domingo, 7 de novembro de 2021

Dorrit Harazim - Miudezas

O Globo

Nem mesmo uma arrancada tão concreta rumo a algum futuro para o país, como o ingresso do Brasil no universo 5G, consegue escapar da marca impressa por Jair Bolsonaro em tudo o que faz. Assim será enquanto durar o seu inquilinato no Palácio da Alvorada. Diante dos desdobramentos múltiplos do leilão ocorrido nesta semana, a fala presidencial na cerimônia de abertura acabou engolida pelo noticiário do substantivo fato em si. Ótimo. Mas é com miudezas de grandes momentos que se constrói, também, o retrato de um governante. Vamos então às miudezas.

Foram menos de dez minutos de discurso no estilo definido por um ácido observador diário do presidente como “perdido de amor por si próprio”. Jair começou narrando sua visita à “Torre de PiZZa”, entrementes um clássico nos anais dos discursos da República. Por sorte, o intérprete de Libras da Presidência, Fabiano Rocha, sinalizou ao mundo que a torre mencionada era mesmo a de Pisa. Também exemplar foi o chefe do cerimonial, Marcos Henrique Sperandio, que corrigiu com zelo a posição adequada do boné amarelão 5G depositado no púlpito pelo orador. Fundamental!

O que se seguiu foi patético. Apesar de o momento ser de relevância não apenas nacional, como também mundial, Jair parecia estar a falar para seus apoiadores de cercadinho — e de certa maneira estava, pois o magma governista ali perfilado lhe faz reverência semelhante. Alinhavou de uma lufada só a “fábrica de fake news que temos no Brasil” (referia-se à imprensa, não aos filhos); pulou de pistas e futuros hotéis flutuantes nos rios amazônicos para uma de suas obsessões pessoais — “facilitar a vida de quem gosta de jet ski”. Disse já ter conversado com o comandante da Marinha sobre o tema. Por nunca ter tirado a carteira de habilitação obrigatória no país e zanzar em motoneta aquática por onde vai, reclamou da burocracia e acenou com um frondoso advir do “turismo de jet ski”. O 5G serviria para “consolidar tudo isso aí...”.

Também enveredou por reminiscências de sua iniciação na web, quando “o Flávio tinha 8 anos...” e rememorou o espanto ao assistir a uma simulação do agronegócio que mostrava “uma mulher pilotando uma daquelas máquinas grandes...!”. “Já pensou”, prosseguiu animado, “uma mulher tirando uma fina de 5 centímetros! Tem que ter um coração do tamanho do Carreiro... Não tem quem não seja apaixonado pelo Carreiro aqui”. O Carreiro da frase, presente e quieto, era o ministro do Tribunal de Contas da União, Raimundo Carreiro, recém-indicado pelo presidente para a embaixada do Brasil em Portugal. Mesmo que a referência não tivesse sido feita em discurso sobre a chegada do 5G à terra brasilis, é difícil adivinhar o nexo entre uma operadora de equipamento agrário e o coração de quem vai representar o Brasil no país com quem temos relações umbilicais.

O tom coloquial — preferido do presidente quando não usa tom degradante ou raivoso — foi aplaudido. Ao final, ainda apresentou a intenção de “fazer da Itaipu Binacional um grande local de pesca” e dobrar a produção de pescado no local. Concluiu descrevendo “como vai ser tudo isso com a entrada da internet (sic) — fantástico”.

O perturbador é acharmos normal um chefe de nação não ter qualquer pretensão nem necessidade de se comunicar com a sociedade que governa. Basta a Jair improvisar algo chinfrim a título de visão de futuro, e seus apoiadores aplaudirão. Quanto à oposição, parece atolada em indignação turbinada em velocidade 5G. Resta a grande maioria dos brasileiros. Estes buscam a vivência humana espremidos entre duas manchetes, uma acima da outra, da Folha de S.Paulo de sexta-feira. A primeira anunciava “Bradesco aumenta lucro em 34,5% no terceiro trimestre, para R$ 6,76 bilhões” (na véspera, o Itaú Unibanco apontava lucro igualmente rombudo). A segunda, uma reportagem de Ideídes Guedes, era sobre a cotação de ossos: “Açougues de Fortaleza vendem ossos de boi ‘de primeira’ e ‘de segunda’ por até R$ 25”.

É num outro Brasil “de primeira” que Jair Bolsonaro outorgou-se, nesta semana, o título de Grão-Mestre da Ordem Nacional do Mérito Científico, reservada ao chefe da nação. E que o vereador carioca Carlos Bolsonaro viajou para a Itália com passaporte diplomático para acompanhar o pai à Torre de Pizza. E que o médico Ricardo Camarinha, assessor especial do presidente, está sendo acomodado no escritório de Miami da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex), a pedido do chefe.

São apenas miudezas diárias. Quando somadas às questões nacionais de vulto, porém, fica escancarado que a luta por uma sociedade mais decente deixou de ser opcional. É do compositor e maestro Leonard Bernstein, dono de uma genialidade tão singular quanto seu inarredável idealismo, uma concepção amorosa do ser humano. “Não posso prová-lo”, contou na longa entrevista a Jonathan Cott que virou livro, “mas no fundo do coração sei que toda pessoa nasce com vontade de aprender. Sem exceção. Toda criança estuda seus dedos da mão e dos pés... À medida que crescemos, aprendemos a ser cínicos, vamos gradualmente enrijecendo a arte do aprendizado, apagamos a luz da curiosidade e nos tornamos calcificados”. A menos que...

A cada um sua escolha. Ela é diária, permanente.

 

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