terça-feira, 21 de setembro de 2021

Zuenir Ventura - A ONU não vai saber

O Globo

O presidente Bolsonaro fala hoje na Assembleia Geral da ONU, mas o que os líderes mundiais ouvirão deve ser a versão de uma realidade paralela, a dele. Isolado na comunidade internacional, com a reputação tão em baixa lá fora quanto a popularidade aqui dentro, seu discurso (se não foi o Temer, quem será que escreveu?) vai caprichar na retórica.

Ele poderá afirmar que a vacinação avançou nos últimos meses. Mas jamais informará que poderia estar muito melhor se o governo não tivesse feito campanha contra (duvido que tenha coragem de confessar que chegou a dizer que quem tomasse vacina corria o risco de virar jacaré).

Os participantes da Assembleia também ficarão sem saber que, de negacionista, seu governo passou a “negocionista”. Para isso, precisariam ouvir uma citação do presidente da CPI da Covid. Impressionado com aquilo de que tomou conhecimento nestes cinco meses de apuração, o senador Omar Aziz desabafou longe dos microfones: “Se estivesse aqui, Al Capone ficaria corado de vergonha”. Como conhecem bem a fama do personagem citado, compreenderiam a situação do Brasil atual.

No relatório final da CPI da Covid, o presidente aparecerá como autor de sete crimes, tipificados por um grupo de importantes juristas. Entre as transgressões estão crimes contra a humanidade, prevaricação, responsabilidade pelas violações de garantias individuais, infração de medidas sanitárias preventivas, charlatanismo (fez propaganda de medicamentos ineficazes), incitação ao crime ao estimular a população a aglomerar e a não usar máscara.

Bolsonaro foi eleito com a bandeira de combate à corrupção e até hoje continua afirmando, sem corar, que no seu governo ela não existe. Mas a cada dia um membro da família se encarrega de desmenti-lo. Recentemente foi a vez de Ana Cristina Valle, sua ex-mulher, mãe de Jair Renan, o Zero Quatro, filho caçula de Jair Messias, e ex-chefe de gabinete de Carlos, o Zero Dois.

Os sigilos do vereador e dela foram quebrados num inquérito que apura a existência de auxiliares-fantasmas no gabinete do parlamentar, assim como a prática das famosas rachadinhas (se algum repórter americano perguntar ao presidente o que é isso, ele responderá: “pergunta à sua mãe”). Segundo um ex-funcionário da família — ou famiglia —, Ana Cristina ficava com 80% do seu salário. Outra inconfidência é que a mansão em que ela mora com o filho, numa área nobre de Brasília, está registrada em nome de um laranja.

Imagina se chega à ONU a informação de que o serviço de checagem Aos Fatos atualizou seus números em relação a Bolsonaro e chegou a este resultado: em 990 dias como presidente, ele deu 3.886 declarações falsas ou distorcidas. Ele não esconde sua simpatia: “Fake news faz parte de nossa vida. Quem nunca contou uma mentirinha para a namorada?”. Estavam numa solenidade no Planalto e, ao perceber a gafe, acrescentou, mentindo mais uma vez: “Eu nunca menti para a dona Michelle”.

Além de tudo, o mito é mitômano.

 

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