e restrições discriminatórias à liberdade de movimento e reunião, enquanto ondas de desinformação – muitas vezes propagadas pelas próprias autoridades, como no Brasil – obliteraram a disseminação de informação confiável ao preço de incontáveis vidas.

A democracia mais populosa do mundo, a Índia, caiu do status de “livre” para “parcialmente livre”. O regime de Narendra Modi continuou a reprimir seus críticos e utilizou o combate à covid-19 como pretexto para deslocar milhões de migrantes domésticos, enquanto as hostes nacionalistas hindus culparam desproporcionalmente as comunidades muçulmanas pela disseminação do vírus, materializando essa hostilidade em surtos populares de violência.

A crise da democracia norte-americana atingiu seu apogeu com a invasão do Capitólio. Embora o presidente Joe Biden tenha iniciado seu mandato prometendo restaurar a unidade da Nação, nada indica que a chamada guerra civil cultural – seja entre os partidos Republicano e Democrata, seja, no interior de cada partido, entre extremistas e moderados – arrefecerá num futuro próximo. Isso dificultará ainda mais aos EUA resgatar sua credibilidade mundial e liderar uma coalização democrática.

A pandemia também serviu de pretexto para reprimir a onda de protestos populares que eclodiu em 2019 em nome de mais transparência e melhor governança. Se protestos bem-sucedidos no Chile ou Sudão levaram a aprimoramentos democráticos, os regimes despóticos aproveitaram a distração mundial para esmagar movimentos de resistência: quase duas dúzias de países que experimentaram grandes protestos em 2019 sofreram declínio nas liberdades em 2020.

O caso de Taiwan é exemplar tanto do vigor da democracia como das ameaças a ela. Valendo-se de sua experiência com a Sars e apostando em métodos científicos, o país foi extraordinariamente eficaz em combater o vírus sem agressões às liberdades civis. Mas Taiwan enfrenta a contínua hostilidade da China, a cada dia mais próxima de uma ofensiva militar.

“A liderança e a solidariedade global dos estados democráticos é urgentemente necessária”, conclui a Freedom House. “Os governos que compreendem o valor da democracia, incluindo a nova administração em Washington, têm a responsabilidade de se reunirem para entregar seus benefícios, combater seus adversários e apoiar seus defensores.” Empenhar-se nessa missão não é tarefa fácil, mas também não é uma opção: é questão de vida ou morte da liberdade.

O ambiente de negócios na pandemia

O Estado de S. Paulo

Governo contribui para deterioração da imagem do País para investidores internacionais

O Brasil é a maior economia da América Latina e a 12.ª do mundo, mas segue patinando nos últimos pelotões globais em termos de ambiente de negócios. Segundo o Ranking Global de Competitividade anual da escola de administração suíça IMD, após quatro anos de ligeira melhora, o País caiu uma posição e está em 57.º lugar entre 64 países.

O ranking deste ano reflete a resistência das economias em face da pandemia. Em geral, os países da Europa e Ásia se saíram melhor. “O relatório verificou que qualidades como investimento em inovação, digitalização, benefícios sociais e liderança resultante em coesão social ajudaram as economias a amortecer melhor a crise.” Ou seja, quase ponto por ponto um receituário daquilo que o Brasil não fez.

A única exceção talvez seja o esteio social, e o relatório reflete isso. Apesar das tergiversações do governo, o Congresso aprovou medidas emergenciais de apoio a famílias e empresas, o que – mais as exportações de commodities – respondeu pela melhora no indicador de desempenho econômico, da 56.ª posição, em 2020, para a 51.ª, em 2021. Mas, se isso refreou uma deterioração ainda maior da competitividade do País a curto prazo, nem de longe basta para sustentá-la, muito menos alavancá-la a médio prazo.

“A inovação é a pedra angular de uma performance de longo prazo, com a educação e outros fatores orientando tanto uma força de trabalho produtiva quanto a pesquisa.” São elementos capitais para explicar o bom desempenho dos líderes do ranking, como Suíça, os países nórdicos ou Cingapura. Já a educação brasileira é considerada a pior entre todos os países.

Em termos de qualidade dos gastos do governo, o Brasil também está na última posição. A procrastinação das reformas administrativa e tributária e a elevação da dívida pública também contribuem para que o País seja considerado o terceiro pior no quesito políticas governamentais.

O mau desempenho indicado pela IMD é corroborado pela radiografia do Banco Mundial Doing Business Subnacional Brasil 2021. O estudo verificou boas práticas em Estados de diferentes níveis de renda, regiões e tamanhos, sugerindo uma oportunidade de troca de experiências. Mas mesmo os líderes nos cinco principais critérios ainda estão abaixo da média dos países da OCDE.

Segundo a especialista em desenvolvimento do setor privado do Banco Mundial, Laura Diniz, a complexidade de negócios e a burocracia são desafios em todos os Estados. As principais causas incluem a falta de coordenação entre as agências envolvidas nos processos e uma implementação desigual e fragmentada dos programas de reforma. Não surpreende que no Ranking de Competitividade o Brasil esteja na 60.ª posição em termos de coesão social.

“Sem entrar no lado político”, disse ao Valor o pesquisador do IMD José Caballero, “desde 2019 temos notado uma queda na imagem do Brasil no exterior, na percepção dos executivos, provavelmente por questões de uma fraqueza nas instituições, enorme burocracia, corrupção, falta de transparência e preocupação com o Estado de Direito.”

A imagem ou “marca” do País amarga a 61.ª posição. Mesmo que Caballero não tenha tratado do aspecto político, é evidente que, junto a mazelas estruturais e exógenas aos negócios, como a criminalidade ou a desigualdade, a conjuntura de um governo retrógrado em questões de alta sensibilidade para a comunidade global – como a preservação ambiental, a gestão da pandemia ou a proteção das minorias – contribui para a deterioração da imagem do País com os investidores internacionais. No indicador cultura nacional, o Brasil despencou 16 posições.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, continua a ecoar promessas de uma “primavera liberal”, quando os dados escancaram um interminável inverno. Em franco alheamento da realidade, Guedes garante que o Brasil saltará do 124.º lugar no ranking global do Doing Business para os Top50. “A economia brasileira está de novo em uma rota surpreendente”, disse há poucos dias. Será preciso combinar não só com os “russos”, mas com todos os demais executivos internacionais.

Impasse indígena

Folha de S. Paulo

STF fará bem em remover marco temporal, o que não chega a pacificar demarcação

O Supremo Tribunal Federal tem a missão de desfazer parte da insegurança jurídica criada com a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas. A incerteza se arrasta desde o caso da área Raposa Serra do Sol, em 2008.

Saíram derrotados, na oportunidade, plantadores de arroz que haviam invadido áreas de várias etnias em Roraima. O ministro Carlos Alberto Menezes Direito incluiu em seu voto e o acórdão consagrou a noção de que indígenas só teriam reconhecido o direito a terras que ocupassem em 1988, ano da da promulgação da Constituição.

A tese conflitava com a letra e o espírito da Carta. Em seu artigo 231, ela assegura: “São reconhecidos aos índios [...] os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Tratava-se ali de terras “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

O STF explicitou a seguir que, no caso da própria terra roraimense, não cabia recurso de arrozeiros baseado no marco temporal. Mas sua Segunda Turma negou reconhecimento de outras três terras invocando a tese controversa, e a judicialização crescente fomentou insegurança para todas as partes.

A Advocacia-Geral da União deu guarida ao marco em 2012 (governo Dilma Rousseff) e 2017 (Michel Temer). Apoiado nesses pareceres, dezenas de processos foram devolvidos à Funai no atual governo, contrário a demarcações.

O Supremo usou recurso da Funai a favor de uma terra dos Xokleng em Santa Catarina para estipular, em 2019, que o desfecho teria repercussão geral. Ou seja, valeria para todas as decisões judiciais arguindo o marco temporal —a definição agora examinada pela corte.

Em realidade, não convém ao agronegócio como um todo tal restrição a direitos indígenas. A reputação do setor, sobretudo da parcela mais arejada na exposição ao mercado global, já padece com a destruição da Amazônia.

Os conflitos reais hoje se restringem a pequenas áreas em estados como Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Bahia, onde etnias expulsas de suas terras se viram ameaçadas de extinção.

Se é fato que 13,8% do território nacional já se destina a áreas indígenas, cabe assinalar que 98,3% disso está na Amazônia, onde se registra mais assédio de garimpeiros que de agricultores.

Entidades ruralistas alegam que, sem o marco temporal, os territórios poderiam cobrir mais de um quarto do Brasil e causar prejuízos bilionários para as safras. Não convém debater a questão, de fato complexa, com catastrofismo.

O STF fará bem em remover o marco —o que, de todo modo, não basta para eliminar a judicialização. O processo de demarcação seguirá nas mãos do Executivo, a depender das inclinações do governo de turno, e sujeito a questionamentos de todas as partes.

Estudo da injustiça

Folha de S. Paulo

É oportuna iniciativa do presidente do STF para reduzir prisões de inocentes

A série Inocentes Presos, publicada pela Folha em maio, debruçou-se sobre 100 casos de erros judiciários, 42% deles decorrentes de problemas de reconhecimento.

As mazelas do sistema brasileiro incluem ainda o encarceramento em massa de presos provisórios, sem julgamento, e o racismo —negros sofreram 71,5% das injustiças listadas nas reportagens.

Diante de tal cenário, é oportuna a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, de criar um grupo de trabalho para desenvolver protocolos no âmbito do Conselho Nacional de Justiça com vistas a evitar erros de reconhecimento em prisões.

O artigo 226 do Código de Processo Penal já estabelece um rito para a identificação, o que inclui a descrição do autor do crime pela vítima e, depois, a colocação de pessoa suspeita ao lado de outras que com ela tiverem semelhança.

Frequentemente esse procedimento é desrespeitado e visto como mera recomendação, apesar de precedente em 2020 do Superior Tribunal de Justiça no sentido de se tratar de uma exigência legal.

Mesmo a lei processual não dá conta dos avanços mais recentes sobre psicologia e erro judicial. A memória humana é falha; basear uma condenação apenas nela tende a produzir injustiças.

O CNJ pode avançar, dentro de sua competência, em outras medidas, de treinar profissionais para conduzir o reconhecimento de acordo com a lei a evitar enviesamentos por parte das vítimas. Devem-se evitar distorções como o uso de fotografias de suspeitos na internet.

Para um debate mais amplo, este jornal defende que se revisem leis e práticas judiciais de modo a evitar o encarceramento —que, idealmente, deveria ser limitado aos casos de criminosos violentos.

Tanto quanto possível, deve-se caminhar rumo a penas alternativas, desde que rigorosas o bastante para o efeito de dissuasão de práticas delituosas. Superlotar penitenciárias acaba por fomentar mais violência e fornecer mão de obra para facções organizadas.

Ainda improvável, estagflação é um risco no horizonte

Valor Econômico

A estabilidade de preços, porém, só é possível enquanto o governo for percebido como solvente

Um levantamento das expectativas dos analistas econômicos do mercado feito pelo Valor mostra que eles, cada vez mais, estão pintando um cenário de menos crescimento econômico e de mais inflação para o ano que vem. O risco de estagflação, embora aparentemente exagerado para o momento atual, não pode ser desprezado.

Duas notícias na semana passada reforçaram a tendência de deterioração nas expectativas do mercado. De um lado, o Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre, que ficou praticamente de lado, com um recuo de 0,1%. De outro, o aumento da bandeira tarifária de energia elétrica, que eleva os prognósticos para a inflação.

A mediana das projeções das 50 empresas de consultoria e instituições financeiras consultadas aponta uma expansão do PIB de 5,2% em 2021 e de 1,7% para 2022. É um número muito baixo, considerando que o chamado carrego estatístico deste ano para o próximo está em cerca de 1%. Ou seja, se o PIB ficar parado no ano que vem, crescerá 1%.

Já as estimativas para a inflação deste ano chegam a 7,8%, e a 3,9% para o próximo. Elas pioraram depois do reajuste de 49,6% na bandeira tarifária vermelha de energia elétrica, que eleva a conta de luz em cerca de 7,3%. O impacto estimado por consultores no Índice de Preço ao Consumidor Amplo (IPCA) é de cerca de 0,3 ponto percentual.

Em tese, o reajuste mais salgado da energia elétrica em 2021 deveria favorecer um pouco o cenário inflacionário para 2022, pois crescem as chances de uma reversão pelo menos parcial dos aumentos. Mas, pelo levantamento do Valor, não houve recuo significativo em relação aos 3,95% projetados na pesquisa Focus de expectativas do BC.

A revisão dos prognósticos para o IPCA neste ano desperta dois tipos de preocupação. Primeiro, com uma maior inércia inflacionária para 2022. O IPCA chega a patamares tão altos que, possivelmente, vão afetar negativamente os cálculos das empresas e sindicatos na fixação de preços e salários na economia.

Outra preocupação é fiscal. O governo contava com uma folga no orçamento criada justamente pela discrepância entre a inflação mais alta nos 12 meses até junho, que corrige o teto de gastos, e a inflação acumulada em 2021, que indexa as despesas, como o pagamento de pensões e aposentadorias.

Sem esse espaço para acomodar mais despesas, crescem as pressões para driblar o teto de gastos. As manobras fiscais do governo são, hoje, a principal ameaça à inflação e ao crescimento. Quanto mais ruído, mais apertadas as condições financeiras, o que afeta o PIB, e mais alta a cotação do dólar, que afeta a inflação.

O quadro geral para 2022 não é bom - e vai piorando - mas parece um tanto precipitado falar em estagflação. No entanto, dependendo de como evoluírem as coisas em Brasília, esse é o destino do país.

A economia brasileira sofreu uma série de choques de oferta, que, no conjunto, levam a menos crescimento e mais inflação. A alta dos preços das commodities, que poderia ajudar, não foi acompanhada de apreciação cambial, devido aos riscos político e fiscal. A crise hídrica representa uma restrição à capacidade de crescimento da economia, além dos preços maiores.

Mas, pelo menos por enquanto, nada disso impede que o Banco Central cumpra o seu mandato de estabilidade monetária. A alta de juros, que autoridade monetária sinaliza levar ao campo restritivo, vai conter a demanda agregada e fazer com que a economia opere abaixo do pleno emprego.

O esfriamento da atividade deve surtir o efeito esperado de diminuir a inflação. A pesquisa do Valor, como dito, mostra uma desaceleração das expectativas de inflação, de 7,8% em 2021 para 3,9% em 2022. Ainda segue acima da meta, de 3,5%, mas pelo menos está na direção certa.

A estagflação é um risco no caso de os mercados perceberem que o Banco Central é incapaz de cumprir a sua missão. Isso aconteceu no governo Dilma, quando eram grandes as dúvidas sobre a autonomia de fato da autoridade monetária.

Hoje, o Banco Central é legalmente independente e, em tese, pode perseguir as metas de inflação neste e no próximo governo, a ser eleito em 2022. A estabilidade de preços, porém, só é possível enquanto o governo for percebido como solvente. Com os ataques às instituições fiscais, sobretudo o teto de gastos as dúvidas sobre a capacidade do BC controlar a inflação tendem a crescer. Nesse ambiente, há sim o risco de o país voltar à estagflação.

Portarias de restrição de uso de terras indígenas precisam ser renovadas

O Globo

São áreas protegidas legalmente porque em seus domínios há vestígios de índios isolados ou de contato recente

Enquanto o Supremo está às voltas com a controversa decisão sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas, mais de 1 milhão de hectares e seus habitantes ficarão ainda mais vulneráveis à ação de madeireiros, grileiros e garimpeiros caso a Funai não renove as portarias de restrição de uso e ingresso de terceiros prestes a expirar.

São áreas protegidas legalmente porque em seus domínios há vestígios de índios isolados ou de contato recente: Piripkura, em Mato Grosso; Jacareúba/Katawixi, no Amazonas; Pirititi, em Roraima; e Ituna-Itatá, no Pará. Caso a presença seja confirmada, a portaria de restrição de uso se torna o primeiro passo para a demarcação. O instrumento, que não se aplica a reservas já homologadas, impede a exploração de recursos naturais e a expansão das propriedades rurais.

Sem fixar datas, a Funai afirma que “adotará providências administrativas e técnicas conforme estudos que estão em fase de elaboração para subsidiar a tomada de decisão acerca das portarias”. Mas a decisão não pode ser mais lenta que a rápida devastação em terras indígenas. No caso de Piripkura, a portaria só vale até o próximo dia 18. A restrição de uso expira em 1º de dezembro para Jacareúba/Katawixi, em 5 de dezembro para Pirititi e em 9 de janeiro de 2022 para Ituna-Itatá.

A incerteza quanto ao futuro das terras ligou o alerta de entidades de defesa dos índios. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato criaram um abaixo-assinado on-line para cobrar da Funai a renovação das portarias. Alertam sobre o risco de os índios serem dizimados.

A preocupação se justifica. Segundo o Relatório Anual do Desmatamento no Brasil do MapBiomas, duas das quatro terras indígenas objetos do abaixo-assinado estão entre as 25 mais desmatadas no Brasil em 2020. A Ituna-Itatá é a segunda da lista, com 3.563 hectares devastados, gerando 72 alertas — cada alerta corresponde a um evento de desmatamento detectado nas imagens de satélite. Em Pirikpura, foram desmatados 568 hectares, com quatro alertas. Ainda segundo o relatório, 297 das 573 terras indígenas foram alvo de desmatamento no ano passado. E a devastação cresceu 31% em relação a 2019.

Os dados do MapBiomas não surpreendem. O presidente que assumiu em 2019, Jair Bolsonaro, tem o objetivo declarado de desmontar quanto puder a estrutura de proteção ao índio e ao meio ambiente, “passando a boiada”, conforme resumiu o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Já declarou que não demarcará terra indígena alguma em seu governo.

Independentemente do que o Supremo decida sobre o marco temporal, a renovação das portarias é questão premente. O governo parece encarar as reservas como entrave à economia, em vez de um direito constitucional dos índios que, por tabela, contribui para a preservação ambiental.

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