quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Maria Cristina Fernandes - Vingança é um prato que dá indigestão

Valor Econômico

Mais do que uma decorrência do arranjo vigente, o que está em curso no controle do MP é um novo pacto institucional do qual o próximo presidente pode vir a ser a principal vítima

Duas das iniciativas mais vistosas do Supremo e do Congresso desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o inquérito das “fake news” e a CPI da Covid, se deram, em grande parte, no exercício de funções inerentes ao Ministério Público. Talvez por isso a desidratação do MP hoje em curso no Congresso apareceu como uma adaptação da espécie ao seu habitat. Mais do que uma decorrência do arranjo vigente, porém, o que está em curso é um novo pacto institucional do qual o próximo presidente a ser eleito pode vir a ser a principal vítima.

Basta ver a força adquirida pelo STF e pelo Congresso no relatório final do deputado Paulo Magalhães (PSD-BA). Ganham vagas na composição de um Conselho Nacional do Ministério Público que passa a ter o completo controle sobre os atos dos integrantes da corporação. Se a inexistência de controle franqueou a politização da corporação, aquele que agora lhe é proposto tampouco lhe permite cumprir suas funções constitucionais.

A politização do MP foi, até muito recentemente, um processo que teve a anuência das duas instituições que agora se arvoram a controlá-lo. O Supremo anuiu ao validar, por exemplo, o impedimento da nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Casa Civil. Foi decorrência da quebra de sigilo telefônico da ex-presidente Dilma Rousseff pedida por um procurador da República e decidida por um juiz federal. E o Congresso também deu anuência aos desmandos da Lava-Jato ao cassar o mandato daquela presidente.

A realidade supera a ficção para além do bolsonarismo. Agora ambas as instituições se arvoram em seus poderes sobre o MP a partir de um projeto cuja iniciativa original nasceu de um partido apeado do poder pelo impeachment.

Como tudo no Congresso, o que era um cabresto virou uma focinheira com enforcador. Para se aquilatar a ameaça que esta aliança entre Congresso e Supremo traz para o próximo presidente tome-se, por exemplo, o que se passa com o Orçamento. Para exercer o poder a lhe ser conferido pelas urnas, o presidente precisará resgatar o governo das mãos do Congresso. Por mais parlamentares que eleja, as bancadas não trocarão nenhum ministério pelo poder de deliberar, sem dar satisfação a ninguém, sobre R$ 18,5 bilhões apenas em emendas de relator.

A única saída será recorrer ao Supremo, Corte onde dormitam em sono profundo duas ações pela inconstitucionalidade dessas emendas. Se o controle sobre o MP estivesse em pauta neste futuro próximo, o Executivo teria mais meios para repactuar as atribuições. Que o partido do candidato que lidera as pesquisas tenha tomado a iniciativa da pauta só demonstra que despreza as armadilhas do futuro ou se deixou cegar pela ânsia de vingança.

É claro que tem alguma coisa errada com um sistema de controle que, das 52 representações contra o procurador Deltan Dallagnol, dá curso a duas, sendo que uma delas foi suspensa pelo próprio Supremo. É claro também que falta transparência, prestação de contas e até um código de conduta e ética ao MP. A questão que se coloca é que a correção de rumos se dá numa conjuntura desfavorável a um arranjo institucional mais democrático.

CNMP e CNJ são irmãos gêmeos. Foram criados em 2004 para exercer controle sobre duas instituições poderosas e não eleitas. Se Deltan mal foi punido, o que dizer do ex-juiz Sergio Moro, que até candidato a presidente será?

Ampliados, os números não deixam dúvidas: tanto o controle do MP quanto o do Judiciário são imprestáveis, mas o CNJ consegue ser pior. Entre 2005 a 2019, o CNMP instaurou 137% processos a mais que seu congênere do Judiciário e aplicou um número 122% maior de penas, ainda que apenas um décimo delas tenha levado a demissão ou perda de aposentadoria.

A conjuntura de ataques frontais do presidente da República ao Supremo inibe quaisquer movimentos de correição sobre a Corte. Pesquisa da FGV-SP deixou claro que a maioria da população vê no Judiciário uma salvaguarda de seus direitos e interesses. A atuação em defesa da ciência e da federação ao longo da pandemia reforçou a centralidade da instituição para a democracia.

Mas se é preciso se curvar às evidências de que a correlação de forças é desfavorável a reformas institucionais, qual é a razão de se levar adiante a correição do MP? Se for vingança, quente ou fria, só pode dar indigestão.

Basta olhar para o que se passa com a indicação do ex-advogado-geral da União ao Supremo. A pressa do Congresso em arrochar o controle sobre o MP é inversamente proporcional ao ritmo com o qual tramita a indicação de André Mendonça. Os mesmos partidários das mudanças imediatas no CNMP não vêm problema em deixar a Corte desfalcada até 2023. Querem maximizar os ganhos possíveis na conjuntura sem concessões a um governo moribundo.

Nada melhor para o Congresso a ser eleito do que ter o poder de chancelar uma vaga dessas. É um meio de se fortalecer frente ao banho de legitimidade que qualquer presidente, saído das urnas, terá na relação com o Legislativo. O Congresso que já tem o Orçamento na mão ruma para ter uma vaga no STF logo de saída sem o incômodo de negociar o controle do MP.

Pato manco

A percepção de que André Mendonça é vítima mais dos problemas de Bolsonaro do que dos seus próprios nunca foi tão real. E se tornou ainda maior com a iminência da entrada de Moro na disputa eleitoral. No entorno do presidente, avalia-se que o potencial de votos que o ex-juiz é capaz de tirar do eleitorado lavajatista de Bolsonaro somado ao eleitor das pautas identitárias que uma eventual candidatura Eduardo Leite roubaria de Lula já seriam suficientes para tirar o presidente do segundo turno.

Vem daí, em grande parte, a pressão para a sabatina num momento em que Bolsonaro ainda é projeto de pato manco. Se perder as lideranças evangélicas que estão penduradas na vaga, pode enfrentar uma inexorável mutação de ordem animal.

Mais do que o plenário, o maior obstáculo é o presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (AP-DEM). De tanto obstruir a indicação, o senador passou a enxergar em Mendonça a miragem de um ministro disposto a se vingar daquele que lhe impôs a humilhação da espera.

 

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