Folha de S. Paulo
(Resumo) Transformação da ideia de diversidade
em dogma nas últimas décadas levou a uma compreensão fraudulenta da história
ocidental e a uma tentativa de reger a sociedade por meio de lógica de
representação estatística, com cotas sexuais ou raciais. Esse projeto de Estado
identitário, herdeiro da organização corporativa do fascismo italiano, ameaça o
modelo de democracia liberal.
O cardápio contestador dos “sixties” foi
variadíssimo. Havia tanta coisa em jogo, que a única definição possível era
falar da contracultura e do Maio
de 1968 como espaços da manifestação do múltiplo e do diverso.
E foi justamente por aí que veio a
palavrinha mágica, diversidade, emergindo “a posteriore” como denominador comum
do repertório do final daquela década —porém não mais como definição ou
classificação ocasionais, e sim como ideologia.
Desenhou-se um novo campo magnético, com a
“diversidade” no centro, articulando na esfera política, como disse o sociólogo
Mathieu Bock-Côté, todo um leque de manifestações e reivindicações.
Sob o conceito (e, depois, dogma) da
diversidade, a multiplicidade ganhava uma suposta unidade. Aqui, a partir da
década de 1980, já não se tratava mais de reconhecer a existência da diversidade
no mundo, mas
de defendê-la programaticamente, impondo-a ao conjunto da sociedade.
Esse eixo político esbarraria num inimigo
comum —o “homem branco”, e numa inimiga comum, a “civilização ocidental”.
Tratava-se da incorporação do legado contracultural, que se expressara no
slogan “Western Civilization Is Over”.
A estratégia, desde então, é tirar proveito
máximo do “masoquismo ocidental”, para
lembrar a expressão cara ao filósofo Pascal Bruckner, o autor do livro “A
Tirania da Penitência: Ensaio Sobre o Masoquismo Ocidental”.
Defende-se agora que a história do mundo
ocidental não passa de um filme de terror. A história brasileira, inclusive.
Quase tudo com base em leituras fraudulentas, dualismos primários e ignorância,
muita ignorância, por parte de militantes que pouco se importam com a exatidão
histórica. Curiosamente, são intransigentes com as democracias que temos, mas
complacentes com ditaduras extraocidentais.
Os ataques ao Ocidente, lugar por
excelência da culpa, caem sempre em solo propício. Nada mais ocidental do que
criticar, arrasadoramente, o Ocidente. Nossos grandes pensadores sempre fizeram
isso.
Agora, é a vez dos identitários
multiculturalistas, todos ocidentalíssimos, embora fingindo que não, repetirem
que o Ocidente não fez mais do que humilhar, escravizar, assassinar os outros
povos, todos invariável e rigorosamente angelicais e oprimidos.
A história do Brasil, para eles, resume-se à chacina de índios, à opressão das mulheres e à tortura de negros, perpetradas por uma elite branca racista e patriarcal. Só. E agora as vítimas exigem sua indenização, compensação retrospectiva de vantagens perdidas.
É a partir daí que se projeta a sonhada
transformação político-social da sociedade e do mundo. Para chegar lá, no
entanto, teremos de passar por um intervalo autoritário, que se
responsabilizará pela submissão compulsória de todos aos dogmas sagrados do
multicultural-identitarismo.
É a velha conversa da “ditadura do
proletariado” em nova roupagem, ditadura diversitária, com apoio da
universidade, da mídia e de boa parte do empresariado (veja-se “The
Dictatorship of Woke Capital”, de Stephen Soukup).
A ideologia diversitária se revela, de
fato, adversária plena da democracia liberal. Nessa visão, é a “diversidade”
que deve reger o mundo —e o princípio de sua regência está na estatística. Sim:
entra em cena uma outra concepção de representação ou representatividade
social, rigorosamente numérica.
A conversa pode então ser resumida nos
seguintes termos: se os pretos representam x% da população brasileira, então
eles têm de ser x% nas cátedras universitárias, no Poder Judiciário, na
produção cinematográfica, na mídia, no Congresso Nacional e assim por diante.
Um princípio que, eventualmente, pode vir a ser irônico, mas será sempre
revelador.
Irônico
como no caso recente do Chile, que programou eleições para uma Assembleia
Constituinte que deveria ser rigorosamente paritária, em matéria de gênero.
As mulheres queriam evitar que homens controlassem a feitura da nova carta
constitucional do país. Acontece que os resultados das urnas surpreenderam: as
mulheres foram mais votadas que os homens.
Logo, para obedecer ao princípio paritário
previamente acordado, 11 mulheres se viram obrigadas a abrir mão de seus
mandatos em favor de homens menos votados.
A verdadeira soberania democrática teve de
dar lugar a um democratismo estabelecido de antemão, com bases em cotas. A
regra básica da democracia ocidental —uma cabeça, um voto— foi arquivada,
substituída por um modelo extraído, em última análise, do repertório
mussolinista.
Modelo que neste momento, no sentido da
construção de um Estado multicultural-identitário, traz também, ao lado da
divisão sexual, o critério de raça e cultura, designando uma fatia de cadeiras
da Constituinte chilena para os agora chamados “povos originários” (todos
imigrantes, como bem sabem historiadores e antropólogos).
Não há como conciliar o sistema eleitoral
de “uma cabeça, um voto” e um Congresso com assentos predeterminados, com
segmentos representacionais previamente loteados.
Claro: se a ocupação do Congresso Nacional,
de assembleias estaduais etc., vai se pautar por um sistema de cotas,
repartindo cadeiras em função de raça e sexo, o princípio democrático
tradicional perde automaticamente a validade.
Estamos nesse caminho no Brasil. O
primeiro grande passo foi estabelecer o regime de cotas no âmbito inicial das
candidaturas: cada partido é obrigado a apresentar x% de candidatas
mulheres ou de candidatos pretos, por exemplo.
O passo seguinte, logicamente, e agora no
rastro da experiência chilena, será fixar números de cadeiras por raça, sexo e
orientação sexual, tornando as casas legislativas receptáculos
pré-compartimentados a serem preenchidos segundo a natureza e a extensão de
seus cômodos.
Sim: o Congresso se transformará numa casa
de cômodos —alguns raciais, outros sexuais. E penso que uma nova eleição de
Lula irá desembocar nisso, na promulgação de separatrizes congressionais, de
acordo com a base estatística de cada grupo social.
Para quem protelava a iniciativa de
qualquer reforma política, o que se anuncia no horizonte é uma tempestade e
tanto —e para azar da democracia. É
o fantasma do Estado fascista retornando ao palco. O corporativismo fascista se
desdobra no corporativismo identitário.
Com isso, pode ocorrer o seguinte: uma
sociedade votar em peso na social-democracia, mas, em consequência de um acordo
censitário, ter de aceitar 50% de candidatos homens, em sua maioria de
centro-direita, por exemplo. Bem, isso não é democracia, é representacionismo
estatístico —ditadura diversitária.
O corporativismo fascista foi um sistema de
representação de classes e grupos de interesse, com o objetivo de transcender
tanto o individualismo quanto a luta interclassista. A
finalidade última, como se sabe, seria consolidar instituições permanentes que
abrigassem representantes das diversas classes, no caminho da realização da
harmonia social.
O corporativismo diversitário é uma
retomada do corporativismo fascista em novas bases, com os antigos agrupamentos
profissionais do projeto de Mussolini substituídos por segmentos raciais e
sexuais, superando o individualismo da democracia liberal pelo grupocentrismo
identitário.
Teríamos um redimensionamento das
instituições a partir de partilhas censitárias. A estatística reinará acima de
tudo, como o grande princípio organizador do sistema político. Alarga-se assim,
sempre mais, o arco de ataques à democracia representativa.
É claro que alguma discussão poderá ser até
enriquecedora. De minha parte, não vejo como ameaça o debate que teremos de
encarar acerca da democracia liberal e do neomandarinato meritocrático chinês,
por exemplo.
A China coloca um tremendo problema em
nosso caminho —e não devemos tentar contorná-lo. Em “When China Rules the
World”, Martin Jacques sublinha que o Estado chinês mantém uma relação com a
sociedade muito diferente da nossa. “Desfruta de muito maior autoridade
natural, legitimidade e respeito, muito embora nem um só voto tenha sido dado
ao governo.”
A cultura política chinesa é de base
milenar. Como diz o cientista político Zhang Weiwei, em “The China Wave”, é
inimaginável que a maioria dos chineses aceite um sistema democrático
multipartidário, com troca de governo a cada quatro anos. “A
democracia é um valor universal —o sistema democrático ocidental, não”, escreve
Weiwei.
Roberto
Mangabeira Unger concordaria, mas ninguém pode afirmar
categoricamente que a democracia ocidental não é exportável, ou que seja
impossível promover sua imposição em países extraocidentais.
O Japão nega isso. É modelo muito
bem-sucedido de democracia imposta pelas armas, em seguida à Segunda Guerra
Mundial. Com a retomada de Cabul pelo Talibã, o fato foi negritado por Giovanni
Sartori, em artigo no jornal italiano Corriere della Sera: “...o caso do Japão
demonstra mais e melhor que qualquer outro que a democracia não é
necessariamente vinculada ao sistema de crenças e valores da civilização ocidental.
Os japoneses continuam culturalmente japoneses, mas prezam, ao mesmo tempo, o
método ocidental de governo”.
Talvez mais significativo ainda seja o caso
da Índia, país que, com toda a sua heterogeneidade cultural, assimilou e
adaptou o constitucionalismo britânico.
No polo oposto ao do
multicultural-identitarismo, o
pensador indiano Amartya Sen vai bem além disso. No livro
“Identidade e Violência”, critica a insistência em compartimentar os povos do
mundo em “boxes of civilizations”.
É a grande ilusão da singularidade, diz.
Povos e culturas têm suas especificidades, claro, mas não irredutibilidades
fechadas em configurações definitivas, uniformes e segregadas.
A visão que pretende fixar separatrizes
insuperáveis entre civilizações não só dá as costas à história e passa ao largo
da diversidade interna de cada complexo civilizacional, como fecha os olhos às
múltiplas interrelações existentes entre civilizações distintas entre si.
Com essa obsessão multiculturalista por
separar drasticamente as coisas, obscurecemos a história, falsificamos a
realidade e cometemos erros primários.
Amartya Sen argumenta exatamente com
relação à democracia, que muitos teimam em definir como “uma ideia
quintessencialmente ocidental e estranha ao mundo extraocidental”.
Parte-se, aqui, da falsa crença de que a
tolerância e a liberdade são características próprias e intransferíveis do
Ocidente. Em resposta, Sen observa que o pensamento de Platão e o de Tomás de
Aquino não era em nada menos autoritário do que o de Confúcio.
E lembra que, na mesma época em que hereges
eram atirados nas fogueiras da Inquisição, o imperador indiano Akbar, o Grande
Mughal, pregava a tolerância religiosa, assentando que toda pessoa tinha o
direito de seguir a religião que quisesse.
Nessa batida, Sen acaba falando de raízes
planetárias da democracia. Muito antes de ter qualquer impacto entre antigos
povos nórdicos —ou no que é hoje a Inglaterra, a França ou a Alemanha—, a
experiência democrática pioneira da Grécia repercutiu em cidades asiáticas de
sua época.
Mais: a tradição de governar através do
diálogo e da discussão pública é coisa encontrável historicamente em diversas
partes do mundo.
No caso do Japão, cita-se a regência do príncipe
budista Shotoku, promulgando uma constituição no século 7º, como primeiro passo
num caminho gradual para a democracia. Sen se refere ainda à ampla tolerância
vigente na Península Ibérica sob domínio muçulmano, de que foi exemplo maior o
Califado de Córdoba sob Abd al-Rahman 3º.
O mundo ocidental não detém o monopólio da
ideia democrática, finaliza o pensador: ao passo que as modernas formas
institucionais da democracia são relativamente recentes em todos os lugares, a
história da democracia, sob a forma de participação e discussão públicas,
encontra-se disseminada no mundo.
Mas retomemos o fio da meada, voltando à
China. O identitarismo poderá se derreter diante do brilho planetário do sol
amarelo dos chineses. Caminhamos para uma horizontalização da ordem mundial,
com a China no mesmo nível do Ocidente, em matéria de poder e riqueza.
O multicultural-identitarismo vai cair em
si enquanto fantasia ideológica essencialmente ocidental. Vai-se ver sem o
macho branco como bode expiatório do mundo. Terá à sua frente o macho amarelo,
que não deve nada ao macho preto. E com uma história milenar de opressões, que
o identitarismo não julga, pois nasceu exclusivamente para alvejar o “mundo
branco”.
Mas vamos finalizar. As ameaças mais reais
e imediatas à nossa democracia não vêm da China. Resultam do populismo
autoritário de direita (a que mais de perto e perigosamente nos
tensiona agora, com o ex-capitão boçal reunindo milicos, milícias e evangélicos
para o golpe que não se cansa de anunciar) e do populismo autoritário de
esquerda, que traz agora como novidade o projeto igualmente autoritário de uma
“democracia diversitária”. No Brasil, aliás, são os próprios partidos
políticos, na disputa pelo poder, que paralisam a democracia.
E aqui teremos de nos dispor, inclusive, a
uma conversa muito pouco usual, embora já frequente nas reflexões de alguns
pensadores e analistas políticos. Trata-se de elucidar o que talvez seja mesmo
o perigo maior: a
radicalização extremista da democracia pode levar à sua destruição. Tocqueville
já pensava nisso. Temos de acender a luz sobre o potencial autodestrutivo da
democracia.
Acho curioso que pessoas se espantem com
isso: se falamos do potencial autodestrutivo da humanidade, de que as armas
nucleares são os produtos mais evidentes, por que não falar de uma coisa bem
menos grave, que é o potencial autodestrutivo da democracia?
De uma parte, o receio em relação a esse
ponto vem do fato de que podemos tomar o rumo de uma fragilização inédita das
instituições sociais, como já vemos nos casos do sistema educacional e da
negação absolutamente prematura da nação.
De outra, decorre da percepção de que a
obsessão estatística do multicultural-identitarismo não deixa de descender,
perversamente, do sonho igualitarista da Revolução Francesa. Quer levar o ideal
do século 18 à perfeição, mas por um caminho que julgo totalmente equivocado, o
do representacionismo estatístico.
Seja como for, o dado real, na conjuntura
que estamos atravessando, é que o Estado identitário começa a se desenhar, diante
de nossos olhos, como
uma subvariante ou variante nova da organização estatal corporativa herdada do
fascismo italiano.
Bem vistas as coisas, depois da maré do
“politicamente correto”, o representacionismo diversitário quer implantar, no
campo da política, uma espécie de representacionismo estatístico. Uma ditadura
censitária —ou a ditadura do demograficamente correto.
Tudo na base da cota. Na verdade, só não se fala de cota a propósito da seleção brasileira de futebol, pois nesse caso o objetivo é ganhar o jogo. Não há lugar para comemorações negativas, nem para institucionalizações da compaixão.
*Poeta, romancista e
antropólogo, autor de "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros",
"Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda
Identitária" e "As Sinhás Pretas da Bahia"
Excelente abordagem sobre o mal dos identitários para a democracia universalizante.
ResponderExcluirExcelente abordagem sobre o mal dos identitários para a democracia universalizante.
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