sábado, 23 de outubro de 2021

Demétrio Magnoli - Genocídio da linguagem

Folha de S. Paulo

Não se protege a democracia replicando a estratégia retórica dos extremistas

Nossos indígenas foram vacinados em ritmo mais rápido que a média da população; na Austrália, a imunização dos aborígenes andou sempre atrasada. A priorização dos indígenas decorreu de decisões judiciais que contrariaram a política do governo Bolsonaro. Democracias não produzem genocídios.

Os quatro grandes genocídios do século 20 –o armênio (1915-17), a Shoah (1941-45), o do Camboja (1975-79) e o de Ruanda (1994)– foram provocados por Estados autoritários ou totalitários.

Discute-se a pertinência da aplicação do conceito para outras catástrofes humanas, como o Holodomor, na Ucrânia soviética, em 1932-33, a limpeza étnica na Bósnia, em 1995, os massacres de Darfur, desde 2003, e a atual perseguição contra os rohingya, em Mianmar. Todas são frutos sangrentos de regimes de força.

Nos sistemas democráticos, governos são capazes de cometer crimes hediondos, mas nada que se aproxime de genocídio.

Os juízes, os parlamentares, a imprensa, as organizações da sociedade civil interditam a estrada que conduz ao crime dos crimes. Na outra ponta, nenhum regime genocida jamais experimentou o dissabor de ser classificado como tal nos tribunais, parlamentos ou jornais de seu próprio país. É que, neles, os dissidentes ocupam os cárceres ou as covas dos cemitérios.

CPI da Covid desviou-se, na última hora, do descrédito internacional, cortando as asas demagógicas de Renan Calheiros.

O conceito de genocídio envolve o planejamento deliberado de extermínio completo de um grupo humano. As negligências e omissões do governo federal na proteção de comunidades indígenas diante da pandemia configuram crimes graves, que se juntam à coleção de ataques à saúde pública cometidos ao longo da emergência sanitária. Nomeá-las como genocídio seria banalizar o horror absoluto e, ainda, impedir que venham a ser punidas.

Nesse caso, o radicalismo retórico tem custos elevados. O TPI (Tribunal Penal Internacional) é uma instituição multilateral frágil, pois quatro grandes potências –EUA, China, Rússia e Índia– não reconhecem sua jurisdição.

Convertê-lo em palco de acusações absurdas significa prestar um serviço aos Estados que contestam sua legitimidade. Além disso, no plano nacional, implica oferecer absolvições gratuitas ao governo Bolsonaro, contribuindo para a campanha de descrédito dirigida por sua máquina de marketing contra o relatório da CPI.

A polarização política gera bolhas de linguagem, que tendem a se cristalizar no ambiente tóxico das redes sociais. Classificar Bolsonaro como genocida tornou-se uma espécie de esporte, uma competição acirrada que premia os campeões com medalhas de honra ideológica. O jogo da hipérbole desenrola-se em salões climatizados –e parece quase inofensivo. Tem, porém, consequências.

O presidente mobilizou várias vezes seu então ministro do Arbítrio, André Mendonça, para mover ações amparadas na Lei de Segurança Nacional e, assim, revitalizar um código legal moribundo fabricado pela ditadura militar.

Contudo, não cultiva o hábito de processar por calúnia os incontáveis arautos da acusação de genocídio. Há uma razão estratégica para a contenção: se "eles" falam como "nós", nossa linguagem fica normalizada.

"Pedófilo", "traficante", "corrupto". A "liberdade de expressão" nas redes sociais –isto é, o suposto direito de insultar– constitui uma das mais sagradas bandeiras da extrema direita, e não só no Brasil.

A finalidade é massacrar o diálogo racional, transformando o debate público num enfrentamento entre gangues de rua. Ela realiza-se plenamente quando o insulto se generaliza, degradando a vida política numa infindável caçada de "inimigos do povo".

Bolsonaro não cometeu genocídio. Mas o bolsonarismo promove, permanentemente, um genocídio da linguagem civilizada. Não se protege a democracia replicando a estratégia retórica dos extremistas.

 

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