sábado, 16 de outubro de 2021

Paulo Fábio Dantas Neto* - A volta do mantra da corrupção ao palco mal iluminado do estrelismo chão

A pauta da corrupção avança a passos largos para retomar, agora e principalmente em 2022, o lugar de destaque que teve nas eleições de 2018. Políticos de vários matizes, ao se aproximar a hora eleitoral, pisam sôfregos ou distraídos nos escombros produzidos por aquele confronto devastador entre mocinhos da moral e da nova política e vítimas heroicas de um suposto golpe contra o partido do social.

Se a política fosse só o terreno da reta razão, essa reincidência espantaria, pela estupidez. Primeiro o lulo-petismo, depois o lava-jatismo, perderam o protagonismo para a serpente filo-fascista que se beneficiou daquela guerra entre santos com pés de barro. Nem a hipocrisia de direita, nem o cinismo de esquerda escaparam de efeitos não previstos da artilharia pesada disparada pelo bolsonarismo em 2018, usando munição de um arsenal montado em porões milicianos da antipolítica populista. Milícias, até então só digitais, que ocuparam um vácuo deixado pela desmoralização escandalosa, produzida pela Lava-jato, da antipolítica populista-empresarial que imperou no período anterior e que fora a fonte financiadora da farta – e, também, letal - munição oficial disparada contra adversários do governo nas eleições de 2014. Uns e outros terminaram entre os feridos, o lulo-petismo nas urnas de 2016 e 2018 e o lava-jatismo nas esgrimas palaciana, judiciária e interna ao MPF, transcorridas a partir de 2019. Tanto a política da confrontação como a da colaboração com o bolsonarismo tiveram destinos penosos. Penas análogas às cumpridas pela sociedade quase toda que, longe de ser inocente ou neutra, aceitou os termos de um duelo em que todos tinham a perder, exceto a malta ali autorizada pelas urnas a tomar de assalto o governo, desmontá-lo e, com seu bagaço, desferir torpedos contra as instituições.

A anulação de processos contra Lula e as recentes pesquisas de intenção de voto que lhe dão posição privilegiada juntam-se para produzir, na esquerda petista e seus anexos, duas presunções: a de que Lula foi inocentado e a de que a eleição estará ganha, se Bolsonaro estiver na área. A segunda presunção é animada pela rejeição a Bolsonaro e pela não existência, até aqui, de alternativa eleitoral promissora para evitar a reprise do confronto de 2018, que é encarada como uma revanche e assim desejada. Já a primeira presunção parte de um erro de avaliação (que o lulo-petismo parece compartilhar com áreas do chamado centrão), qual seja o de que o lava-jatismo agoniza porque a Lava-Jato morreu. Na verdade, o lava-jatismo está saindo de uma UTI e arma-se para voltar a envenenar o ambiente político, não só contra Lula e o PT, mas contra a política de qualquer partido. Ao contrário do lulo-petismo, o que o espectro justiceiro almeja, como sempre, não é (ou ao menos não é prioritariamente) ganhar eleições, mas detonar soluções políticas.

 Por falar em detonação, trago um tópico. Ficou mais uma vez demonstrado, nos últimos dias, que João Santana, ex-marqueteiro da Dilma-malvadeza Rousseff de 2014, sente-se à vontade pondo sua perícia a serviço de Ciro Gomes, um proverbial incontinente. A incontinência, agora mais adestrada e manejada de modo melhor, como cálculo político, acaba de ser usada para queimar, contra a ex-cliente, pólvora da mesma marca da que ajudou ela mesma a dinamitar Marina Silva naquela eleição. Dilma reagiu com a obviedade que é sua marca costumeira mas a provocação fez também Lula entrar no samba de partido alto (má vontade elitista, dirão lulistas, chamar sua declaração de golpe baixo) interrompendo um ensaio de retorno do samba-canção “Lulinha paz e amor” de 2002.

Está visto que a política da guerra, na qual o moralismo é perito, é uma língua franca. Está longe de ser privilégio do lava-jatismo ou do bolsonarismo. Sempre houve e há cada vez mais gente de esquerda persuadida pela ideia-máxima de Carl Schmitt de que a relação amigo-inimigo resume o sentido da política, na contramão da racionalização constitucional liberal-democrática. A política da guerra, ideologicamente ecumênica, produz enredos folhetinescos, capazes de estimular o colunismo político, como mostram os numerosos comentários sobre o affaire Ciro x PT.  Dentre eles menciono duas interpretações díspares.

Lendo o colunista Bernardo de Melo Franco temos acesso à interpretação que agrada ao PT: a de que o movimento do "egocêntrico Ciro" (quem poderia lhe lançar a primeira pedra?) é mais uma das suas tentativas, até aqui inúteis, de ser simpático à direita para superar Bolsonaro e ir ao segundo turno contra Lula. Já lendo Vera Magalhães somos apresentados à interpretação oposta à do desejo do PT: a ofensiva da dupla Ciro/João Santana teria buscado, com êxito, tirar Lula da zona de conforto para com isso perseguir o objetivo de tomar o seu lugar no segundo turno contra Bolsonaro. Para o primeiro colunista foi só mais do mesmo. Para a segunda, algo que pode funcionar, no caso, como a lei do ex. Cada leitor pode fazer sua aposta, baseada em palpite ou em preferência.

Apostas e profecias à parte, faço um comentário transversal: assim como a possível candidatura lava-jatista de Sergio Moro pelo Podemos, a lavagem de roupa suja entre Ciro Gomes e o PT contribui para recolocar o tema da corrupção no centro da peleja eleitoral, como esteve em 2018. Melhor para o país seria deixar esse foco na penumbra, onde está de 2019 para cá, quando passamos a ter noção prática de problemas e perigos maiores. Mas as tentações são imensas e acometem mais gente, além do impetuoso e voluntarista Ciro Gomes. Demagogos cortejam o tema como galinha de ovos eleitorais de ouro e, na outra ponta da torcida, imprudentes arriscam-se em jogadas ousadas no Congresso. Dançar sobre o cadáver da Operação Lava-Jato nesse momento pré-eleitoral, como se faz no caso da PEC que modifica a composição do Conselho Nacional do Ministério Público, é cutucar com vara curta a bem viva propensão faxineira, que tem expressão eleitoral, apesar da desmoralização da república de Curitiba. Por mais plausíveis que sejam as mudanças pretendidas, o momento não parece oportuno. Como se sabe, apóstolos do extermínio da tradição política vendem gato por lebre e há quem compre por valor de face.

O espectro justiceiro que ronda a pauta eleitoral tem contado, pois, com a colaboração de quem pisa nos escombros distraído, ajudando a reacender as esperanças de quem celebra o arruinamento político de 2018 com simpatia e convicção. Alcoviteiros da fênix lava-jatista há, inclusive, em vários partidos do centro democrático, fora do centrão. Se essa infiltração prevalecer, o discurso de que a corrupção é a mãe de todos os males do Brasil terá cumprido sua missão desagregadora. A insensatez perderá toda medida se moradas possíveis de uma suposta terceira via se tornarem vulneráveis a esse apelo. Poderão até veicular outras pautas, mas a precedência do tema da corrupção tende a deixar os demais assuntos nacionais à sua sombra, sem aprofundamento algum e entregues aos clichês. Se destituídas de orientação programática compatível com a atual tragédia social, com a crise fiscal e gerencial do Estado e com a falta de perspectiva econômica, essas moradas serão, como na inesquecível canção nostálgica, barracos com portas sem trinco e tetos de zinco furados, onde são dependurados trapos partidários descoloridos. Palcos mal iluminados.

Vale fazer a pergunta óbvia: a quem interessa a volta da corrupção ao centro da agenda? Como resposta cabe até palpite quádruplo. Pode interessar a Ciro Gomes, a Sergio Moro, à esquerda de Lula ou a Jair Bolsonaro, sem exclusão prévia de qualquer dessas opções. Mas se a pergunta for oposta (a quem isso não interessa de modo algum?), será difícil negar que não interessa a quem quer que esteja investindo em costura política agregadora para fornecer ao eleitor, em 2022, um cardápio de candidaturas e propostas que lhe permita se comportar mais parecido com 2020 do que com 2018. Essas forças agregadoras precisarão reagir logo à mixórdia que se prepara e que fará do eleitor palhaço de perdidas ilusões. O silêncio e a inércia diante desse perigo iminente podem parecer a esse eleitor (que as espera sem enxergar), mais do que ao analista que as enxerga, um sinal de que essas forças políticas agregadoras simplesmente não existem. Convém agir, antes que o sinal vire fato.

*Cientista político e professor da UFBa

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