quarta-feira, 8 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

O dia seguinte

O Estado de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro exibiu ontem exatamente o que tem mostrado desde o início do mandato: sua irresponsabilidade e seu isolamento político

O presidente Jair Bolsonaro exibiu ontem exatamente o que tem mostrado desde o início do mandato: sua irresponsabilidade e seu isolamento político. Tratadas nas últimas semanas como prioridade nacional pelo Palácio do Planalto, as manifestações bolsonaristas do 7 de Setembro serão interpretadas pelo presidente como a prova de que o “povo” o apoia, mas um presidente realmente forte não precisa convocar protestos a seu favor nem intimidar os demais Poderes para demonstrar poder; apenas o exerce. Assim, Bolsonaro reiterou sua fraqueza, já atestada por várias pesquisas que indicam o derretimento de sua popularidade.

Os atos – que configuraram evidente campanha eleitoral antecipada, bancada parcialmente com recursos públicos – revelaram também que, depois de tantas ameaças proferidas, Jair Bolsonaro já não tem muito mais o que falar de novo a seus seguidores. Ontem, chegou a dizer que convocaria o Conselho da República, órgão previsto na Constituição para consulta sobre “intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio”, além de “questões relevantes para a estabilidade das instituições democráticas” (art. 90).

“Amanhã, estarei no Conselho da República, juntamente com os ministros. Para nós, juntamente com o presidente da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, com esta fotografia de vocês, mostrar para onde nós todos deveremos ir”, disse Jair Bolsonaro, em seu dialeto trôpego. Os três presidentes citados, Arthur Lira, Rodrigo Pacheco e Luiz Fux, disseram desconhecer a tal reunião. Como é de seu feitio, Bolsonaro trata assunto sério de forma leviana.

Se as manifestações tiveram considerável afluência, algo até previsível ante o fato de que o presidente passou os últimos dois meses usando sua tribuna privilegiada para convocar sua militância, o fato inexorável é que o governo exatamente continua no mesmo lugar. E os problemas nacionais continuam os mesmos. A rigor, por força de Bolsonaro, eles até se agravaram nas últimas semanas: aumentou o pessimismo, decaiu a confiança, cresceu o desalento. A saída da crise social e econômica está mais distante.

Não há como negar. É patente o descaso do presidente com a realidade do País. Basta ver que, diante da inflação crescente e ao emprego em baixa, a aposta de Bolsonaro, interessado somente em permanecer no poder e proteger sua prole e a si mesmo da Justiça, continua sendo acirrar tensões com os outros Poderes e sugerir a possibilidade de uma ruptura institucional. Em seu léxico, não há solução.

Eis a grande disfuncionalidade dos atos bolsonaristas de 7 de Setembro. Por mais que pretendam demonstrar apoio, as manifestações são incapazes de modificar a natureza dos reais desafios do Palácio do Planalto. Os problemas continuam os mesmos e tendem a se agravar, já que é cada vez mais explícito o desinteresse de Jair Bolsonaro em enfrentá-los.

Por mais que Bolsonaro não goste da ideia, há um País a ser governado. Havia antes do 7 de Setembro e continuará a haver depois. São muitos os assuntos a respeito dos quais se deve esperar uma atitude responsável por parte do presidente, como o enfrentamento da pandemia e a gestão da crise hídrica. Vidas, empregos e o futuro das novas gerações estão em risco.

É esse cenário de desolação que se apresenta aos olhos da população todos os dias, seja feriado ou dia útil, tenha motociata presidencial ou não. Os índices de desaprovação recorde do governo Bolsonaro são um dos sintomas desse quadro disfuncional.

O governo Bolsonaro é muito ruim. Não cumpriu o que prometeu e não trabalha para melhorar as condições de vida da população. Como se viu ontem mais uma vez, sua tática atinge inauditos padrões de irracionalidade, com propostas de tom golpista: ameaçar os outros Poderes e contestar por antecipação o resultado das próximas eleições.

A manobra pode ter alguma serventia nas redes sociais. Na vida real, os preços dos alimentos sobem, as oportunidades de emprego não aparecem, os investimentos se ressentem, os jovens ficam sem a devida formação. Esse é o dia seguinte.

4,1 bilhões de pessoas sem proteção

O Estado de S. Paulo

Um bom sistema de proteção social não é apenas um imperativo moral, mas econômico

O vírus não faz distinções de classe. Ricos ou pobres, qualquer um pode ser a sua próxima vítima. Ao expor a vulnerabilidade de todos, a pandemia explicitou como o bem-estar de cada indivíduo está conectado ao bem-estar da coletividade. O ideal da solidariedade (“estamos todos juntos”) se disseminou por todo o planeta, dos discursos de líderes mundiais e slogans publicitários às publicações nas redes de pessoas comuns confinadas em suas casas.

Não se pode duvidar da sinceridade dessas manifestações. Mas os impactos socioeconômicos da crise são um teste à sua consistência. Nesse quesito, não estamos todos juntos. Ao contrário: a pandemia aumentou a distância entre os países ricos e pobres e entre os indivíduos ricos e pobres em cada país.

As respostas das políticas de proteção social foram sem precedentes. Mas as dos países ricos foram muito mais robustas. Isso expõe a íntima correlação entre desenvolvimento e proteção social. De acordo com o relatório Proteção Social Global 2020-22 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os países de renda alta gastam 16,4% do PIB em proteção social, enquanto os de renda baixa gastam 1,1%. 

O dado serve de advertência a todos os que pensam em proteção social apenas em termos de assistencialismo aos necessitados com recursos dos privilegiados. Entre o crescimento econômico e a proteção social, é ocioso indagar qual é a causa e qual é a consequência: ambos se retroalimentam em um círculo virtuoso. Um bom sistema de proteção social não é só um imperativo moral, mas econômico: é um dos fatores que levam à prosperidade de um país. “Uma proteção social abrangente não é essencial apenas para a justiça social e o trabalho decente”, adverte a OIT, “mas também para criar um futuro sustentável e resiliente.”

Apesar disso, só 47% da população mundial é coberta por ao menos um mecanismo de proteção, enquanto 53% não gozam de qualquer benefício por parte de seus governos. São 4,1 bilhões de pessoas entregues à própria sorte.

Em todo o mundo, só 1 em 4 crianças e 1 em 3 pessoas com deficiências graves recebem algum benefício. A cobertura por desemprego é ainda menor: 18% dos trabalhadores. Há ainda as distorções entre grupos sociais. Os países gastam, por exemplo, 7% de seu PIB com aposentadorias, enquanto a proteção social às crianças responde por apenas 1%. Tudo isso, em média, sem contar as disparidades entre países ricos e pobres.

Regionalmente, Europa e Ásia Central têm as maiores taxas de cobertura: 84% de sua população é servida por ao menos um benefício. Nas Américas, são 64%; Ásia e Pacífico, 44%; Estados Árabes, 40%; e África, 17,4%.

O Brasil tem boa cobertura (70% da população), em alguns casos exemplar (100% das pessoas com deficiência). Nos gastos, o País também está bem posicionado. Sem contar a saúde, são 15,7% do PIB (no mundo, são 12,9%; na América Latina, 10%; nos demais países de renda média-alta, 8%; e nos de renda-alta, 16,4%). Mas o Brasil também reproduz – e mesmo exacerba – algumas distorções. Os benefícios para crianças, por exemplo, respondem por apenas 0,5% do PIB, enquanto para os idosos são 9,7% – acima dos países de renda média-alta (5,3%), e mesmo dos de renda-alta (8,5%), cuja população em geral é mais envelhecida.

À medida que o Brasil e os demais países elaboram suas estratégias de recuperação, é preciso ter claro que fortalecer os sistemas de proteção social não serve apenas para reduzir a pobreza e a desigualdade, mas para aumentar a produtividade e revigorar o contrato social.

A ameaça universal e indiscriminada do vírus é um “poderoso lembrete” de que “nosso bem-estar e destinos estão intimamente entrelaçados”, disse o diretor da OIT, Guy Ryder. “Se algumas pessoas não podem contar com um auxílio quando estão doentes ou em quarentena, então a saúde pública é prejudicada e nosso bem-estar coletivo, ameaçado.” Analogamente, se as pessoas vulneráveis por qualquer outra razão não podem contar com algum tipo de proteção, todas sofrem os males de viver em uma sociedade mais injusta e menos próspera.

Pesadelo nas projeções

O Estado de S. Paulo

Temores do mercado já contaminam até a estimativa de crescimento de 2023

Mais sombrias a cada semana, as projeções compõem um cenário de pesadelo, com crescimento econômico de apenas 1,93% no próximo ano. O pessimismo já contamina as estimativas para 2023, início do novo período presidencial, com expansão de 2,35% projetada para o Produto Interno Bruto (PIB). Uma semana antes ainda se apostava em 2,50%. Se nenhum processo o afastar do cargo, o presidente Jair Bolsonaro completará seu mandato, no fim de 2022, com economia emperrada, inflação acima da meta, dólar caro e juros nas alturas.

No fim de quatro anos desastrosos, o País continuará com desemprego elevado, negócios desarranjados, inflação fora dos padrões internacionais e mais algumas posições perdidas na corrida internacional. Os números são do boletim Focus, baseado em consultas a cerca de cem instituições do mercado e distribuído na segunda-feira pelo Banco Central (BC). A tensão política, as ameaças do presidente à ordem institucional e as incertezas sobre as contas públicas têm afetado o mercado de ações, o câmbio, os juros e as expectativas.

Em quatro semanas o crescimento do PIB esperado para este ano caiu de 5,30% para 5,15%. No mesmo período a expansão calculada para 2022 passou de 2,05% para 1,93%. O avanço apontado para os anos seguintes correspondia ao potencial estimado de 2,50%. Mas nem isso se espera mais para 2023. Além disso, a sucessão de informações econômicas negativas leva à frequente revisão das expectativas. No começo do mês as contas nacionais do segundo trimestre mostraram recuo de 0,1% do PIB. Logo depois, um relatório mostrou o mau desempenho da indústria em julho, com produção 1,3% menor que a de junho. 

Ao mesmo tempo, informações de várias fontes continuaram mostrando a piora do quadro inflacionário. A referência oficial mais importante, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), apontou inflação próxima de 9% nos 12 meses até julho. Na prévia de agosto, o IPCA-15, a alta de preços acumulada no período equivalente a um ano chegou a 9,30%. Pode haver alguma oscilação até o fim do ano, mas nenhum sinal de acomodação apareceu até agora. Segundo o boletim Focus, a inflação deve chegar neste ano a 7,58%, ultrapassando de longe a meta (3,75%) e o limite superior de tolerância (5,25%). As estimativas para 2022 também têm subido e chegaram a 3,98%, número bem superior ao objetivo central, fixado em 3,50%.

A inflação disparada continuará dificultando o consumo familiar e prejudicando, portanto, a atividade da indústria e o ritmo geral da economia. Segundo a última projeção, a produção industrial deve aumentar 6,28% neste ano. A expansão esperada para 2022 chegou a 2,01%. Uma semana antes a expectativa era de 2,20%. Aponta-se uma melhora em 2023 (para 3%), mas sem um deslanche efetivo. Todos os números compõem um quadro de desarranjo e mediocridade.

Diante da inflação intensa e persistente, o BC deverá insistir no aperto monetário, com crédito curto e caro. A taxa básica de juros esperada para o fim deste ano subiu em quatro semanas de 7,25% para 7,63%. A expectativa para 2022 passou, no mesmo intervalo, de 7,25% para 7,75%. Mesmo assim, a inflação só deverá chegar à meta em 2023, quando ficará, segundo se estima, em 3,25%. Todos os números do boletim correspondem às medianas das projeções.

As incertezas políticas e econômicas têm mantido alta a cotação do dólar. Pelas projeções, a moeda americana custará R$ 5,17 no fim de 2021 e R$ 5,20 no fim do próximo ano. Se as projeções estiverem certas, o câmbio continuará sendo um fator inflacionário. A instabilidade cambial refletirá, como até hoje, principalmente o dia a dia de Brasília. Esse dia a dia tem sido marcado pela atuação destrutiva do presidente. Ele briga com representantes de outros Poderes, acena com ruptura institucional, negocia com uma base fisiológica e cobra de seus auxiliares medidas populistas e eleitoreiras, sem cuidar da sustentabilidade das contas públicas. Por trás do cenário de pesadelo do boletim Focus há esse pesadelo real centrado em Brasília.

O mito na caverna

Folha de S. Paulo

Atos do 7/9 confirmam isolamento progressivo de Bolsonaro rumo à inviabilidade

Os protestos do Dia da Independência mostraram um Jair Bolsonaro cada vez mais atrelado a seu cordão de fanáticos e isolado da institucionalidade e da maioria da população. O mito, como é chamado por bajuladores, enfurna-se na caverna da inviabilidade política.

Nenhum chefe de Poder nem governador perfilou-se ao lado do presidente da República na sua jornada de epifania golpista. As concentrações de manifestantes foram expressivas, embora muito longe de excepcionais. A nota positiva foi seu caráter pacífico.

Ainda que dez vezes mais pessoas houvessem comparecido, a intentona autoritária do chefe do governo estaria embalada numa minoria farfalhante que se desgarrou das aspirações democráticas de 3 em cada 4 brasileiros.

Nos discursos, Jair Bolsonaro ameaçou o Supremo Tribunal Federal e o seu presidente, Luiz Fux, de um golpe caso não se submetam aos caprichos do projeto de ditador. Exortou à desobediência de ordens do ministro Alexandre de Moraes. As novas afrontas não podem passar incólumes pela Câmara dos Deputados e pela Procuradoria-Geral da República.

A utilização de recursos públicos caríssimos, como aeronaves e aparato de segurança, em atos de óbvia e única motivação político-partidária tem tudo para alimentar ações na Justiça que poderão redundar na inabilitação do presidente para candidatar-se ao segundo mandato em 2022.

Bolsonaro também fez insinuação tosca sobre promover uma reunião do Conselho da República, entidade que opina em situações de instabilidade institucional e de segurança, mas foi ignorado por autoridades integrantes do órgão, que pelo visto não darão azo a mais esse esbirro subversivo.

Na véspera, o mandatário havia assinado medida provisória proibindo plataformas da internet de retirar do ar conteúdos que violem as suas regras de uso. A abstrusa intervenção, que deveria ser devolvida pelo presidente do Congresso Nacional por choque vertical com a Constituição, destinou-se tão somente a inflamar os atos.

O mandatário, como se nota, tornou-se prisioneiro da lógica da agitação pela agitação. Precisa criar um factoide por minuto a fim de manter mobilizado seu círculo de idólatras. Não é justo, no entanto, que carreie nesse vórtice as energias institucionais de uma nação assolada por uma epidemia mortal, pela carestia e pelo desemprego.

O melhor modo de enfrentar a ameaça com o menor dano possível ao futuro do país é tomar a via oposta à que trilha Bolsonaro, que fala muito, mas trabalha pouco. A reação deveria fugir do ruído e funcionar nas atitudes, nas investigações, nos processos e na responsabilização pela profusão de desmandos do presidente da República.

O Estado democrático de Direito dispõe de remédios eficazes contra a tirania. Que sejam administrados em dose neutralizante ao corpo estranho que tenta açambarcar a República.

Vírus da politização

Folha de S. Paulo

Privilegiar outra vacina contra a Covid na 3ª dose não desmerece a Coronavac

Tornou-se já cansativo acompanhar a politização das vacinas na qual se engalfinham os governos federal e paulista desde os primeiros tempos da pandemia. Do primeiro, de fato, não se poderia esperar outra conduta.

O maniqueísmo reemergiu com o debate sobre uma terceira dose na imunização contra a Covid-19. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou normativa que excluía a Coronavac do reforço, dando preferência aos produtos da Pfizer e da AstraZeneca.

A cúpula do Instituto Butantan denunciou que a pasta excluíra o produto sino-paulista por negligenciar a reposição de estoque. O descredenciamento da Coronavac careceria de comprovação científica, alegou o diretor Dimas Covas.

Não se pode acusar Queiroga de imparcialidade, decerto, mas nem por isso Covas se cobre de razão. Apenas quem se engaja na polarização faz pouco caso de evidências para perfilar-se de pronto em um dos lados da rusga.

A melhor pesquisa vem favorecendo a aplicação de terceiras doses em esquema heterólogo, com vacina diversa da usada na primeira imunização. Vai surgindo consenso também por privilegiar vacinas de mRNA, como a da Pfizer, por induzirem resposta mais robusta, particularmente em idosos.

Apesar disso, o governo João Doria (PSDB) faz cavalo de batalha pela imunização com qualquer produto disponível. Isso implica dar a terceira Coronavac, ao menos em alguns casos, para os mais velhos que começam a receber o reforço.

Tendo em vista que o contingente de pessoas com mais de 90 ou 80 anos é relativamente pequeno, faz sentido um esforço logístico para reservar-lhes o imunizante com tecnologia de mRNA. A Coronavac, baseada em vírus inativados, deveria ser direcionada para acelerar a aplicação da segunda dose.

Mesmo no estado de São Paulo, um dos mais adiantados, a imunização completa só alcançou 40% da população. Há ainda trabalho pela frente até se poder falar em imunidade comunitária.

O governador e sua equipe devem deixar a precipitação e manter a racionalidade que ajudou a impor a vacinação como pauta nacional.

Bolsonaro tem é de largar o golpismo e começar a trabalhar

O Globo

Quem fala a toda hora em ficar “dentro das quatro linhas da Constituição” na certa não vê a hora de ultrapassá-las. Hoje foi o dia em que o presidente Jair Bolsonaro chegou mais perto disso, nas palavras que dirigiu às multidões espalhadas pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e pela Avenida Paulista, em São Paulo.

O problema para Bolsonaro, cuja popularidade está no nível mais baixo desde que assumiu, é não conseguir nem sair das quatro linhas do cercadinho do Alvorada para entender o Brasil real. O Brasil da inflação, do desemprego, do rombo orçamentário, da crise hídrica e da pandemia. Ele só falou o idioma que seu público entende, repetiu as mentiras de sempre sobre a lisura das eleições e o “voto auditável”, subiu o tom nas ameaças ao Supremo e às instituições e contribuiu para agravar a crise entre os Poderes — mas saiu do palanque menor do que entrou.

A “fotografia para mostrar para o Brasil e para o mundo” do 7 de Setembro traz um presidente a cada dia mais isolado politicamente, a quem pouco resta senão fazer acenos golpistas e reunir suas tropas para o momento em que tentará avançar sobre quem vê como inimigo. Daí o esmero nas ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF), em particular ao ministro Alexandre de Moraes, cujas decisões afirmou que não cumpriria mais. Se isso ocorrer, poderia configurar crime de responsabilidade. Bolsonaro se saiu ainda com a estapafúrdia convocação do Conselho da República, organismo que pode recomendar decretação de estado de emergência ou sítio. Chefes de outros Poderes nem haviam sido informados.

Em Brasília, deu um “ultimato para todos os que estão na Praça dos Três Poderes”. “Cada um de nós deve se curvar à nossa Constituição Federal”, disse. “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu [ministro], ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos.” A provocação foi dirigida ao presidente do Supremo, Luiz Fux. Obviamente, ministros do STF são independentes, e não cabe a Fux “enquadrar” ninguém. O único sentido das palavras de Bolsonaro é uma ameaça velada de golpe.

Bolsonaro não economizou ataques a Moraes. “Não podemos admitir que uma pessoa turve a nossa democracia, que uma pessoa coloque em risco a nossa liberdade”, disse em Brasília. “Não vamos mais permitir que pessoas como Alexandre de Moraes continuem a açoitar a nossa democracia”, falou em São Paulo. A esta altura, está evidente que a única pessoa que tem açoitado e turvado a democracia, além de pôr em risco a liberdade dos brasileiros, é ele próprio, Bolsonaro.

No Brasil fora das quatro linhas do cercadinho, as projeções de inflação para este ano não param de subir desde março e estão em 7,8%. Desempregados e desalentados somam 20 milhões, segundo o IBGE. Nem a contabilidade criativa do governo para adiar o pagamento de R$ 90 bilhões em dívidas judiciais conseguirá tapar o rombo fiscal de R$ 50 bilhões no Orçamento de 2022. O nível crítico dos reservatórios já provocou a perda de meia Itaipu em capacidade de geração de energia, e o país teme um novo apagão. A pandemia já matou quase 585 mil brasileiros, e menos de um terço da população está totalmente imunizada, enquanto variantes mais contagiosas se espalham. Já passou da hora de Bolsonaro parar com toda essa conversa golpista e começar a trabalhar.

Congresso precisa derrubar MP que restringe ação de redes sociais

O Globo

É inaceitável a Medida Provisória (MP) baixada pelo presidente Jair Bolsonaro para restringir a ação das redes sociais contra quem viole suas regras de conduta. Não cabe ao Executivo editar norma sobre o tema, ainda mais quando Bolsonaro é movido por uma vendeta pessoal contra plataformas que, depois de muita hesitação, mal começaram enfim a agir contra as campanhas de desinformação.

A MP oportunista, editada na véspera dos protestos de 7 de setembro, foi criticada com razão por Google, Facebook e Twitter, além de ter despertado reação unânime de repúdio entre quem acompanha o desafio de regular as redes sociais. Juristas e parlamentares afirmam que ela é inconstitucional por não respeitar os critérios de urgência e relevância. O Supremo já foi acionado para evitar que as medidas propostas entrem em vigor antes do prazo de 30 dias concedido às plataformas para adaptar-se às novas normas.

Nada disso significa que as plataformas digitais não precisem de regulação melhor. Os critérios que usam para suspender contas e retirar conteúdos do ar costumam ser opacos, sem justificativas claras. As medidas são adotadas de modo reativo diante das pressões. No caso da pandemia, elas decidiram — corretamente — retirar do ar vídeos e postagens que promoviam tratamentos sabidamente ineficazes, vários deles disseminados por Bolsonaro e seus acólitos. No caso da campanha de desinformação contra a urna eletrônica, até agora não fizeram nada além de cumprir ordens da Justiça.

Nenhum país regulou a contento o discurso no meio digital. É preciso ter regras capazes de garantir a liberdade de expressão do usuário e de coibir, com agilidade, abusos dessa liberdade nos casos excepcionais em que a lei prevê restrições ao livre discurso: crimes contra a democracia e a saúde pública, incitar a violência, injuriar, caluniar ou difamar.

Seria temerário deixar a critério das próprias redes todas as regras a que devem estar sujeitas. Mas em hipótese alguma deveria caber a Bolsonaro decidi-las. A intenção dele é óbvia: mentir impunemente e disseminar desinformação de acordo com seu interesse político, que nada tem de democrático. Por isso, Supremo e Congresso devem agir rápido para derrubar a MP.

Cabe também ao Parlamento determinar regras melhores que as estabelecidas no Marco Civil da Internet. O Projeto de Lei das Fake News, aprovado no Senado e em tramitação na Câmara, estabelece critérios sensatos, além de criar um método razoável para coibir a desinformação em aplicativos de mensagem como WhatsApp. Ele deveria ser aprovado quanto antes.

Dois princípios deveriam reger a legislação a respeito. Primeiro, as plataformas são empresas privadas que devem ter o direito de regular o ambiente como bem entenderem, desde que respeitando a lei. Segundo, elas devem arcar com o ônus do papel que assumiram nas democracias, a praça pública digital onde se trava o embate político. Não podem mais estar sujeitas à legislação benevolente que as exime de toda a responsabilidade pelo que veiculam.

Consumo e economia mais fracos frustram expectativas

Valor Econômico

Parece difícil mudar esse enredo em que tudo piora com mais inflação, em um país com uma indexação latente na memória

O último mês do terceiro trimestre começou com sinais negativos para a economia. A divulgação de que o Produto Interno Bruto (PIB) recuou 0,1% no segundo trimestre frustrou as previsões de recuperação do nível de atividades e nublou as previsões - não só as de curto prazo como também as do próximo ano. O Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV) já prevê que o PIB do 3º trimestre repita o fiasco e caia mais 0,1%. Se a expectativa do Ibre-FGV se confirmar, será configurada uma recessão técnica. Mas a maioria do mercado prevê um crescimento ainda que modesto. As estimativas para 2022 também estão sendo revistas para baixo.

A indústria segue com grande dificuldade para crescer. Dados divulgados pelo IBGE mostraram que a produção industrial recuou 1,3% em julho, já descontados os efeitos sazonais. Dos sete meses transcorridos no ano até agora, cinco fecharam no negativo, um foi de estabilidade e apenas um teve crescimento. O PIB da indústria total caiu 0,2% no segundo trimestre, e o da indústria de transformação acumulou dois trimestres no vermelho.

Setores da indústria que importam partes e peças estão com problemas nas cadeias de suprimento. De outro lado, também estão sendo afetados os que dependem da renda das famílias, como alimentos e bebidas. A produção de bens de consumo semiduráveis e não duráveis, por exemplo, estava em um patamar 7,4% inferior ao de dezembro de 2020 e abaixo do nível pré-pandemia.

O mercado de trabalho apresentou finalmente uma recuperação. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua, divulgada pelo IBGE, a taxa de desemprego foi de 14,1% no segundo trimestre, menor que os 14,7% de janeiro a março. Ainda são 14,4 milhões sem ocupação no país. No entanto, a melhora é explicada pelo aumento de empregos de menor qualidade, com salários mais baixos, muitos dos quais informais, como serviços domésticos, alojamento, alimentação e construção, o que limita o poder de compra. Levantamento da LCA Consultores a partir dos dados da Pnad Contínua já havia apurado em junho o aumento da parcela dos trabalhadores que ganham até um salário mínimo para 34,8%, em comparação com 27,2% em dezembro de 2019, antes da pandemia.

O rendimento médio dos trabalhadores caiu 3% em termos reais no segundo trimestre, comparado ao primeiro trimestre, e recuou 6,6% sobre o mesmo período em 2020. A massa de rendimento real habitual somou R$ 215,49 bilhões, com queda de 0,6% na comparação com o primeiro trimestre e de 1,7% em relação ao mesmo período de 2020.

A massa salarial deprimida explica o fraco desempenho do comércio e dos serviços, que só recentemente vieram a mostrar alguma evolução positiva diante do impulso ocasionado pelo avanço da vacinação, que aumentou a mobilidade das pessoas. Nesta semana, o IBGE divulga o resultado do varejo em julho, o que pode complementar o quadro.

O aumento da inflação está jogando contra, erodindo ainda mais o consumo das famílias, que ficou estagnado no segundo trimestre. No início do ano, o aumento dos preços das commodities e do dólar catapultou a inflação, que agora ganha combustível com a crise hídrica que eleva os preços da energia, penalizando ainda mais os desempregados e a baixa renda. Até julho, o IPCA, que reflete a inflação para a população de um a 40 salários mínimos, acumulou elevação de 8,99% em 12 meses. Já o INPC, que foca o segmento de um a cinco salários mínimos, estava com alta de 9,85% no mesmo intervalo de tempo. Energia e alimentos puxam a escalada. Sai nesta semana o IPCA de agosto. A expectativa é que pode subir ainda mais um pouco antes de recuar um pouco no fim do ano.

Mas três fatores podem pressionar mais a inflação. Um deles é a tensão política, que tende a crescer à medida que as eleições de 2022 se aproximam, contribuindo para valorizar o dólar e elevar os preços. O outro é a crise hídrica, que até agora repercute principalmente no encarecimento dos custos, mas pode piorar se levar a um racionamento. Além disso, o ajuste fiscal voltou a ficar em dúvida com as propostas do governo de turbinar o Bolsa Família e parcelar o pagamento de precatórios. Para complementar o círculo nada virtuoso que se autoalimenta, o Banco Central (BC) recorre ao aumento dos juros para combater a inflação; e a evolução da pandemia ainda é incerta. Parece difícil mudar esse enredo em que tudo piora com mais inflação, um risco elevado para um país com uma indexação latente na memória.

 

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