terça-feira, 2 de novembro de 2021

Ruy Altenfelder* - A Constituição Cidadã

O Estado de S. Paulo

O princípio da ‘moralidade’, que a Lei Maior determina que a administração pública tem de obedecer, tem como corolário o comportamento ético

No dia 5 de outubro de 1988, tive o privilégio de ser convidado e de assistir, no Congresso Nacional, à sessão de promulgação da atual Constituição da República Federativa do Brasil.

O saudoso dr. Ulysses Guimarães, ao levantar com as duas mãos acima de sua cabeça o novo texto constitucional, com voz forte e emocionada declarou: “Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra”.

Trinta e três anos depois, a “Constituição Cidadã” já sofreu mais de uma centena de emendas. Mas segue viva, defensora da soberania, da independência e da liberdade. Somos guardiões da Constituição. A maior crítica aos legisladores foi não ter revisto a Constituição no quinto ano de sua promulgação, como determinava a Carta Constitucional de 1988. Nenhuma providência foi tomada pelos legisladores em 1993, o que foi lamentável.

No capítulo dedicado à Administração Pública, a nossa Lei Maior determina que a administração pública obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade (artigo 37).

No livro Liberdade, em homenagem aos 50 anos da Advocacia Mariz de Oliveira, Andrea Matarazzo, um de seus colaboradores, no artigo denominado Liberdade com responsabilidade para recuperar a democracia, destaca: “A administração pública tem controles importantes, mas seus excessos não podem ser ignorados. Essa mistura de onipotência fiscalizatória generalizada tira a liberdade do Executivo de administrar de acordo com seu programa de governo. A democracia só vai superar as desconfianças atuais se for adotada a prática da liberdade com responsabilidade. Cada órgão, agente público ou Poder deve exercer suas funções, dentro do previsto da lei, com liberdade. E ser cobrado por suas responsabilidades. Só assim todos cumprirão plenamente seu papel. E a democracia voltará a ser respeitada e admirada”.

O princípio da moralidade tem como corolário o comportamento ético. Ser ético é ser justo, obedecer a legislação. O saudoso professor Miguel Reale, em seu livro Variações, a propósito do conceito de moralidade nos ensina que “não se compreende a moralidade sem a situar com clareza em correlação com a ética e a moral. A bem ver, a ética, a moral e a moralidade são expressões distintas do que genericamente se denomina mundo ético”. E continua: “Penso que há uma hierarquia entre esses três conceitos, podendo-se dizer que à ética cumpre determinar os valores supremos do comportamento humano, ou seja, os fins que mais dignificam a nossa existência, enquanto que compete à moral extrair dos princípios éticos as regras que devem presidir a conduta de tal modo que cada ser humano possa se realizar, segundo sua capacidade e vocação, em harmonia com igual objetivo dos demais em uma comunidade equânime e justa” (página 114).

O comportamento ético e moral do administrador público é avaliado por um Conselho de Ética e pelo Código de Conduta da Alta Administração Federal e normas complementares com a finalidade de divulgar as normas e posições adotadas pela Comissão de Ética Pública.

A função de uma Comissão de Ética Pública vai além da obrigação de alertar o Poder Executivo de eventuais desvios de seus componentes. Deve sempre lutar para que a postura ética impere sobre toda a Administração.

A Comissão de Ética Pública é órgão do Estado, e não do governo.

Nomeado pelo presidente Michel Temer em outubro de 2018, concluo o mandato de três anos, com a satisfação de ter contribuído com a Nação, espontaneamente e gratuitamente, analisando procedimentos de conflitos de interesses e denúncias contra membros da Alta Administração Federal.

Conflitos de interesse e denúncias foram distribuídos a mim e aos demais seis membros da comissão. Proferi, neste período, 540 votos, abrangendo denúncias contra ministros de Estado e ocupantes do primeiro escalão. Nos conflitos de interesse, ao reconhecer a existência destes, o conselho, acolhendo meus votos, proibiu o interessado de assumir postos que colidiam com os cargos já ocupados. Em não havendo colidência, liberou o interessado para assumir postos no setor por ele indicado. Nas denúncias por falta de comportamento ético, após as explicações dos denunciados, recomendei abertura de processo ético ou absolvição, o que foi avaliado e deliberado pelos demais conselheiros.

Concluo o meu mandato de três anos com a certeza de ter contribuído com o nosso Brasil.

Os conflitos unem os seres humanos e, como nos ensina o filósofo Soren Kierkegaard, “a adversidade, além de unir os homens, produz beleza e harmonia nos relacionamentos da vida, assim como o frio do inverno produz os cristais de gelo nas vidraças, que desaparecem com o calor humano”.

Acima de tudo, não percamos o desejo de lutar pelos nossos ideais e prosseguir.

*Advogado, é presidente da academia paulista de letras jurídicas (APLJ) e do Conselho Superior de Estudos Avançados (CONSEA-FIESP)

 

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