sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Vera Magalhães - Cristiana Lôbo

O Globo

Peço licença aos leitores deste espaço para fazer uma pausa nas análises da política e da economia para render uma homenagem. Nós, jornalistas, somos bichos por vezes arrogantes, sabe-tudo demais, para reverenciar aqueles e aquelas que vieram antes de nós abrindo portas, roçando o caminho, ensinando o riscado. E ontem nós perdemos, o Brasil perdeu, uma dessas jornalistas que foram guias de muitas gerações, inclusive da minha.

Cheguei a Brasília aos 26 anos, já com quatro anos de cobertura de política na bagagem, mas crua de tudo. Já naquela época, 1999, os grandes nomes da análise política eram de mulheres: Dora Kramer, Eliane Cantanhêde, Tereza Cruvinel, Helena Chagas e ela, Cristiana Lôbo.

Eu olhava para aquelas grandes damas do jornalismo político, cujos nomes e fotos encimavam as principais colunas dos jornais, e as achava inalcançáveis.

E, das muitas coisas que trabalhar em Brasília ensina, uma é que lá está todo mundo ralando no dia a dia do Congresso, nos quebra-queixos no Planalto, fazendo portaria em ministérios, levando chá de cadeira em gabinetes.

Em todos esses espaços, Cristiana sobressaía com seu humor irreverente, sua crítica ácida aos poderosos, sua análise arguta e rápida e, em igual medida, sua generosidade genuína com os colegas mais jovens, recém-chegados ou que ela mal conhecia.

Essa não é uma qualidade abundante no jornalismo, ou ao menos não era nas redações eminentemente masculinas, competitivas e dominadas pela cultura do grito como exercício de poder de onde eu vinha, em São Paulo.

O aprendizado que tive com a Cris e com essas outras mulheres — sobretudo com uma delas, Renata Lo Prete, minha chefe, mentora e depois, hoje e para sempre irmã — foi a tradução na prática de uma palavra cujo significado demorei a absorver: sororidade.

Cristiana, ao ser precursora da análise política na televisão já depois dos 40 anos, quebrou muitas barreiras ao mesmo tempo. A primeira, de gênero. Se, no jornalismo impresso, as mulheres já davam a letra, como eu disse, na TV os espaços ainda eram fechados à opinião feminina, principalmente num tema espinhoso como a política.

Outra barreira foi a do etarismo. Hoje não é incomum que jornalistas que fizeram sua carreira escrevendo sejam convocadas para a frente da tela depois dos 40, mas isso foi revolucionário nos anos 1990, e todas nós, que chegamos depois, devemos muito a ela, Míriam Leitão e outras pioneiras.

A aridez, a pressa e o ódio reinantes no ambiente virtual, onde estrategicamente a imprensa foi escolhida pelos políticos, e mais acentuadamente pelo bolsonarismo, como inimiga pública número um, impedem que mostremos ao leitor, espectador e ouvinte que somos de carne e osso.

Assim como em qualquer ramo da atividade humana, também o jornalismo é feito a partir do trabalho de geração após geração, cada uma com seus desafios, suas características e, sobretudo, seu legado para as próximas.

Se somos muito pródigos em apontar tendências na política, na economia e nas artes, em cobrir fatos que se tornarão históricos dali a alguns anos e em destacar profissionais de relevo em múltiplas atividades, ainda somos muito tímidos, por vezes pouco generosos, em contar a história dos homens e mulheres que constroem o edifício da imprensa brasileira.

A morte prematura da Cristiana deixou muito clara a importância que ela teve nessa construção. Perdemos uma referência e uma incentivadora do nosso trabalho.

Homenagear quem veio antes de nós é um reconhecimento de que não seríamos quem somos se não tivéssemos tido pessoas a nos pegar pela mão. Essa é uma lição que procuro pôr em prática dia a dia no meu trabalho. E esta coluna é um agradecimento a ela, que fará tanta falta, e a todos esses homens e mulheres que me estenderam a mão.

 

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