quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Maria Celina D’Araujo* - Parlamentarismo numa horas dessas?

O Estado de S. Paulo

Bolívar Lamounier aposta todas as fichas numa reforma política que inclua a mudança do sistema de governo, com voto distrital misto

Este artigo é sobre um importante livro de Bolívar Lamounier e toma como título uma ideia de Luis Fernando Veríssimo. Quando Veríssimo acha que tudo está de pernas para o ar, acrescenta uns versinhos em sua coluna com o título Poesia numa horas dessas?

Lamounier é um cientista político, de recorte parlamentarista, com grande e longa contribuição ao debate sobre ideias e formas na política brasileira. Desde os anos 1970, sua obsessão benigna tem sido o aprimoramento do sistema político, do ponto de vista institucional – eleições e governo. Coerentemente, em sua trajetória, tem insistido na importância de construir instituições, numa perspectiva que remete a Stuart Mill: boas instituições fazem a boa democracia. Seu livro Da independência a Lula e Bolsonaro, dois séculos de política brasileira (Editora FGV), que abordo aqui, é prova cabal disso. Trata-se de reedição de versão anterior (2005), que acompanhava a trajetória política do Brasil até o governo Lula da Silva. Desta feita, há um acréscimo analítico sobre o governo Bolsonaro apontando para o descalabro a que o País chegou: presidente autoritário, inescrupuloso e beócio, sistema partidário pífio, fisiológico e volátil, sistema eleitoral negligente, ausência de projeto de desenvolvimento político e econômico, País à deriva, população empobrecida descrente das capacidades do governo e ricos cada vez mais ricos. País que se acomodou na tese da renda média – na verdade, a melhor armadilha para o retrocesso.

Debater reformas e instituições remete, no Brasil, a envolver-se com projetos ideológicos e preferências político-eleitorais distintas. Parlamentarismo foi, durante a Constituinte de 1987/1988, identificado como tema tucano contra a preferência presidencialista disseminada em várias correntes, especialmente no PT, e que já havia predominado no plebiscito de 1963. Mesmo derrotado no plebiscito de 1993, este é, para Lamounier, tema inegociável. Nosso presidencialismo é, para ele, tiro no pé, modelo político marcado pela irresponsabilidade da maioria parlamentar

de plantão, que faz do Brasil terreno de ineficiência e mediocridade.

O conceito “presidencialismo de coalizão” foi um tábua de salvação, teórica e intelectualmente bem construída pelo cientista político Sérgio Abranches, durante os debates da Constituinte, que tornou palatável um arranjo de governo que a princípio tinha tudo para dar errado. Isso porque o Brasil seria um país presidencialista com um presidente minoritário no Congresso, em decorrência do nosso sistema eleitoral, mas que conseguiria governar-se com base em coalizões partidárias parlamentares, tal como havia ocorrido com a República de 1946.

Com o decorrer dos anos, as coalizões foram crescendo em razão da maior fragmentação partidária e se tornaram fator de chantagem mútua entre Legislativo e Executivo. A coalizão sem escrúpulos tornou-se rotina. O presidente mantém a iniciativa parlamentar e a coalizão fisiológica faz o preço da barganha para aprovar a pauta do presidente quando lhe interessa. Para Lamounier, um modelo presidencialista que tinha tudo para dar errado confirmou a profecia.

A par disso, a polarização política na sociedade, nomeadamente a partir dos governos do PT, fortaleceu o ímpeto personalista da política brasileira a que Lamounier chama de plebiscitarismo: a crença em grandes líderes, modelo instituído por Vargas, que hoje delimita o horizonte em torno de dois possíveis candidatos salvadores da Pátria, numa disputa de mútua demolição. E, para Bolívar, aceitar a terceira via seria coonestar com o status quo institucional.

Temos atualmente, segundo o autor, acordos políticos baseados em conveniências não republicanas, radicalização política e ideológica e, nos extremos, monumentos à mediocridade. Este descalabro não é superado por ordem espontânea, mas sim por uma determinação firme de reordenamento institucional.

Vários cientistas políticos, analistas, empresários, intelectuais e representantes sindicais estão cada dia mais preocupados com como sair deste impasse. Nesse sentido, a palavra reformas vem sempre à tona, e tanto aparece que acaba desmoralizada. Mas, para Lamounier, é disso que se trata. O autor tem lado e coerência nesta discussão, e seu livro mostra bem isso. Aposta todas as fichas na necessidade de uma reforma política ampla, que inclua, entre outras coisas, a mudança do sistema de governo, de presidencialismo para parlamentarismo, com voto distrital misto. Uma proposta pautada pelos tucanos na Constituinte e que, segundo ele, deve ser reeditada sob o risco de o País não conseguir sair de uma modelagem institucional que o condena a uma mediocridade econômica exemplar. O salto para a frente dependeria de obras de engenharia política que alterassem as atuais estruturas anacrônicas que têm o atraso como projeto.

Deixo claro que este é um livro de combate, cada capítulo pode ser lido como uma unidade, sempre com ênfase nos sistemas de representação política em suas conexões com cada período histórico do País, seu sucesso e recorrentes retrocessos. •

*Professora da PUC-Rio

Nenhum comentário:

Postar um comentário