Nomes como João Bosco, Chico Buarque, Maria Bethânia, Moacyr Luz e Leila Pinheiro estão entre os convidados
Danilo Casaletti / O Estado de S. Paulo
Quando o letrista e compositor Aldir Blanc
morreu, em maio de 2020, aos 73 anos, vítima da covid, além da família, ele
deixou órfãs figuras da sociedade brasileira que para muitos – jamais para ele
– parecem ser invisíveis. Cronista de mão cheia, em suas letras Aldir rendia
glórias a trabalhadores rurais, moradores do subúrbio, balconistas, passistas,
quilombolas, público da antiga geral do Maracanã, seres divinais das
encruzilhadas, mães de santo, camelôs, apontadores do jogo do bicho, mulheres
que amam demais, torturados, entre outros. Por outro lado, denunciava
torturadores, censores, sogras impertinentes e críticos mordazes.
Apesar da ausência física de Aldir, sua
genialidade revive agora no álbum Aldir Blanc Inédito, que reúne 12 letras
escritas por ele e jamais gravadas anteriormente. Com capa assinada pelo
artista gráfico Elifas Andreato – que mostra a escrita precisa do compositor –,
o lançamento está disponível nas plataformas digitais e, em breve, deve ganhar
edição física pela gravadora Biscoito Fino.
A ideia do álbum nasceu quando a viúva de
Aldir, Mary Lúcia de Sá Freire, procurou a editora Nossa Música, braço
editorial da Biscoito Fino, para organizar os guardados do compositor. Por
intermédio da cantora e exministra da Cultura Ana de Hollanda a ideia de um
álbum chegou à gravadora.
A partir daí, começou o garimpo com parceiros de Aldir para formar o repertório. No estúdio, o pianista Cristóvão Bastos, companheiro do compositor em um de seus grandes sucessos populares, Resposta ao Tempo, canção gravada por Nana Caymmi em 1998, ficou responsável pelos arranjos. O baixista Jorge Hélder foi chamado para a direção musical.
As canções foram confiadas a João Bosco,
Maria Bethânia, Chico Buarque, Leila Pinheiro, Guinga, Moacyr Luz, Dori Caymmi,
Joyce Moreno, Ana de Hollanda, Moyseis Marques, Sueli Costa, Alexandre Nero e
Clarisse Grova.
Bosco, um dos primeiros parceiros de Aldir,
dá voz ao samba Agora Sou Diretoria, que remete aos velhos tempos da dupla, nos
anos 1970. A letra fala de uma reunião de amigos em um bar, entre louras,
canapés e admiração a poetas como Drummond e João Cabral. A canção composta
pelos dois para uma campanha publicitária de cerveja nos anos 2010 não foi
aproveitada à época. Para o disco, Bosco fez alguns ajustes nos versos.
Bethânia dá voz à canção de amor Palácio de
Lágrimas, de Aldir e Moacyr Luz. A cantora baiana já havia gravado, ao longo da
carreira, outras três canções dessa parceria – Medalha de São Jorge, Rainha
Negra e Remanso.
Luz, que por mais de duas décadas morou no
mesmo prédio de Aldir, na Muda, região do bairro da Tijuca, diz que o
compositor fez a música, anos atrás, já para a interpretação da cantora, que
não a gravou na ocasião.
Igualmente de Blanc e Luz, dessa vez com
adesão também de Bosco, é o bolero Acalento, com todas as dores do mundo às
quais o gênero tem direito, que coube a Ana de Hollanda interpretar. “Nos
guardados de Aldir, havia indicações para quem ele havia escrito aquilo. Ele
sempre me disse que eu, ele e Bosco deveríamos ter uma canção juntos. Aconteceu
agora”, lembra Luz.
A terceira dos parceiros, com colaboração
de Luiz Carlos da Vila, é Mulher Lunar, à qual o próprio Luz deu voz. Os três
já se haviam unido no sucesso Cabô, Meu Pai. “Aldir dedicava um dicionário para
cada parceiro. Com João é um tipo de música, com o Guinga é algo mais
vanguardista, comigo é mais o samba. Isso me impressiona. É como se ele
protegesse cada um.”
Aldir e Luz fizeram juntos Coração do
Agreste, trilha da novela Tieta, de 1989, interpretada por Fafá de Belém. Entre
tantas recordações que guarda do amigo e vizinho, uma, relacionada a essa
música, é especial. “No último capítulo, eu fui para o apartamento do Aldir, e
ficamos na janela. Vimos as casas com aquele azul da TV. Todo mundo assistindo
e ouvindo nossa música tocar no final da novela”, conta.
Joyce Moreno, apesar de amiga do
homenageado, nunca havia trocado versos e melodias com ele. A parceria póstuma
foi feita por meio de um poema de inspiração feminista publicado por Blanc no
jornal Tribuna da Imprensa, em 1986, com o título de Aqui, Daqui.
Ainda no campo das relações amorosas, ou de
seus desencontros, Voo Cego, de Aldir com o pianista Leandro Braga, é cantada
por Chico Buarque, com o toque do cello do músico Jacques Morelenbaum.
A parceria de Cristóvão Bastos e Blanc
coube a Dori Caymmi. O samba-canção Provavelmente em Búzios traz versos que
parecem um testemunho da profissão de compositor. Contra o mundo, contra o
tempo / Tenho a música e o verso / Cada história que acabar / Viro a folha e
recomeço.
Letra que parece ter endereço certo, Outro
Último Desejo foi enviada à cantora carioca Clarisse Grova por e-mail – essa
era uma das formas preferidas de Aldir para se comunicar. Como o título indica,
a música faz um paralelo com o samba de Noel Rosa, de 1938. Blanc se mostra
mais contundente do que o poeta da Vila. Em vez de “às pessoas que eu detesto”,
ele escreveu “aos canalhas que eu odeio” e atesta que o remédio é mesmo o
“botequim”, como Noel indicou.
Das preocupações históricas, políticas e
sociais – temas essenciais na obra do compositor – há a faixa Navio Negreiro,
feita com outro habitual parceiro, o violonista Guinga. A canção dos anos 1990
estava em posse da cantora Leila Pinheiro em uma fita que Guinga lhe entregou
por ocasião do disco Catavento e Girassol – de 1996, no qual ela canta só a
parceria dos dois.
Na gravação, Leila faz dueto com Guinga,
que empresta um canto negro, de lamento, à letra. “Nos jogamos juntos e emocionados
dentro deste Navio Negreiro. Enquanto cantava, pensei também nos refugiados dos
nossos dias, massacrados e mortos nos barcos afundados nos oceanos. A
escravidão, o preconceito de cor e a exploração humana, infelizmente, seguem
muito vivos nos nossos dias. Aldir certamente cairia em prantos ouvindo hoje
essa canção”, afirma Leila.
A cantora destaca o conhecimento profundo
que Aldir tinha da alma humana – o compositor era formado em psiquiatria.
“Somada a isso, a presença assídua nos bares e na boemia carioca – escola maior
não há”, completa. “Não há neste país e quiçá no mundo poeta/letrista/cronista
e o escambau (como ele diria) que se assemelhe ao Aldir. Ele é inigualável,
incomparável e insubstituível”, diz.
Da mesma mancha torturada a que Aldir se referiu
no clássico O Bêbado e a Equilibrista é feita Ator de Pantomima, composta com
Sueli Costa em 1978. Usando de sua principal arma naqueles tempos de ditadura –
a metáfora –, ele fala de farsas, reis e a ridicularização da morte nos porões
do regime. Ainda deixa clara sua ojeriza àquilo tudo ao afirmar que jamais
experimentaria daquela bebida amarga.
Antes de morrer, Aldir ainda teve tempo de
escrever o que pensava sobre a covid, doença que o vitimou. Feita a partir de
trechos de poemas, ideias e bate-papos que tinha via e-mail com o ator e músico
Alexandre Nero, nasceu Virulência. A letra mostra que o compositor também
estava preocupado com questões macros, como “quilombolas e guajajaras
machucadas na floresta” e com um “governo deserto”. Além de Nero, o músico
Antônio Saraiva também está na parceria.
“Apesar da idade, Aldir não era um homem
acomodado, muito ao contrário. Estava incomodado e queria incomodar. A intenção
da letra é muito essa: ele estava engasgado com tudo e se manifestava assim,
mostrando a sua cara, expondo a sua indignação”, lembra Nero.
Quando o ator se aproximou de Aldir – por
correspondência virtual – a intenção era montar um espetáculo com a obra do
compositor. Por ora, diz Nero, por causa de outros compromissos profissionais,
a montagem está em compasso de espera.
Aldir Blanc Inédito não deve ser o único
projeto com letras inéditas do compositor. Leila afirma que “há muito mais” no
baú do qual ela resgatou Navio Negreiro. Moacyr Luz também tem outras tantas
letras, muitas escritas para novelas – são 18 –, sob encomenda, que não foram
gravadas. Uma delas, Muito Além do Jardim, de 2002, ele deu recentemente ao
cantor carioca Augusto Martins.
Em antigas gravações ou músicas inéditas,
as ideias de Aldir Blanc sobrevivem e, por meio delas, é possível dar glória a
tantas lutas inglórias.
Este disco está disponibilizado no Youtube pela própria BISCOITO FINO. Discaço!
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