quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Malu Gaspar - O debate interditado em 2022

O Globo

Não há no Brasil nenhum cidadão de boa-fé que diga que Lula, quando presidente, fez qualquer movimento para instituir um regime autoritário e sufocar a democracia. Ninguém tampouco discorda que o petista foi eleito democraticamente e entregou uma democracia à sucessora. Mas também ninguém ignora que, justamente por causa do golpismo de Jair Bolsonaro, a saúde da nossa democracia será tema central na campanha de 2022. Nos últimos dias, seguidores de Lula tentam fazer valer a tese segundo a qual ele não pode ser cobrado sobre o que diz e pensa de ditaduras de esquerda ao redor do mundo.

Na origem da celeuma estão as declarações do ex-presidente ao El País sobre a Nicarágua. A Corte Interamericana dos Direitos Humanos atribui ao regime de Daniel Ortega a morte de 300 opositores e a prisão de outros 500 nos protestos de 2018. Só neste ano, mais de 30 foram presos, entre eles sete candidatos que disputariam a eleição no último dia 7.

Depois de afirmar ser favorável à alternância de poder, Lula se enrolou. Disse que podia até ser contra o regime, mas que era preciso “defender a autodeterminação dos povos”. E emendou: “Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e o Daniel Ortega não? Por que o Felipe González pode ficar 14 anos no poder?… Qual é a lógica?”. A diretora do El País, Pepa Bueno, expôs a lógica: nem Merkel nem González se mantiveram no poder colocando opositores na cadeia.

Depois da exibição desse trecho da entrevista nas redes sociais, os lulistas acusaram os críticos de ser desonestos. Isso porque, mais à frente, o ex-presidente diz que não sabe o que “as pessoas fizeram para ser presas” e acrescenta que “se Daniel Ortega prendeu a oposição para não disputar a eleição, como fizeram no Brasil contra mim, ele está totalmente errado”. Quem quiser que acredite que Lula não sabe o que se passa na Nicarágua. Mas, já que o problema é reproduzir na íntegra suas falas, vale a pena comentar o que veio depois.

Questionado sobre a ordem da ditadura cubana que proibiu protestos contra o governo, em outubro, o ex-presidente se saiu com uma justificativa no mínimo esdrúxula para quem já foi preso por fazer greve e comandou protestos contra a ditadura: “Olha, não é só em Cuba que protestos são proibidos. No mundo inteiro, protestos são proibidos… Greves são proibidas, a polícia bate em muita gente, a polícia no mundo inteiro é violenta”.

E continuou:“Agora é engraçado, porque a gente reclama de uma decisão que evitou protestos em Cuba e não reclama que os cubanos estavam preparados para dar vacina e não tinha seringa, e os americanos não permitiram que entrasse a vacina em Cuba”. Pepa Bueno de novo o confrontou com o óbvio: “Mas se podem fazer as duas coisas: condenar o bloqueio e pedir liberdade nas ruas para os opositores”. Lula não se rendeu: “Você não vai resolver o problema da democracia em Cuba instigando os opositores a criar problemas para o governo. Você vai conquistar a democracia em Cuba terminando com o bloqueio”.

Não se pode dizer que as posições de Lula e do PT quanto a ditaduras de esquerda sejam novidade. Em 2018, ao ser questionado a respeito, o candidato Fernando Haddad admitiu que nem a Venezuela nem a Nicarágua podiam mais ser consideradas democracias. Assim demonstrou que tais questões eram relevantes, principalmente para alguém que disputava uma eleição contra um defensor da ditadura. Hoje, lulistas de todos os calibres consideram uma afronta questionar ou criticar o ex-presidente pelo que diz e pensa a respeito.

Com o argumento de que criticar Lula pode acabar dando vantagem a Bolsonaro, seus seguidores já decretaram que é golpista questioná-lo sobre os casos de corrupção no governo do PT, uma vez que suas condenações foram anuladas no STF. Afinal, mais grave do que alguns bilhões desviados dos cofres públicos é a ameaça à democracia que Bolsonaro representa.

Só que, agora, a questão é justamente o que o líder nas pesquisas de opinião considera uma democracia saudável e funcional. Tanto Daniel Ortega como Nicolás Maduro sufocaram suas Cortes superiores para se perpetuar no poder. Não é relevante saber o que Lula pensa disso, quando o bolsonarismo e o Centrão fazem gol de mão na Câmara para tentar garantir ao presidente nomeação de mais dois ministros do Supremo Tribunal Federal?

Numa democracia de verdade, é legítimo e esperado que todos os candidatos sejam cobrados sobre todos os assuntos. Se queremos que a eleição de 2022 nos restitua uma democracia sólida e vibrante, é preciso antes de mais nada reavivar o debate plural, leal e consistente. Se os que se dizem democratas acham razoável interditar alguns assuntos em nome de um bem maior, talvez a tarefa de regenerar nossa democracia se revele ainda mais complexa do que parece.

 

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