terça-feira, 23 de novembro de 2021

Carlos Andreazza - Rei morto, rei posto

O Globo

Você leu a excelente reportagem de Natália Portinari neste GLOBO, no último domingo? Tinha por chamada, na capa: “Alcolumbre fez do Amapá líder de verbas do orçamento secreto”; com o que se evoca o trabalho referencial de outro grande repórter, Breno Pires, do Estadão, aquele cuja investigação puxou o fio do controle — discricionário e oculto — de bilhões do Orçamento da União por e para poucos parlamentares. (Aliás: por onde andará o senador Marcio Bittar, relator-geral do Orçamento de 2021?)

Destaque-se o tempo verbal aplicado ao “fazer” na manchete: fez. Alcolumbre, então presidente do Senado, fez de seu estado, em 2020, a unidade da Federação com maior repasse proporcional de verbas oriundas das emendas do relator. Só que aquele ano acabaria e, com ele, o biênio do jovem coronel na presidência do Congresso.

Rei morto, rei posto.

Mas o rei morto é valente. Não se entrega. E usa prerrogativa do Senado — manipula a concertação que dá equilíbrio aos Poderes — para ir à forra. Quem paga a conta do bezerro desmamado, ableitado porém brioso, de súbito sem a derrama do orçamento secreto, ofendido para além da morte, rei morto e ainda — a desonra maior — deserdado? André Mendonça, cuja cadeira no Supremo depende de aval do Senado.

Eis o título da matéria de Portinari, à página 4: “Orçamento secreto é pano de fundo para trava de Alcolumbre à sabatina de Mendonça ao STF”.

Mendonça paga. E nada de arguição na Comissão de Constituição e Justiça. Coroné Alcolumbre não quer. Plantou até que seria ato de resistência, em defesa da democracia, contra o golpismo de Bolsonaro. Um esculacho. Não deixa, contudo, de reagir a um golpe. Levou rasteira dos antigos sócios. Tiraram-lhe a propriedade sobre destinos de dinheiros públicos.

Rei morto, rei posto.

Mas o rei morto é intrépido e cedo aprendeu a explorar a privatização sem limites das prerrogativas de senador. É o presidente da CCJ. Mexeram com o patrimonialista errado. Paga Mendonça. Pagaria qualquer um, até um que estivesse à altura de guardar a Constituição.

Paga a conta pelo personalismo vingativo-chantagista de Alcolumbre — isto, sim — a República. Porque o rei morto, tendo feito sucessor no comando do Congresso, pensou que pudesse ser príncipe e manter a gestão de bilhões sob a máscara das emendas do relator. Pensou. E pensou erradamente. Passou o trono. A fonte secou. Ficou bravo. Diz-se que retalia o governo, que decerto traiu acordos. Bolsonaro é traidor. Sem dúvida. Todos corretos uns sobre os outros. Ok.

Acrescente-se, entretanto, nova linha à trama. Uma obviedade. Coroné Alcolumbre se vinga também — e não se fala a respeito — de Rodrigo Pacheco, o rei posto, cuja presidência do Senado é atrapalhada pelo engessamento da CCJ.

É preciso falar sobre o rei posto, o novo Juscelino. Ou não estará posto? Há um passivo na mesa. E a conta não fecha sem inocência. O rei morto destinou, no ano passado, quando rei vivo, pelo menos R$ 320 milhões — em emendas do relator, a fachada para a circulação do orçamento secreto — ao Amapá.

E o rei posto? Nada? Tem nada com as emendas do relator? É rei desinteressado? Ou será somente reservado? (Como Pacheco se relaciona com o sumido Bittar, o relator?) Porque, de repente, parece que o orçamento secreto saiu do Senado com Alcolumbre da presidência. Ou que a engrenagem continua girando na Casa, mas sem patrono. Orçamento discreto? Orçamento secreto automático?

Saiu Alcolumbre, o guloso, e então Pacheco abriu mão de controlar a grana? O rei posto não reina? Abdicou de reinar? O rei desapegado. E aceitamos bem essa versão? Ou terá delegado?

Vinga-se Alcolumbre do governo, porque lhe tomou o poder das distribuições. Mas não de juscelino Pacheco, herdeiro natural dessa mão? Hum...

O estadista Pacheco, em rara união com o patriota Arthur Lira, não tardou a se manifestar — em defesa da autonomia do Legislativo — contra a liminar que suspendeu a execução das emendas do relator. Nenhum interesse pessoal no protesto. Tudo pela separação entre Poderes. Daí por que seja um dos articuladores — sempre em defesa das prerrogativas do Parlamento, como Alcolumbre — de uma resolução do Congresso por meio da qual se daria publicidade, nome aos bois, a deputados e senadores solicitantes das emendas do relator.

Um sentido que encaminharia a solução para o problema — ante o qual o STF exerceu o controle de constitucionalidade — da transparência. Mas que não cuidaria da corrupção da isonomia, da discricionariedade, essencialmente antirrepublicana, afronta à Constituição, como bilhões do Orçamento têm sido movimentados para beneficiar os que votam com o governo e os liras.

De modo que, do Rodrigo Pacheco em que se tenta acreditar, um independente, o esperado seria um pronunciamento pela restituição das emendas do relator a sua natureza técnica original: um recurso para a promoção pontual de correções em erros materiais na Lei Orçamentária Anual. Que tal?

É o que o mundo da fantasia espera do presidenciável de Gilberto Kassab.

 

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