terça-feira, 9 de novembro de 2021

Carlos Andreazza - Esculachos

O Globo

Rosa Weber acertou ao suspender a execução da emenda do relator, fachada — para o exercício do orçamento secreto — em que a sociedade Bolsonaro/Lira se pactua.

É cretinice falar, nesse caso, em interferência do Judiciário no Legislativo; e aqui escreve duro crítico dos arreganhos do Supremo legislador. Não desta vez. Desta vez, Weber exerceu o papel de guarda da Constituição, em defesa do arranjo — transparência, publicidade, moralidade e impessoalidade — que dá higidez à coisa pública. Agiu contra a censura — censura ao cidadão — promovida pelo Parlamento; o comando autocrático da Casa do Povo de súbito avaliando que poderia manusear o Orçamento sem que a população pudesse ver.

É para isso que há a Corte constitucional. Para promover o controle de constitucionalidade e afirmar que, na República, estar investido de poder não equivale a uma licença-arbitrariedade; como quando Luís Roberto Barroso obrigou Rodrigo Pacheco a se comportar como presidente do Senado e instaurar a CPI da Covid. Não foi intervenção, mas lembrança, em favor da democracia representativa, de que a Constituição, apesar dos pachecos, estabelece o Legislativo como Poder independente.

Acertou Barroso então. Acerta Weber agora; para a exposição da figura a que se submete o senador Márcio Bittar, relator-geral do Orçamento de 2021, cuja função aceitou tornar alcova para campanha eleitoral de patota.

O Parlamento é Poder autônomo, mas sua autonomia, apesar dos bittares, não significa independência dos princípios constitucionais. A não ser que estejamos de acordo com a possibilidade de o Legislativo, em conluio com o Executivo, forjar um modo discricionário de controle e execução do Orçamento da União cuja natureza consista na falta de transparência para a distribuição de bilhões a aliados de ocasião.

Isso é o próprio descumprimento de preceito fundamental — um esculacho à Constituição aplicado com objetivo de aprovar uma emenda... à Constituição.

Diga-se — sobre interferência de Poder em outro — que, enquanto este artigo era escrito, estava ainda de pé a agenda em que Luiz Fux se reuniria, para tratar da liminar de Weber, com Arthur Lira, parte interessada, o próprio gestor do orçamento secreto, um dia antes de o plenário do STF votar a matéria. Espero que o presidente do Supremo, evitando o lugar de suspeição com que contaminaria o tribunal, tenha cancelado o convescote. Seria esculhambação excessiva até para os seus padrões.

Não estamos no Império, apesar dos fuxes e da maneira como o autocrata Lira sacrifica o processo legislativo. A isso também, embora não diretamente, reagiu Weber, talvez já antecipando posição sobre os mandados de segurança que pedem a anulação da sessão que aprovou a PEC dos Precatórios em primeiro turno. Que se botem os meios do presidente da Câmara ao sol; inclusive para que compreendamos a que custo — de dinheiro público — o trator tão facilmente opera, com parca resistência, a fraude ao regimento da Casa.

Muito mais grave que a licença oportunista para que deputados licenciados votassem remotamente foi o que Lira fez ao achincalhar a estrutura da emenda aglutinativa. Um presidente da Câmara que — em prol de seus compromissos — move-se degradando as regras da Casa que dirige. Também aí se explica a fundamentação da sociedade com Bolsonaro: o deputado despreza a democracia representativa tanto ou mais que o presidente da República.

O episódio esclarece que a blitz pela PEC dos Precatórios nunca foi por abrir fundos ao novo Bolsa Família. Sempre foi — manipulando a urgência da miséria — por mais espaço ao livre fluxo do orçamento secreto no ano eleitoral. Ou se teriam cortado... emendas. Não. E eis o que temos, afinal: em busca de convencer parlamentares a votar por um projeto que, como finalidade, dar-lhes-ia mais emendas em 2022, oferece-lhes mais emendas em 2021.

A ver como a Câmara — a se confirmar o esvaziamento da ferramenta de diplomacia de Lira — tratará a PEC em segundo turno.

Weber pode ter ajudado Pacheco a não precisar demonstrar seu apreço pelo orçamento secreto; um presidente do Congresso que cogitou levar uma PEC, logo essa, diretamente ao plenário. Seria esta a contribuição do novo Juscelino — cujo amor pelas emendas do relator também merece exame — ao conjunto de assaltos formais com que o tanque que preside a Câmara tem dilapidado o rito legislativo: a um projeto constitucionalmente viciado no conteúdo, que pretende incorporar à Constituição a pedalada fiscal que, não faz muito, derrubou Dilma Rousseff, Pacheco somaria a doença de suprimir o debate da Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

E por que considera fugir da CCJ? Para driblar outra doença. Para driblar — com uma doença — outra doença. Porque a comissão é presidida por Davi Alcolumbre; que poderia obstar o andamento da PEC — como faz com a sabatina de André Mendonça — não pela virtude de lhe questionar a constitucionalidade, mas para atrapalhar o governo que lhe tirou os acessos ao... orçamento secreto. É circular a história de nossa tragédia.

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