segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Antônio Gois - A cara do governo

O Globo

Em situações normais, o noticiário dos últimos dias em relação ao Enem teria tratado exclusivamente da preparação dos estudantes para a prova. Mas não há nada de normal quando um presidente afirma que o principal exame público de acesso ao ensino superior teria “a cara do governo”. Até o momento, porém, o efeito mais visível da interferência indevida não estava nas questões que apareceram na prova de ontem.

Além do zelo dos servidores do Inep, uma das características que ameniza interferências drásticas e de curto prazo no exame é o fato de ele ser elaborado num processo extremamente profissional. Para que uma questão seja incluída no exame, primeiro é feito um edital de contratação de professores para escreverem perguntas. Uma vez que elas são selecionadas, é preciso ainda fazer um pré-teste com uma amostra de estudantes, para saber qual seu nível de dificuldade e sua capacidade de avaliar o conhecimento do candidato. Após essas etapas, a questão passa a compor o chamado banco de itens. Quanto mais amplo for esse banco, mais segura será a prova, pois o risco de vazamento diminui bastante.

O governo Bolsonaro não teve tempo ainda de moldar as questões que fazem parte deste banco de itens à sua imagem e semelhança. Mas já conseguiu ao menos promover a censura de algumas questões, como revelaram várias reportagens publicadas na semana passada.

Uma delas, de Luigi Mazza no site da Revista Piauí, deu detalhes de como tem sido feita a censura na gestão bolsonarista. Com base em justificativas genéricas e subjetivas, censores tem atropelado a área técnica do Inep. O argumento que mais aparece no documento ao qual a revista teve acesso é o de que determinadas questões poderiam “gerar polêmica desnecessária”. Foram para o limbo perguntas que traziam o contexto da Ditadura Militar brasileira, que mencionavam o uso da camisinha como “meio de prevenção mais barato e eficaz” contra a Aids e até tiras da Mafalda, personagem de quadrinhos criada pelo cartunista argentino Quino.

Disputas em relação à abordagem de valores morais e fatos históricos ou políticos sempre existirão em sociedades democráticas. Mas esses debates precisam ser feitos à luz do dia, com embasamento, nos momentos de construção do currículo nacional. Avaliações da aprendizagem e exames como o Enem devem, portanto, espelhar esse currículo pactuado entre todos os entes federativos, e não os caprichos, idiossincrasias ou preferências ideológicas de um governo A, B ou C.

O impacto da gestão Bolsonaro no Enem, porém, não se restringe à censura de questões. Pode-se dizer que o exame, em alguns aspectos, já teve a cara do governo. A começar pelo fato de que a edição deste ano foi a que teve o menor número de inscritos desde 2005, e a maior queda aconteceu entre estudantes pretos, pardos e indígenas.

Claro que nem tudo é culpa do governo federal. A pandemia certamente teve efeito significativo nesse quadro. Mas as ações do MEC – como a recusa inicial em adiar a prova em 2020 ou o veto em 2021 à gratuidade na inscrição aos alunos que faltaram à prova no ano anterior – foram coerentes com o discurso, já explicitado por todos os ministros da Educação bolsonarsitas, de desvalorização do acesso ao ensino superior, em contraposição aos elogios à educação profissional. Se ao menos a segunda parte do discurso (de valorização do ensino técnico) se tornasse realidade, teríamos algo a celebrar. Mas as matrículas de Educação Profissional em nível médio continuaram estagnadas, mantendo uma tendência preocupante, iniciada em 2014.

Num país com sérios desafios a serem enfrentados no ensino, o tema que mais mobiliza os bolsonaristas na educação – como pode ser comprovado nas falas do presidente – é a censura às questões do Enem. Na falta de resultados concretos para mostrar no setor, resta ao presidente apelar para sua base radical.

 

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