quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Gustavo Loyola* - Presente de grego

Valor Econômico

Para maior efetividade da lei é necessário que já funcionassem as centrais de risco de crédito, o que não ocorre

A entrada em vigor da chamada lei do superendividamento - Lei 14.181/21, que, entre outras disposições, altera o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso - tem sido amplamente saudada como um passo importante para a prevenir o superendividamento das pessoas naturais e solucionar, por meios preferivelmente conciliatórios e extra-judiciais, situações em que o devedor não disponha de capacidade de pagamento para honrar suas dívidas. Essa percepção é correta, mas é preciso ter o devido cuidado na aplicação da nova lei para evitar que ela se transforme num verdadeiro presente de grego para os consumidores, fechando, para muitos deles, o acesso ao crédito formal bancário e não-bancário.

Legislações sobre a recuperação da capacidade creditícia das pessoas naturais existem na maioria dos países com mercado de crédito maduros. Sabe-se que a exclusão de consumidores do mercado de crédito fecha-lhes oportunidades de melhorar suas condições de vida e agrava as desigualdades sociais. Nas economias contemporâneas, cada vez mais impactadas pela transformação digital e em que há tendência de aumento do contingente de excluídos, a falta de acesso ao crédito pode ter impactos permanentes sobre as famílias, perpetuando-lhes o estado de pobreza.

Desse modo, a nova legislação, se bem aplicada, pode contribuir para a expansão do crédito formal para camadas da população hoje dele excluídas, abrindo-lhes o acesso para o consumo de bens e serviços que, de outra forma, não estariam para eles disponíveis.

Em linhas gerais, a lei brasileira sobre o superendividamento segue suas congêneres internacionais. Define como superendividamento a situação em que o consumidor é incapaz de arcar com o pagamento de suas dívidas, sem comprometer o seu “mínimo existencial”, conceito que ainda deverá ser objeto de regulamentação pelo Executivo federal.

O consumidor superendividado poderá solicitar a renegociação de suas dívidas tanto pela via extrajudicial quanto pela via judicial. Por outro lado, a lei faculta aos órgãos de defesa do consumidor a promoção de conciliação em situações de superendividamento, além da adoção de medidas educativas. Contudo, sem prejuízo da via administrativa, o consumidor também poderá solicitar a renegociação judicial de suas dívidas, procedimento que contará com audiência de conciliação com os credores e fixação eventual de um plano compulsório de pagamento.

Em particular, nossa legislação acerta ao dar peso relevante à educação financeira como instrumento essencial para a prevenção do endividamento excessivo, assim como ao prestigiar os mecanismos extrajudiciais de conciliação entre devedor e credor para evitar a recorrência massiva ao Judiciário. Outro aspecto positivo da mencionada lei é a restrição de seu escopo às dívidas relacionadas às relações de consumo, o que exclui, por exemplo, os financiamentos imobiliários e créditos com garantia real.

Contudo, ao trazer uma maior facilidade para a renegociação das dívidas contraídas pelos consumidores, a nova lei afeta a política de crédito das instituições financeiras e, dependendo da maneira com que é aplicada, pode reduzir o acesso ao crédito de pessoas cujo perfil de risco indique maior probabilidade de recorrência aos mecanismos instituídos pela nova lei. Restrições de acesso ao crédito a cidadãos que já estiveram superendividados pode ser uma forma de defesa responsável do consumidor, mas há o risco de exclusão arbitrária de pessoas que voltaram a ter capacidade de se endividar responsavelmente.

A maneira correta de lidar com os dilemas acima apontados é principalmente evitando-se o “moral hazard”, situação em que o consumidor sabe de antemão que não tem condições (ou disposição) para repagar o crédito e ainda assim o contrata, confiado nos mecanismos instituídos pela legislação. Muito embora a lei 14.181/221 estipule que o consumidor que se sujeita à repactuação dívidas deva se abster de condutas que importem agravamento de sua situação de endividamento, o levantamento previsto das restrições do consumidor em cadastros de inadimplentes ainda antes da liquidação total da dívida pode criar “moral hazard” e incentivar comportamentos oportunistas que violem o espírito da lei.

Além disso, considerando que a lei abarca todo endividamento derivado das relações de consumo, para sua maior efetividade é necessário que estejam em pleno funcionamento as centrais de risco de crédito (“cadastro positivo”), caso contrário os ofertantes de crédito não terão como avaliar na sua totalidade e com a acurácia necessária a situação do endividamento do consumidor. Infelizmente, porém, esse importante requisito até agora não está presente no Brasil.

Outro aspecto que merece atenção na aplicação da lei em nosso país é a necessidade de uniformização de conceitos e procedimentos judiciais e extrajudiciais, objetivo que se reconhece complexo tendo em vista nossa organização judiciária e a competência concorrente entre as três esferas federativas nos temas de defesa do consumidor. Especificamente, uma definição clara e objetiva do conceito de “mínimo existencial” se faz urgente e necessária para evitar prejuízos para a oferta de crédito aos consumidores.

*Gustavo Loyola é doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central e sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo.

 

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