quinta-feira, 21 de outubro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Populismo à custa dos pobres

O Estado de S. Paulo

Tentativas de flexibilizar teto de gastos tornaram-se rotineiras sob Bolsonaro

Os pobres pagarão a conta – e será pesada – se o presidente Bolsonaro levar adiante sua nova jogada populista, agravar a crise fiscal e produzir mais inflação. Bandeira de sua campanha eleitoral permanente, o programa Auxílio Brasil, versão turbinada do Bolsa Família, é mais um risco para a saúde já muito precária das finanças oficiais. Sem cuidar de como cobrir os gastos e de como conter a dívida pública, ele determinou a elevação da ajuda para R$ 400 e sua extensão a mais beneficiários. Desses R$ 400, R$ 100 deverão ficar fora das normas fiscais. O resultado será mais uma violação do teto de gastos, disfarçada, se possível, por mais uma exceção à regra constitucional.

Os gastos sociais seriam financiáveis se fossem cortadas outras despesas, como as escandalosas emendas parlamentares abençoadas pelo presidente, mas nenhuma solução desse tipo foi decidida. Numa longa reunião, a equipe econômica mostrou os efeitos do aumento improvisado e voluntarista do Bolsa Família. “Eu assumo os riscos”, disse o presidente, segundo apurou o Estado.

O presidente chegou a adiar o anúncio do novo programa diante da resistência na equipe econômica, mas afinal o programa foi anunciado ontem, com os problemas de sempre. Para o relator do Auxílio Brasil na Câmara, deputado Marcelo Aro (PP-MG), Bolsonaro “não está dando um presente, ele está emprestando até ganhar a eleição”. O ministro da Cidadania, João Roma, prometeu um programa com responsabilidade fiscal, mas faltou explicar como se ajustará o Orçamento.

Bolsonaro sempre agiu como se a Presidência fosse apenas sinônimo de poder de mando, sem vinculação com a ideia de administração e de responsabilidade fiscal – e sempre que o mercado se dá conta disso, como quando ficou claro o espírito demagógico do novo auxílio, a Bolsa despenca e o dólar sobe.

Ações em queda, dólar em alta e custos maiores para o Tesouro têm refletido a insegurança do mercado quanto à evolução das contas oficiais e, especialmente, da dívida pública. Essa dívida, na vizinhança de 90% do PIB, é bem maior que a média, pouco superior a 60%, encontrada nas economias emergentes e de renda média.

Mas a reação do mercado é muito diferente daquela acessível à maior parte das pessoas. Investidores e outros agentes da área financeira buscam proteção alterando suas aplicações e, em muitos casos, mandando recursos ao exterior. Nada parecido pode ser feito pela maioria dos cidadãos.

Sem meios para se defender, esses brasileiros são os mais afetados pelos desarranjos da produção, pelo desemprego e pela inflação decorrentes dos erros e desmandos do poder federal. Supostamente beneficiários de medidas populistas, os pobres são os mais prejudicados, quando políticas desse tipo resultam em desastres para a economia.

No Brasil, a inflação está na casa dos 10% ao ano, e só é superada. O desajuste é especialmente doloroso por causa do encarecimento de itens como alimentação, eletricidade e gás. Somado ao desemprego, o desastre inflacionário produz miséria e fome.

A nova jogada populista – mais uma no currículo de um presidente capaz do mais ostensivo populismo e do mais descarado desprezo à vida dos concidadãos – será, se consumada, mais um golpe contra as finanças públicas. Parte das despesas com os programas sociais ficará provavelmente fora do teto de gastos, assim como parte dos pagamentos de precatórios.

O Executivo e seus aliados no Congresso tentam agora aprovar limites para esses pagamentos, embora se trate de compromissos já em atraso e com liquidação determinada pela Justiça. Na prática, os credores dos precatórios sofrerão um calote disfarçado.

Criado como norma constitucional no governo de Michel Temer, o teto de gastos, mecanismo necessário para enfrentar o descalabro da passagem de Dilma Rousseff pela Presidência, deveria reforçar a responsabilidade fiscal, limitando o aumento nominal da despesa à inflação do exercício anterior. Essa norma durou pouco e as tentativas de “flexibilizar” o teto por meio de exceções tornaram-se rotineiras na impropriamente chamada “gestão” Bolsonaro – que, a se manter assim, nada ficará a dever à de Dilma. 

As faces de uma tragédia

O Estado de S. Paulo

Relatório da CPI da Covid detalhou as minúcias de um complô para assegurar sustentação política de Bolsonaro à custa da dor dos brasileiros

Após seis meses de trabalho, a CPI da Covid concluiu bem sua missão de sistematizar as evidências de que o presidente Jair Bolsonaro, com seu comportamento irresponsável, ofensivo e desdenhoso, transformou o que naturalmente seria uma grave crise sanitária na pior tragédia do Brasil republicano.

Sem desmerecer o trabalho dos senadores, à CPI não restava muito mais afazer doque reuniras provas que foram produzidas aos borbotões diante dos olhos estupefatos do País, além de aprofundar investigações pontuais e tipificar as condutas dos agentes. As ações e omissões de Bolsonaro e de todos os que a ele se associaram nessa desdita já eram de conhecimento público, em grande medida graças ao trabalho da imprensa livre e independente.

Ontem, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI da Covid, leu o resumo do relatório final. Ao longo das mais de 1.100 páginas do relatório, cuja primeira versão o Estado havia revelado no domingo passado, o relator detalhou as minúcias do que pode ser claramente classificado como um complô para garantir subsistência político-eleitoral ao presidente da República durante a pandemia de covid19 à custa do bem-estar, da saúde e da vida de centenas de milhares de brasileiros. No momento em que Calheiros lia seu relatório, o País contava oficialmente quase 604 mil mortes causadas pelo coronavírus. Seguramente, muitas teriam sido evitadas caso as vacinas tivessem chegado mais rápido aos brasileiros.

Segundo o relator, Bolsonaro, assessorado por um “gabinete paralelo” formado por médicos, políticos e empresários sem cargos no governo federal, decidiu expor o maior número possível de pessoas ao coronavírus afim de produzira chamada imunidade coletiva, negligenciando até onde foi possível a compradas vacinas. O objetivo do presidente era forçara retomada prematura das atividades econômicas e, assim, evitar reveses políticos em sua campanha pela reeleição.

Na visão da CPI, desse cruel desígnio original derivaram todas as demais práticas criminosas que a comissão apurou. Ao todo, o relator propõe o indiciamento de 66 pessoas, incluindo Bolsonaro, seus três filhos com mandato eletivo e seis ministros e ex-ministros de Estado, além de políticos, empresários e servidores públicos que, conforme o relatório, tentaram obter ganhos pessoais à custa do sofrimento dos brasileiros. As acusações incluem crimes como epidemia, corrupção, organização criminosa, charlatanismo, incitação ao crime, prevaricação, usurpação de função pública e crimes contra a humanidade, entre outros.

As faces das 66 pessoas que o relator propõe que sejam indiciadas pela CPI da Covid são bastante conhecidas e a temeridade de suas condutas restou cabalmente demonstrada pela comissão de inquérito. Masa CPI d aC ovidfo ialé me acertou ao dar voz a quem perdeu pais, mães, filhos, avós e amigos em decorrência dacov id -19. Essaéa verdadeira face da tragédia que Bolsonaro insiste em minimizar.

Ad ordos cidadãos ouvidos pela CPI da Covid dá concretude aos crimes cometidos por Bolsonaro na condução do País durante a pandemia. Os rostos do taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva, da enfermeira Mayra Pires Lima, da estudante Giovanna Gomes Mendes da Silva, entre outros que lá estiveram, são a expressão de um país enlutado e indignado com o desrespeito e o descaso com que foi tratado por quem deveria ser o primeiro a zelar por seu bem-estar neste momento dramático.

Bolsonaro aposta na impunidade. Fia-seno compadrio ena leniência das instituições, sobretudo da Procuradoria-geral da República, para sair incólume da tragédia, a despeito do mal que causou ao País. Mas não pode ser assim. “Se ele tivesse ideia do mal que faz para a Nação, ele não faria isso”, disse à CPI a testemunha Kátia Castilho, que perdeu o pai e a mãe para a covid-19. “Não são só números, são pessoas, são vidas, são sonhos, são histórias que foram encerradas por negligências, por tantas negligências, e nós queremos justiça .” É oque o Brasil decente exige. 

CPI acerta ao cortar exageros do relatório final

O Globo

Foi providencial a reunião de terça-feira, na casa do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), para aparar arestas no relatório final da CPI da Covid. Depurou-se o documento de exageros evidentes, como atribuir ao presidente Jair Bolsonaro os crimes de genocídio de indígenas e homicídio qualificado (ambos insustentáveis) e ao deputado Flávio Bolsonaro a acusação de favorecer a Precisa Medicamentos. Mais vale um relatório menos impactante que produza resultado do que um espalhafatoso sem chances de vingar.

Mesmo com os cortes, o documento, lido ontem pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL), é histórico em sua amplitude e ambição. Pela primeira vez uma CPI indicia um presidente por tantos crimes, de tamanha gravidade, em particular os crimes contra a humanidade, cujo julgamento cabe ao Tribunal Penal Internacional, em Haia.

Com base em evidências expostas nas 1.180 páginas, nove tipos criminais distintos foram atribuídos a Bolsonaro: epidemia com resultado de morte; infração de medida sanitária preventiva; charlatanismo; incitação ao crime; falsificação de documento particular; emprego irregular de verba pública; prevaricação; crimes contra a humanidade e crimes de responsabilidade.

A CPI também indiciou outros 65 investigados, ente eles os ex-ministros Eduardo Pazuello e Ernesto Araújo; os ministros Marcelo Queiroga, Onyx Lorenzoni, Wagner Rosário e Braga Netto; o ex-diretor de Logística da Saúde Roberto Ferreira Dias; o empresário Francisco Maximiano, da Precisa; os deputados Ricardo Barros e Osmar Terra; os filhos do presidente Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro, além das empresas Precisa e VTC Log.

A busca de consenso entre os senadores é fundamental para dar solidez às conclusões. A apresentação de um relatório impreciso, contaminado por revanchismo político e sem sustentação jurídica seria uma porta aberta para que os indiciados alegassem inocência, pondo a perder um trabalho de cinco meses, fundamental para explicar e apontar os responsáveis pela hecatombe que se abateu sobre o país.

Numa de suas mais cruéis declarações no decorrer da pandemia, e foram muitas, Bolsonaro disse que morrer era destino de todos. Mas não se pode imaginar que os mais de 600 mil mortos sejam uma fatalidade. Um dos méritos da CPI foi ter mostrado que o destino poderia ter sido outro. O relatório traz detalhes de como o governo se esmerou em menosprezar a gravidade da pandemia, sabotar a vacinação, perseguir a criminosa “imunidade de rebanho”, pregar medicamentos ineficazes contra a doença, disseminar desinformação que também mata, omitir-se diante da população indígena e deixar gente morrer por falta de oxigênio, num dos mais assombrosos capítulos da história de horror. Sem falar nas experiências macabras com cobaias humanas.

O relatório final é só o início do longo trabalho para punir os responsáveis pela maior tragédia sanitária do país. Levar as acusações aos tribunais não será fácil. A Procuradoria-Geral da República, com Augusto Aras à frente, é obstáculo quase intransponível. Mas a meta não deve ser abandonada. Os senadores têm o dever de votar um relatório robusto, preciso, com chance de sucesso jurídico. O comovente depoimento da jovem que perdeu pai e mãe para a Covid-19, levando às lágrimas a intérprete de libras, deveria lembrar a todos que tamanho morticínio não pode passar impune.

A imperdoável trapalhada de Bolsonaro com o Auxílio Brasil

O Globo

Não faltam motivos para o governo se preocupar com a questão social. Mais de 43 milhões de brasileiros não têm alimentos suficientes e 19 milhões passam fome. Combater a miséria deveria ser prioridade do presidente Jair Bolsonaro. Infelizmente, ficou evidente esta semana que a iniciativa de aumentar o valor do Bolsa Família, rebatizado Auxílio Brasil, não passa de demagogia.

À primeira vista, elevar o benefício de R$ 189 para R$ 400 parece uma medida correta. Mas não é. Da forma como foi pensada, é populista, eleitoreira e não cabe no Orçamento. Prejudicará o país todo, em particular os mais pobres. Bolsonaro só está interessado em aumentar a chance de disputar a reeleição em posição mais vantajosa nesse eleitorado, que tem perdido para o principal adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Em vez de embasar o novo programa social em estudos robustos que permitissem atacar a miséria de forma duradoura, criou-se um benefício com prazo de validade, não por acaso coincidente com o calendário eleitoral. Para não violar o teto de gastos, veio acompanhado de uma engenhosa pirueta fiscal, capaz de garantir no Orçamento os recursos para financiar os R$ 400, que Bolsonaro vê como valor mínimo necessário para reconquistar a popularidade perdida.

O governo admitiu estourar em R$ 30 bilhões o teto de gastos de 2022. E nem isso bastaria. O resto da verba para o Auxílio Brasil ainda depende da pedalada nos precatórios — leia-se calote — e de uma reforma absurda no Imposto de Renda que, ao contrário do que o governo faz crer, tende a reduzir a arrecadação, e não ampliá-la. Na prática, tudo isso fará crescer a pressão orçamentária e a indefinição sobre o que fazer em 2023.

Não foi gratuita a reação do mercado — e o vaivém do governo — diante de toda essa ginástica. A manobra é um exemplo cristalino de como o governo dá com uma mão e tira com a outra. Dá com a mão da demagogia aquilo que tira com a mão da inflação.

Obedecer ao teto traz benefícios a todos porque permite baixar os juros e diminuir o custo da dívida pública. Desobedecer gera incertezas, eleva o gasto com a dívida e drena recursos que poderiam ir para áreas críticas. E não só. Desvaloriza o real e alimenta a inflação — que pesa mais no bolso dos pobres. Para piorar, derruba o crescimento, retarda a volta dos empregos e a geração de renda. É, em suma, certeza de mais fome no futuro.

A União não gasta pouco. Gasta muito e gasta mal. O governo Bolsonaro quase nada fez para mudar essa situação. Um amplo leque de reformas corajosas, agenda hoje fora de discussão, seria a solução de longo prazo para abrir recursos. Mesmo no curto prazo, havia outras alternativas. Mas Bolsonaro optou por garantir emendas parlamentares, reajustes de servidores e outros desvarios. Em vez de se esquivar, o ministro da Economia, Paulo Guedes, deveria tratar de evitar que o teto caia sobre nossas cabeças. Os brasileiros famintos não merecem tanto amadorismo.

Ofensiva eleitoral do Planalto vê teto de gastos como estorvo

Valor Econômico

Pagamento de acréscimo temporário de R$ 200 até o fim de 2022 é expediente eleitoreiro óbvio

A decisão do presidente Jair Bolsonaro de elevar para R$ 400, temporariamente, o valor dos pagamentos do novo Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família, indica que o governo mudou de atitude e que não está mais disposto a ser tolhido pelas regras fiscais para ganhar eleições e fará de tudo para isso. O pagamento de acréscimo transitório de R$ 200 adicionais até o fim de 2022 é expediente eleitoreiro óbvio e poderá selar o destino do teto de gastos pelos piores motivos. É possível que Bolsonaro não consiga seu intento. A conclusão de que o teto de gastos tornou-se um estorvo a seus projetos continuístas, porém, é nítida.

Há mais de um ano o governo se debate com a criação de um programa social com a marca do presidente. Chegou ao limite do tempo - não poderá fazê-lo em ano eleitoral. O Auxílio Brasil deve estrear em novembro e houve aumento do IOF para custear as parcelas de novembro e dezembro do programa, com 17 milhões de famílias (o Bolsa Família tem hoje 14,6 milhões).

As dificuldades para colocar de pé um programa ordenadamente, dentro das regras do jogo, são de várias ordens. Bolsonaro trouxe consigo ao governo críticos do Bolsa Família. Nem o presidente nem o ministro Paulo Guedes jamais pensariam em formular um programa social se o atual, bem-sucedido, não fosse obra do PT, com Lula, e se no Nordeste, onde há enorme fatia da população assistida por ele, a popularidade do presidente não fosse a menor em todo o país - e a de Lula, a maior.

O presidente vetou a extinção e fusão de programas menos eficientes, e a utilização de seus recursos para um Bolsa Família mais robusto. Foi em 25 de agosto de 2020 que Bolsonaro fulminou as propostas do então Renda Brasil: “Não vou tirar dos paupérrimos para dar aos pobres”. Como o dinheiro é escasso, o ministro da Economia passou um ano tentando achar fontes de financiamento para o novo programa. A cada “descoberta”, causou mais confusão.

Houve então duas investidas finais. A primeira foi a de taxar lucros e dividendos, para bancar o Auxílio Brasil com benefício maior, em meio a uma reforma ruim e desengonçada do IR. A Câmara virou o programa de cabeça para baixo, e em vez de propiciar ganho modesto de arrecadação, ele trará redução de R$ 28,9 bilhões em 2022 e perdas para os Estados. O Senado sentou em cima do projeto aprovado na Câmara e as esperanças dessa reforma feneceram.

A segunda ação foi a da PEC dos precatórios, na qual apenas R$ 40 bilhões dos R$ 89,1 bilhões seriam pagos, abrindo espaço de R$ 49,1 bilhões de despesas - pelo adiamento de outras despesas. É nessa PEC que o governo quer acrescentar autorização de crédito suplementar para pagar R$ 100 do Auxílio fora do teto.

Com o apoio do Centrão e de seu homem na Casa Civil, Ciro Nogueira, Bolsonaro resolveu abrir um rombo no teto de gastos. Com o pagamento de R$ 400, o custo do Auxílio sobe a mais de R$ 80 bilhões, em um orçamento em que o governo esperava ter uma folga fiscal de R$ 40 bilhões que desapareceu, tragada pela elevação do INPC, indexador de despesas obrigatórias.

Se depender dos aliados do presidente, a conta é mais generosa. Há quem defenda colocar todo o aumento de R$ 200 fora do teto. Há pressão para que outro auxílio, o emergencial, que termina este mês, seja prorrogado. Com que recursos? Cogita-se crédito extraordinário, só cabível para despesas urgentes e imprevisíveis, o que não é o caso.

O ministro Paulo Guedes está engajado na campanha do presidente e tem procurado atender seus desejos eleitorais, mesmo com arranhões na regra fiscal, como é o caso da PEC dos precatórios. O anúncio do Auxílio a R$ 400 não foi divulgado oficialmente porque as resistências partem da equipe da Economia.

A ameaça de desabamento do teto é séria e assim os investidores entenderam, castigando as ações e o real. Há formas dentro das regras para um programa social de R$ 300 e pagamento integral de precatórios, mas passariam pelo fim das emendas do relator (R$ 18 bilhões), cortes na pretensão do fundo eleitoral (de R$ 2 bilhões para R$ 7 bilhões) e em despesas obrigatórias. O Centrão se colocou firmemente à frente da ofensiva contra o teto.

A vitória desses interesses eleitorais será duro golpe na já abalada saúde da economia. Será mais difícil combater a inflação, os juros terão de ser maiores e o crescimento, raquítico, ainda menor. As chances de Bolsonaro se reeleger não aumentam, diminuem.

O fura-teto

Folha de S. Paulo

Em busca de recursos para salvar sua popularidade, Bolsonaro põe em risco a estabilidade econômica

Diante do fracasso de sua administração no combate à pandemia do coronavírus e de outros desafios que o Brasil enfrenta, Jair Bolsonaro decidiu partir para um vale-tudo eleitoral e ameaça levar o país a uma nova crise econômica.

Ao cogitar romper o teto de gastos inscrito na Constituição com a justificativa de que sem isso não será possível ampliar programas sociais, o governo aumenta a desorganização do processo orçamentário e flerta com um desastre que acabará por prejudicar os estratos mais vulneráveis da população.

As primeiras tentativas de flexibilizar os limites surgiram em julho, com a ideia de adiar o pagamento de dívidas com precatórios judiciais, que poderia abrir R$ 50 bilhões de espaço para outras despesas.

Agora, buscam-se recursos para substituir o Bolsa Família por um novo programa social, o Auxílio Brasil, e assim estancar a perda de popularidade do presidente, que tentará se reeleger no próximo ano.

Bolsonaro determinou que sua equipe encontre meios de custear o pagamento de R$ 400 por mês a 17 milhões de famílias, mais do que dobrando o valor médio de R$ 189 dos benefícios pagos atualmente a 14,7 milhões de famílias.

Na ausência de recursos para financiar tal volume de despesas em caráter permanente, aventou-se classificar parte dos gastos como temporários, acomodando um tanto dentro dos limites legais e outro fora do teto.

Daí a proposta de furar a barreira imposta pela Constituição em pelo menos R$ 30 bilhões, número que poderá se multiplicar uma vez rompido o dique.

Ainda há outras demandas a atender, em especial as emendas parlamentares patrocinadas pelos aliados de Bolsonaro no centrão, que podem alcançar R$ 17 bilhões --parte do preço cobrado para barrar o impeachment do mandatário.

A inepta proposta de reforma do Imposto de Renda, que poderia ajudar a financiar o novo auxílio se bem desenhada, empacou no Senado, e não há disposição para buscar alternativas como cortes de subsídios e outras despesas.

A sabotagem às balizas institucionais do orçamento não começou nesta semana, mas avançou com a busca de recursos para satisfazer os interesses da base parlamentar e salvar o pescoço do presidente.

O resultado dessa marcha insensata será mais inflação e desemprego, pondo em risco a estabilidade econômica conquistada a duras penas nas três décadas que se seguiram à redemocratização do país.

Após dois anos e meio investindo contra as instituições erguidas pela sociedade brasileira para deter o arbítrio, Bolsonaro ameaça destruir a confiança que resta nos mecanismos criados para conter os custos da desorganização econômica.

Velho normal

Folha de S. Paulo

Relatos de abusos da ditadura cubana evidenciam equívoco dos que tratam regime com benevolência

Um novo relatório da ONG Human Rights Watch aponta violações graves e sistemáticas aos direitos humanos de manifestantes que foram às ruas protestar contra a ditadura cubana no dia 11 de julho.

Os atos, raríssimos, surgiram de forma difusa, como manifestações de artistas contra novas restrições impostas pelo governo em Havana. O desabastecimento de remédios e alimentos em plena pandemia deu oxigênio ao movimento.

Segundo a Human Rights Watch, as arbitrariedades atingiram mais de 130 pessoas. A partir de entrevistas telefônicas, colheram-se relatos de prisões arbitrárias, condições desumanas de encarceramento e abuso sexual de mulheres.

Os testemunhos são particularmente inquietantes diante da proximidade de uma nova rodada de atos, marcada para 15 de novembro, declarada antecipadamente ilegal pelo regime comunista comandado por Miguel Díaz-Canel.

Como de costume, o líder culpa os Estados Unidos, os quase 60 anos de embargo econômico à ilha caribenha e os cubanos que fugiram para a Flórida por todos os males que afligem a população. É o velho normal do regime fundado por Fidel Castro em 1959, assim como a violência ante o dissenso.

Se o cerco americano a Cuba é um fóssil vivo da Guerra Fria, a ditadura também o é. Ambos convivem num sistema em que o único prejudicado real é o povo cubano.

A reverberação disso afeta o Brasil, onde a fatia majoritária da esquerda nutre romance com o idílio revolucionário há muito desfeito sob as balas crivadas no paredão.

Fosse restrito a grupelhos, seria só lamentável. Mas o principal apoiador do regime cubano no Brasil é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que hoje lidera as pesquisas de intenção de voto para disputar o Planalto em 2022.

Durante os protestos de julho, o líder petista se limitou a dizer que a ditadura não havia feito nada parecido com a violência sofrida um ano antes por George Floyd, homem negro morto pela polícia nos EUA.

Depois, Lula e outros subscreveram carta aberta no jornal The New York Times pedindo o fim do embargo, sem qualquer expressão de empatia com os manifestantes.

Esse déficit democrático da esquerda, associado ao apoio financeiro que a ilha recebeu dos governos do PT, só dá munição à argumentação primária do bolsonarismo de que o petismo é um comunismo à espreita. Lula poderia mudar isso, mas é improvável a esta altura.

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