sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Simon Schwartzman* - A Marcha sobre Brasília

O Estado de S. Paulo

Os Poderes no Brasil precisam se defender dos ataques de nosso candidato a Mussolini

Se a expectativa dos Maquiavéis que planejam a estratégia de Bolsonaro se inspirando em Mussolini era replicar, no 7 de setembro, a “marcha sobre Roma” de 1922, não deu certo. Em 1922, Il Duce ganhou forças para subjugar o Parlamento, o Judiciário e as Forças Armadas, e ficou no poder até ser assassinado, em 1945, depois de ter levado seu país à ruína. Aqui, as manifestações foram pacíficas, nenhum palácio foi invadido e o que restou foi a promessa do presidente de deixar de cumprir as decisões do ministro Alexandre de Morais. Difícil de saber o que virá agora, se finamente o impeachment, uma tentativa de golpe de Estado ou algum tipo de administração arrastada da crise, como vem acontecendo até aqui. Todos os analistas políticos se estão fazendo essa pergunta. Sou menos capaz do que eles de prever, mas minha impressão é de que as coisas vão continuar como estão, para ver (ou não) como é que ficam.

Seja como for, o que fica de mais marcante deste 7 de setembro é a grande presença de pessoas nas ruas atendendo à retórica inflamada e vazia de Bolsonaro, mesmo depois de dois anos de desgoverno, de manejo incompetente da epidemia, dos escândalos das rachadinhas e da compra das vacinas, do abandono das pautas de combate à corrupção e de reorganização da economia, da depredação do meio ambiente, da inflação saindo do controle e de ter entregado o governo a seus antigos inimigos do Centrão, do qual agora se diz membro desde criancinha.

Não se pode simplesmente dizer que os que foram para as ruas são todos ignorantes, ou reacionários, ou vítimas de manipulações das redes sociais. Bem ou mal, eles refletem o grande fracasso de nossas instituições políticas, incluindo o Judiciário e o Congresso, em responder de forma adequada à grande crise moral, econômica, social e política que eclodiu em 2015 e que vem se agravando desde então. O Judiciário e o Congresso são hoje, e com razão, os grandes defensores da democracia e do império da lei contra um presidente sem escrúpulos, mas tudo seria mais fácil se eles não tivessem abdicado de suas principais responsabilidades.

No caso do Judiciário, o principal problema foi ter participado do grande conluio para enterrar a Lava Jato, que uniu empresários e a classe política da esquerda, centro e direita. Podemos discutir até que ponto os promotores e juízes da Lava Jato infringiram ou não determinadas normas de comportamento ou estavam politicamente motivados, mas os crimes de corrupção foram reais, afetaram de forma profunda o funcionamento do governo, escancararam o comportamento predatório de parte importante da classe política brasileira, e não poderiam ter sido simplesmente postos de lado em nome dos formalismos de um “garantismo” suspeito e extremado. Ao invés de atuar como uma corte constitucional, como são os supremos tribunais de todas as democracias, o Supremo Tribunal Federal (STF) se transformou numa grande casa de varejo, gastando quase toda a sua energia em responder de forma muitas vezes casuística às demandas de quem tem recursos para pagar os advogados mais caros. Nada disso justifica o ataque dos bolsonaristas ao STF, buscando destruir aquilo que ele tem de mais importante, que é a defesa da ordem legal, da democracia e do Estado de Direito, mas tudo seria mais fácil se ele não tivesse abdicado de parte significativa de sua responsabilidade.

Do Congresso, seria enorme a lista de coisas que deveria ou poderia fazer, e não fez, e das coisas que fez erradas. Mas o que mais chama a atenção é a forma despudorada com que ele se transformou num grande balcão de negócios, em que votos são comprados e vendidos de forma escancarada a troco de cargos, verbas e apoio de corporações e grupos de interesse de todo tipo. Em todo o mundo, parlamentares são eleitos como representantes de determinados interesses, e é natural que defendam esses interesses em sua atuação no Congresso. Mas, em democracias que funcionam, os interesses individuais se acomodam dentro de um rumo e uma orientação geral dados pelas lideranças partidárias, de acordo com as prioridades dos respectivos programas e doutrinas partidárias. No Parlamento brasileiro, algumas dessas lideranças ainda persistem, mas são permanentemente atropeladas e ignoradas pela fome insaciável de seus liderados.

Ruim com eles, pior sem eles. Assim como o governo Bolsonaro hostiliza o Judiciário pelo que tem de bom, também hostiliza ou tenta comprar o Parlamento pela capacidade que ainda tem de colocar limite a seus arroubos autoritários e pelo poder constitucional de abrir e conduzir um processo de impeachment contra o presidente. O Judiciário e o Legislativo, assim como setores importantes e competentes do Executivo, na área da saúde, da economia, da educação, da cultura e do meio ambiente, que este governo vem depredando sistematicamente, precisam se defender e ser defendidos contra os ataques de nosso candidato a Mussolini. Seria muito mais fácil se eles estivessem estado à altura dos papéis que deveriam desempenhar.

*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências

 

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