terça-feira, 2 de novembro de 2021

Carlos Andreazza - Finados

O Globo

Ao passar a Presidência para (o de súbito pacificado) Hamilton Mourão (qual será o acordo?), Jair Bolsonaro falou em folga. É como o chefe de Estado brasileiro — um destruidor infeliz, agente dilapidador que não gosta de trabalhar, despreza a República e a democracia representativa — compreende uma viagem oficial: folga. Escape. Talvez mesmo liberdade.

Liberdade para — segundo a compreensão bolsonarista de direito individual — forjar inimigos artificiais, difundir conspirações, apregoar desconfianças, investir contra a estabilidade institucional e — por que não? — distribuir pancadas.

Garanto que se divertiu em Roma; especialmente ao ver seus cachorros mordendo jornalistas. Ele não precisaria ter ordenado a caçada para haver ordenado a caçada. Apito soprado faz tempo; e todos os dias. A palavra de um presidente, tanto mais a de um líder personalista que se mitifica, resulta. São anos de pregação até um arranjo autoritário em que jornalistas tenham de agradecer quando apenas intimidados.

Não nos enganemos: aquilo — o que se viu na blitz da milícia de Bolsonaro contra a imprensa — é biscoito para a base social extremista há semanas chateada com o presidente cujas barbaridades restringiram-se, reduziram-se, à desqualificação de vacinas. Como!? Somente isso!?

Não nos enganemos: o assalto contra jornalistas foi o gozo entre bolsonaristas. Desqualificar vacinas já é pouco. A turma quer — acostumou-se com — mais. Quer conflito. E aqui convém projetar, com bastante segurança, o que será o ano eleitoral a vir: uma campanha violenta, materialmente violenta, de riscos sem precedente, e não apenas para profissionais de imprensa, em que as pessoas — como gangues — sairão no braço. Briga de rua, sob o espectro da forra pela facada.

A turma quer confronto. O presidente, por ora, não pode entregar. Não a contento. E, então, a viagem; o 7 de Setembro exportado. A folga. O biscoito.

Pai de Flávio, sócio do conglomerado dirigido por Arthur Lira, em dúvida entre os partidos de Ciro Nogueira e Valdemar da Costa Neto, com João Roma por ministro do Planejamento e Augusto Aras, da Defesa, em parte sossegado pelo delegado Alexandre de Moraes, em outra pela necessidade de não atrapalhar a costura do Orçamento para a reeleição em 2022, Bolsonaro foi bancar o antiestablishment na Itália.

O ataque físico a jornalistas foi o auge de seu propósito em Roma, afago concreto nos seus. Nada, porém, definirá melhor a passagem pela reunião do G20, dedicada ao consumo dos radicais bolsonaristas, do que a imagem de presidente isolado. Tem método. Aquele que não se mistura. Que não se adéqua. Que não se conforma à liturgia burocrática da União Europeia. Que não sabe e não quer dançar a música globalista.

Biscoito.

Não teve encontros bilaterais: biscoito. Não ficou em rodinhas de saguão com Trudeau e Macron: biscoito. Não deu aperto de mão no primeiro-ministro italiano, o anfitrião: biscoito. À vontade apenas com garçons, falando de futebol: biscoito. Nós, os elitistas, nos escandalizamos: biscoito. Eis o roteiro que alimenta o populista autocrático, eleito contra o sistema, que, em casa, tem Ricardo Barros como líder no Parlamento.

Um tal estelionatário eleitoral precisa mesmo buscar campos mais favoráveis ao exercício das fantasias que enredam os crentes. Os fiéis, mesmo aborrecidos, exigem pouco. E decerto terá pensado — o presidente do Brasil que, segundo jactância ao colega autocrata turco Erdogan, “não aceitou indicação de ninguém” para compor o ministério, logo o chefe de Fábio Faria, Flávia Arruda, João Roma e Ciro Nogueira — que encontraria na Itália condições para mentir sem refutações; não sendo improvável que a frustração dessa expectativa tenha robustecido a selvageria contra a imprensa. Biscoito.

O cálculo de Bolsonaro, gerador de caos que só pensa em permanecer no poder, é simples e funcional; e precisará de “folgas” como essa tirada na Europa: cultivar — ministrando extremismos, não raro socos no estômago — os seus 15% de fiéis, pesar na caneta presidencial para encorpar os votos via máquina, daí por que a morte do teto de gastos e a multiplicação dos bilhões para bancar a sociedade com Lira, e avançar ao segundo turno apostando novamente em que o sentimento antilulopetista, ora adormecido e de força subestimada, mobilize-se. E, se não der para vencer, ter volume para tumultuar.

Conta com sabujos ressentidos como Marcelo Queiroga — boa mostra do apoiador bolsonarista mais engajado — para isso; um miserável moral que pensa ganhar existência servindo como ministro da Saúde de Jair Bolsonaro.

É como encerro, aliás: com a memória da cara de mario-frias de Queiroga contando ao diretor da OMS, talvez babasse de prazer, que passeará com o presidente em Haia por também ser acusado de genocida. Um homem que reage assim — servil ao cinismo — ante a acusação de ter responsabilidade objetiva pela morte de milhares de pessoas é mesmo livre.

Não se pode subestimar, não nos tempos que correm, a capacidade competitiva desses patriotas.

 

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