quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Zeina Latif - Novamente brincando com fogo

O Globo

Ainda que situações excepcionais levem a algum experimentalismo na política pública, não se pode dispensar uma dose de cautela quando se navega em novos mares. Afinal, correções de rumo costumam ser muito custosas em economias não avançadas.

Um exemplo é a atenção aos limites da responsabilidade fiscal - especialmente em um país que gasta mal os recursos públicos e os financia com tributos distorcivos e dívida pública cara e concentrada no curto-médio prazo.

Como resultado do pouco apreço à disciplina fiscal, de tempos em tempos, levamos sustos com a inflação, pois os excessos fiscais acabam estimulando indevidamente a demanda – enquanto a oferta nem de longe consegue acompanhá-la, por conta do difícil ambiente de negócios –, e a elevada e crescente dívida pública gera desconfiança de investidores e pressão no câmbio.

Os políticos não costumam perder a oportunidade para elevar gastos e conceder benefícios tributários, mas não seria justo culpá-los unicamente. Muitas vezes, analistas ignoram os manuais de boas práticas de gestão fiscal por conta de objetivos ou interesses de curto prazo. Acabam por conceder o beneplácito ao oportunismo.

Ao longo de 2020, por exemplo, não faltaram recomendações para elevar os gastos públicos (pior, financiá-los com emissão monetária) como se não houvesse amanhã – ou como se não houvesse risco de volta da inflação. Deu errado: a inflação está em 9,3%. Ao menos, a Câmara não abraçou propostas criativas na chamada PEC do orçamento de guerra.

A novela da vez é o que fazer com os R$ 89,1 bilhões de precatórios estabelecidos para 2022 - pagamentos obrigatórios de sentenças julgadas em que o estado foi condenado. O valor excede sensivelmente a já elevada cifra de R$55,4 bilhões de 2021.

Sendo ou não um valor atípico, que não se repetirá, não convém ignorar a tendência de alta dos processos contra a União. Eles quadruplicaram entre 2014 e junho de 2020, atingindo R$2,4 trilhões, segundo o Tesouro - alimentando o valor de precatórios a cada ano.

Deste total, R$ 802 bilhões (34%) referem-se a ações com risco provável de perda da União, que devem ser provisionadas no seu Balanço Patrimonial, segundo as melhores práticas da gestão pública. O governo deveria ter se preparado para isso.

Propõe-se, equivocadamente, utilizar-se de expedientes para adiar o pagamento de precatórios ou neutralizá-los do ponto de vista das regras fiscais. A justificativa utilizada é que se trata de situação emergencial e que algum arranjo precisa ser feito.

Mas nunca se discutem medidas compensatórias, mesmo que parciais, com algum esforço de corte de despesas. Esse comportamento reforça a avaliação de que a PEC emergencial aprovada no início deste ano foi um embuste.

O parcelamento de precatórios prejudicaria a percepção de solvência da União, como já apontado amplamente, enquanto excluí-los da regra do teto (limita o crescimento de gastos à alta da inflação) implicaria retrocesso institucional. Em ambos os casos, abre-se precedente perigoso.

Com tantos riscos fiscais, como apontado pelo próprio Tesouro em seu relatório anual, corre-se o risco de outras decisões desse tipo adiante.

Fere-se o espírito da regra do teto, que é o de forçar a reavaliação de políticas públicas, eliminando aquelas ineficientes, e de corrigir ações governamentais equivocadas. Deveria valer para os precatórios, uma despesa que cresce de forma explosiva, enquanto pouco tem sido feito para contê-la - com omissão dos Ministérios da Economia, da AGU e da Casa Civil.

Faltam diagnósticos sobre as razões de seu crescimento, a responsabilização (accountability) de órgãos envolvidos e o estabelecimento de governança para a defesa jurídica da União, como apontam Marcos Mendes e Ana Paula Vescovi.

Permitir a retirada dos precatórios do teto, ainda mais sem contrapartidas, significa premiar a má gestão.

Não é só isso. Cria-se um incentivo para a judicialização por parte da União: deixaria de fazer um desembolso (como pagamentos da Previdência) agora para arcar com o precatório adiante, mas fora do teto de gastos. Uma pedalada do tipo bola de neve.

Por fim, alimenta-se o populismo ao abrir espaço para mais gastos, muitos deles inadequados, como emendas parlamentares e ajuste do funcionalismo em má hora, ou mesmo novo bolsa família com problemas de desenho.

Vamos brincar com mais experimentalismo?

 

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