domingo, 12 de setembro de 2021

Pedro S. Malan* - Falta um ano: é muito? É pouco?

O Estado de S. Paulo

O roteiro do atual ocupante da Presidência está traçado e vem sendo seguido à risca.

Deveria ser óbvio, mas para muitos não o é: disputar uma eleição presidencial é muito diferente de governar um país da complexidade do Brasil. Cedo ou tarde essa verdade se impõe sobre aqueles que recebem essa incumbência – para alguns, tarde demais. Talvez seja o caso do atual ocupante do cargo, ao qual resta pouco mais de um ano até as eleições de outubro de 2022.

Mas seu roteiro está traçado e vem sendo seguido à risca. O script repete aquele adotado por Trump nos EUA. No debate televisivo com Hillary Clinton às vésperas da eleição de 2016, perguntado se respeitaria o resultado das urnas, sua resposta foi um simples “If I win” (se eu ganhar). Às vésperas da eleição de 2020, sugeriu que poderia haver fraude. Na noite da data da eleição, quando faltavam ainda dezenas de milhões de votos a serem contados, proclamou via Twitter: “Clearly, I won” (claramente, venci).

Após a vitória de Biden, por dois meses Trump continuou ainda a questionar o resultado das urnas, declarando-se vencedor. Essa alucinação desaguou na marcha sobre o Capitólio e em sua invasão em 6 de janeiro, dia em que o Congresso se reuniu para ratificar a vitória do candidato democrata. Trump, pessoalmente, incitou a massa de seguidores fiéis a aderir à marcha, a que seu advogado pessoal referiu-se, em eloquente discurso, como “trial by combat” (julgamento através de combate). O recado foi entendido, e houve a invasão do Capitólio – evento assustador para uma democracia que se orgulhava de seus pesos e contrapesos, criados há 230 anos para evitar arroubos dessa natureza.

Dizia o hoje clássico texto de Madison (Se os homens fossem anjos... em The Federalist n.º 51, de fevereiro de 1788): “Na construção de um governo a ser administrado por homens, e exercido sobre homens, a grande dificuldade reside no seguinte: é preciso primeiro capacitar o governo a controlar os governados, e em seguida, obrigá-lo a controlar a si próprio”.

A história registra numerosos exemplos de governos e de governantes com grande dificuldade para controlar seus próprios instintos, paixões e interesses. Registra, também, como sabemos, tentativas de estabelecer relações diretas com a parte da população – o seu povo – mais cúmplice de suas ilusões, inclusive aquela que faz crer que não há limites ao exercício de seu poder. É mais comum do que parece a tentação de ocupar a máquina pública com militantes fiéis e de utilizar as ferramentas do poder para combater os “inimigos” e intimidar vozes discordantes. A ela é preciso resistir. Sempre.

É preciso resistir, em particular, a certa visão que ora encontra ampla acolhida entre extremos do espectro político brasileiro. Aquela visão baseada na formulação de Carl Schmitt, para quem “a distinção política específica à qual ações e motivos políticos podem ser reduzidos é a distinção entre amigo e inimigo”. Para Schmitt, uma coletividade constitui um corpo político apenas na medida em que haja definido com clareza seus “inimigos”. Como mostrou Mark Lilla, para Schmitt tudo é potencialmente político: costumes morais, religião, economia, arte, cultura podem se tornar questões políticas, encontros com o inimigo, e transformar-se em fonte de deliberado, e sempre renovado, conflito.

Esse presidencialismo de confrontação, voltado a manter mobilizadas e excitadas as redes digitais em torno de fatos alternativos e realidades paralelas, tem alto custo para o País, que se expressa em duas dimensões. A primeira é a inépcia em implementar políticas públicas consistentes nas áreas de educação, saúde, segurança, cultura, ciência e tecnologia, meio ambiente e relações internacionais, para citar as deficiências mais patentes de um governo disfuncional. A segunda, neste fim do terceiro trimestre de 2021, tem que ver com a gravidade da situação econômica e, em particular, da preocupante combinação de alto desemprego, alta inflação, grave crise hídrica e perda de renda das famílias.

As preocupações presidenciais parecem, no entanto, estar alhures. “O País está quebrado. E eu não posso fazer nada” (implicitamente: “porque não me deixam”). Mas é candidatíssimo a continuar ocupando o cargo por mais quatro anos a partir de 2023. Como se estivesse fazendo um excelente governo.

Encerro este artigo com o texto de gravação que fiz para uma emissora de TV em 25 de março de 2020, que permanece válido, segundo penso, para os próximos 12 meses – e muito adiante:

“Precisamos hoje mais do que nunca de um Poder Executivo com capacidade de coordenação, que não esteja em reiterados conflitos com o Congresso, com a comunidade científica, com a mídia profissional, com os fatos e com parcela expressiva da opinião pública. O Brasil precisa hoje, mais do que nunca, de uma serena combinação de humildade e confiança por parte de suas lideranças. Humildade para entender a natureza das incertezas e dos riscos que corremos, confiança na nossa capacidade de nos erguermos à altura dos desafios atuais, que não são poucos. O que os brasileiros não precisam e não merecem nesta hora grave são desvarios e destemperos verbais por parte do Poder Executivo”.

Temos um ano à frente.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC 

 

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