domingo, 28 de novembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais

EDITORIAIS

A ‘maldade’ do ‘mundo político’

O Estado de S. Paulo

Ao falar mal do mundo político, governo Bolsonaro fala mal de si mesmo

Não é de hoje que a seara política é vista de forma pejorativa, marcada por interesses e práticas escusas. Com os escândalos do mensalão e do petrolão, entre outros, o PT reforçou a péssima imagem da política. Nesse processo, a mensagem que se difundiu com a Lava Jato – de que a política estaria irremediavelmente podre – também contribuiu para consolidar uma percepção negativa sobre a atividade política.

Tudo isso fez com que ser de fora da política – ou ser assim percebido pela população – se tornasse poderoso ativo eleitoral. Por exemplo, na eleição municipal de 2016, quando foi eleito no primeiro turno, João Doria valeu-se intensamente do atributo de outsider da política. O mesmo fez Jair Bolsonaro, na eleição presidencial de 2018. Ignorando sua longa trajetória parlamentar – era deputado federal desde 1991 –, o então candidato do PSL apresentou-se como o militar que vinha salvar a política.

Pouco resta agora das promessas da campanha. Ao longo do governo, Jair Bolsonaro assumiu uma feição mais alinhada com sua trajetória política: a do populista que só pensa em eleições. No entanto, a despeito dessa nova postura, continua havendo, no governo Bolsonaro e em seu entorno, uma retórica de distanciamento da política, tratada sempre de forma pejorativa. Tal abordagem é especialmente presente nas falas do ministro da Economia, Paulo Guedes.

Recentemente, ao falar da necessidade de cortar gastos e das resistências contrárias ao ajuste fiscal, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, corroborou esse enquadramento da política. “Eu entendo a dificuldade

(de cortar gastos) e entendo que o mundo político gera suas limitações nesse sentido”, disse Campos Neto, no 9.º Fórum Jurídico de Lisboa.

Nesse modo de se referir ao “mundo político”, que vai além do entorno bolsonarista, destacam-se três pontos. Em primeiro, está a ideia de alheamento. A política seria formada pelos outros, por terceiros. Quem se refere ao “mundo político” coloca-se habitualmente fora dele, fora desse mundo supostamente sujo.

O caráter antiético é a segunda característica. O mundo político seria constitutivamente ruim: imediatista, irresponsável e indiferente ao interesse público. Nada originário desse mundo seria benéfico para a sociedade. Por isso, todos os cidadãos de bem, honestos e trabalhadores, deveriam estar, em alguma medida, em confronto com o mundo político.

Por último, mas não menos importante, está a ideia da normalização. Há uma aceitação de que o mundo político seria assim mesmo, sem remédio e sem futuro. Esse ponto é especialmente visível nas tentativas do governo de atribuir seus fracassos ao “mundo político”. O discurso é sempre o mesmo: tentou-se implementar tal ou qual medida, mas não foi possível em razão das limitações impostas pelos políticos. O tom é de aparente resignação, mas o conteúdo é de estrita irresponsabilidade. A culpa é dos outros – os políticos, que seriam sempre interesseiros.

Vislumbra-se aqui a falácia de retratar a esfera política como um mundo à parte, inexoravelmente corrompido. A suposta maldade do “mundo político” é mera tática para esquivar-se das responsabilidades – e isso vale tanto para o governo como para os cidadãos (que, afinal, são os que elegem os políticos). Um Poder Executivo competente e responsável transforma positivamente esse mundo político supostamente perverso e corrompido. Já um governo fraco e sem proposta, com objetivo exclusivamente eleitoral, corrompe o entorno político. Incentiva as piores práticas e torna viáveis os mais nefastos sonhos dos maus políticos.

Não há um mundo civil e outro político. Essa divisão é aplicação equivocada de uma mentalidade militar (em que de fato há uma esfera militar, diversa da civil). A sociedade faz parte da política, é o âmbito da política. Um governo que fala mal dos políticos e do mundo político está falando mal de si mesmo. Agindo assim, deseja irresponsabilidade, mas consegue o exato oposto: revela ignorância sobre sua identidade e confessa a própria incompetência.

O horror da Serra Pelada fluvial

O Estado de S. Paulo

A invasão de garimpeiros ilegais no Rio Madeira é mais uma catástrofe a expor o descaso do governo ante os desafios socioambientais da Amazônia

Os crimes ambientais seguem proliferando em doses industriais sob as barbas do governo Bolsonaro. Há poucos dias, contra todos os esforços de ocultamento do Planalto, veio à tona a escalada do desmatamento na Amazônia no último ano: foi o maior volume desde 2006 e a maior aceleração desde os anos 90. Agora, o mundo assistiu estarrecido à invasão em massa de garimpeiros no Rio Madeira.

A pouco mais de 100 km de Manaus, uma frota com centenas de balsas e dragas ficou vários dias atracada no município de Autazes. Em plena luz do dia, abastecidas pela sede do ouro, elas sugam o barro e tudo o mais que encontram no leito do rio, destruindo o alimento dos peixes, comprometendo a qualidade da água e gerando assoreamento. Além dos danos ambientais, o mercúrio despejado na água traz riscos à saúde das populações ribeirinhas. Há poucos dias, em Roraima, duas crianças ianomâmis foram sugadas por uma draga. Seus corpos foram cuspidos no rio e levados pela correnteza.

A garimpagem clandestina costuma ser acompanhada de ilegalidades como mão de obra escrava, contrabando e prostituição. O Rio Madeira é uma rota dos narcotraficantes, e é grande a probabilidade de que estejam envolvidos na operação.

Segundo a Universidade Federal de Minas Gerais, das 174 toneladas de ouro comercializadas no Brasil entre 2019 e 2020, 49 saíram de áreas com evidências de irregularidades, e a exploração do ouro ilegal pode ter causado um prejuízo socioambiental de R$ 31,4 bilhões.

A lavra clandestina nos afluentes do Amazonas é conhecida há décadas pelo poder público. O que chocou na atual operação foi o contraste entre a sua escala e a inação do governo. Desde setembro, dezenas de barcas atracaram no município de Humaitá sem que fossem importunadas. Há 15 dias, o rumor de que se teria achado ouro em Autazes desencadeou o deslocamento massivo.

O governo do Amazonas lavou as mãos, sob o pretexto de que a área é de competência dos órgãos federais. Com efeito, a regulamentação da exploração cabe à Agência Nacional de Mineração; o licenciamento, ao Ibama; as autuações, à Polícia Federal; e a tutela dos rios, à Marinha. Mas foi preciso que as imagens das favelas flutuantes explodissem na imprensa para que o Ministério Público cobrasse desses órgãos uma mobilização emergencial. Os garimpeiros ameaçavam resistir, prenunciando um confronto, mas aparentemente decidiram se dispersar ante a iminência de uma grande ação policial.

As máfias por trás dos garimpeiros demonstram ter recursos em abundância para financiar incursões predatórias nos rios e florestas da Amazônia. Mas os garimpeiros reclamam da falta de proteção política. Vê-se que estão mal informados. Em Autazes, o vereador Bandeira Serrão, do Partido Verde (nada menos!), contemporizou a invasão, em razão de supostos benefícios à economia local. Injustificável, mas compreensível. O que é absolutamente indesculpável é a conivência do chefe do Executivo federal. A liberação indiscriminada do garimpo está na agenda de Jair Bolsonaro desde a campanha à Presidência. Em maio, na mesma semana em que tribos ianomâmis foram atacadas a tiros por garimpeiros, Bolsonaro disse que “não é justo” criminalizar o garimpo. Mas o presidente nada fez para promover alternativas legais e sustentáveis aos garimpeiros.

A crise ilustra um drama social. Boa parte dos garimpeiros em Autazes é de miseráveis em busca de sobrevivência. Eles poderiam buscar licenças para realizar o garimpo com práticas não predatórias em áreas autorizadas. Mas não são estimulados a isso por programas de governo, porque isso prejudicaria o tráfico de licenças fraudulentas por políticos e burocratas corruptos e os interesses de contrabandistas e narcotraficantes no mercado ilegal do ouro.

Sem prejuízo da repressão imediata e implacável ao garimpo ilegal, é preciso uma ampla e enérgica mobilização do poder público e da sociedade civil para prover ferramentas de desenvolvimento sustentável aos povos amazônicos. Só arrancando pela raiz as condições sociais que levam à clandestinidade será possível quebrar a economia da destruição ambiental.

Empresas respiram

Folha de S. Paulo

Balanços mostram bons dados, mas inconsistência da política econômica é ameaça

Apesar da instabilidade crescente na economia, as empresas brasileiras de capital aberto conseguiram apresentar bom desempenho nos últimos meses. A persistência da inflação e o aumento dos juros que derivam da falta de rumo da política econômica, porém, já apontam para riscos em 2022.

Como vem ocorrendo na maior parte do mundo, os estímulos governamentais e o choque favorável na demanda por itens de consumo contribuíram para o aumento das vendas e dos lucros, uma vez passado o pior momento da Covid-19.

É o que se observa também no Brasil, mesmo em meio às intempéries locais. Os dados de 298 empresas coletados pelo jornal Valor Econômico mostram alta de 33% da receita liquida no terceiro trimestre, em relação ao mesmo período do ano passado.

Como os custos se elevaram menos, a margem operacional subiu 3,2 pontos percentuais, para 16%.

O desempenho também se reflete na arrecadação de impostos, que cresceu 4,9% em outubro (já descontada a inflação) ante o mesmo mês de 2020. Na comparação com outubro de 2019, que não leva em conta a base deprimida durante a pandemia, o incremento se mostra ainda maior, de 15%.

O principal fator para esse crescimento é o salto na coleta do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

O risco adiante é que a esperada desaceleração das vendas se combine com persistentes pressões de custos. Depois de evidenciado que o governo patrocinaria o estouro do teto de gastos federais inscrito na Constituição, dispararam as expectativas de inflação e os juros de mercado, que devem novamente superar 10% nos próximos meses.

As projeções mais consensuais para a expansão do Produto Interno Bruto em 2022 caíram de 2% para 0,7% em poucas semanas.

Será preciso reverter essa dinâmica nefasta, mas pouco ou nada se espera de construtivo da gestão econômica da atual gestão.

A boa notícia é que os ajustes patrimoniais que eram necessários para corrigir os excessos de endividamento e os investimentos mal feitos antes da recessão de 2015 já foram completados. As maiores empresas, notadamente a Petrobras, passaram anos ajustando seus balanços e recuperando a disciplina financeira.

Se durante esse processo de ajuste houve baixo investimento e letargia na atividade, ao menos a situação atual se afigura bem melhor. A rentabilidade das empresas, ao menos as de capital aberto, é alta e não constitui impeditivo para a retomada do crescimento.

Isso, claro, desde que haja sinais concretos de uma política econômica consistente —algo que dependerá da campanha eleitoral.

Questão mal resolvida

Folha de S. Paulo

Dúvidas sobre o Enem resultam de intromissão de Bolsonaro e leniência do Inep

Contaminado por picuinhas ideológicas de Jair Bolsonaro, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) corre o risco de fracassar, mais adiante, na tarefa de separar alunos mais e menos proficientes.

Até aqui, só 2% das questões utilizadas ao longo de uma década se revelaram ineficientes, ou seja, incapazes de discriminar precisamente o desempenho de estudantes. Assim constatou análise da Folha com 1.928 perguntas formuladas de 2009 a 2019 em exames aplicados a 69 milhões de participantes.

O Enem se funda na metodologia batizada de Teoria da Resposta ao Item (TRI). Em termos simples, utilizam-se questões padronizadas segundo o grau de dificuldade aferido em pré-testes, o que pressupõe um grande banco de itens que apresentem desafios comparáveis, para garantir a confiabilidade estatística da avaliação.

Não é pouca responsabilidade, pois se trata de prova que representa para milhões de jovens a chance de cursar o ensino universitário em instituições públicas e gratuitas. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), porém, tem dado demonstrações seguidas de descaso.

Desde fevereiro, pelo menos, técnicos da instituição vinham alertando para a escassez crescente de questões pré-testadas no banco. A produção de novas perguntas foi interrompida em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro.

Não bastasse a incúria, causa repulsa saber que ela se dá por motivo fútil: a mera implicância —pois não se trata de questionamento baseado em critério técnico— do presidente com temas indigestos para sua pauta, como ditadura militar, diferenças de gênero, conceito de minorias, racismo, população carcerária e terras indígenas.

Bolsonaro chegou a demandar que se tratasse o golpe de 1964 como "revolução" e que a prova tivesse "a cara do governo". Para ele, há que banir questões com "doutrinação", supostamente inadequadas para medir conhecimento de candidatos; outra reportagem deste jornal, porém, verificou que os itens em sua mira foram, sim, eficientes para avaliar competências.

Como resultado, há três edições o Enem não menciona a ditadura militar. Enunciados sobre Mafalda, Chico Buarque e Madonna já foram censurados. A escassez de questões resultante da mescla de obscurantismo com inépcia, contudo, barra ela mesma a inclinação subserviente do Inep perante a Presidência da República.

 

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