quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Cristiano Romero - Nem “black friday” nem “black fraude”

Valor Econômico

No Brasil, não existe diferença entre preço à vista e a prazo

Tudo pela metade do dobro. Foi assim que batizamos a versão nacional da “black friday”. Na Ilha de Vera Cruz, a solução é rir de nossa compulsão ao fracasso, da consciência de que está tudo errado, porquanto, é assim mesmo. Mas, afinal, por que nos Estados Unidos os descontos de preços são reais e aqui, não?

A “black friday” foi idealizada por lojistas americanos para desovar estoques antes do início de dezembro, mês de compras do Natal. O evento está diretamente associado ao Dia de Ação de Graças (“thanksgiving”, no inglês falado nos EUA e no Canadá), feriado que o Congresso americano fixou na quarta quinta-feira de novembro. A “black friday” é no dia seguinte.

No Brasil, o evento existe desde 2010. Em tese, o objetivo é o mesmo - uma oportunidade para o comércio oferecer descontos e, assim, vender tudo o que houver nas prateleiras e nos estoques com vistas às vendas do Natal, quando tradicionalmente se dá o ápice de consumo nos países onde a população “acredita” em Papai Noel.

A “black friday” é ação de marketing tanto nos EUA quanto aqui. Mas, as retas paralelas dos dois eventos que encontrar-se-iam no infinito tomam rumo distinto já na largada. Brasileiros, temos muitas virtudes, mas um defeito é notório: adoramos copiar de maneira ridícula e servil hábitos de nações que, historicamente, nos dominam política e economicamente. De tão distantes de nossa cultura, as mimeses soam falsas como a nota de R$ 3. Um exemplo: a comemoração do “halloween” (o dia das bruxas).

Pois, a “black friday” americana está intimamente ligada ao “thanksgiving”. Este simboliza o agradecimento coletivo da população por tudo de bom que lhe sucedeu no ano que passou. Antigamente, gratificava-se a boa colheita do ano. A comemoração é assim: na quarta quinta-feira de novembro, as famílias se reúnem e se refastelam em torno da mesa, cujo prato principal é o peru.

No dia seguinte, multidões correm a shoppings porque o dia é de pechincha. Descontos chegam a 90% - se as prateleiras não esvaziarem, quem irá às compras no Natal? Vê-se que o marketing da “black friday” é amparado em algo “real”, o fim de um ciclo, tanto para lojistas quanto para os consumidores.

As empresas precisam livrar-se de produtos encalhados nas gôndolas, mesmo que às custas da redução da margem de lucro. Para o consumidor, o momento é especial porque, apenas na “black friday”, a maioria consegue comprar alguns bens. Logo, a ideia de fim de ciclo e recomeço casa-se à perfeição no imaginário da população. No Natal, a natureza das compras é outra - o momento é de presentear filhos, familiares, amigos.

Na Ilha de Vera Cruz, o marketing da “black friday” é desprovido do significado cultural existente nos EUA e no Canadá. Não há, nem teria como haver porque não se trata de hábito originado entre nós, a ideia de fim de ciclo nem mesmo de recomeço - neste momento, pensando como um consumidor americano, é preciso estar, digamos, melhor equipado; nos tempos atuais, mais atualizado tecnologicamente.

Aqui, ficamos só com o marketing, vazio, de algo tão falso quanto a tese de que vivemos numa democracia racial. Nada contra o marketing, mas é preciso entender que este não deveria ter o direito de projetar como real algo inexistente. No Brasil, marqueteiro transforma corrupto em político honesto, oligarca em caçador de marajás, populista em estadista, ditador em pai dos pobres. Na campanha de 2014, um deles fez peça dizendo que, se o Banco Central se tornasse independente, a comida desapareceria da mesa do pobre.

Pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo & Mercado de Consumo (Ibevar) constatou que, antes da pandemia, a confiança dos consumidores na “black friday” vinha crescendo. Em 2020, porém, em outro levantamento, o instituto descobriu que, um mês antes da “black friday”, os preços de milhares de produtos subiram até 70%. Nos primeiros anos da “promoção”, o patamar de reajuste girava em torno de 80%. O estudo analisou 6.500 produtos em 30 categorias do varejo.

Então, podemos concluir que, no Brasil, os empresários são tão “desonestos” quanto os banqueiros, aqueles malvados que, à sorreita, decidem a taxa de juros fixada pelo Banco Central e, agora, independente, vejam só, este vai tirar a comida da mesa do trabalhador? Não! Olhe para Brasília antes de julgar o caráter da maioria dos empreendedores que, em vez de aplicarem seu capital em títulos do governo, montam um negócio, contratam pessoal, tornam-se contribuintes do inferno chamado sistema tributário nacional - cuja missão precípua é financiar os gastos do Estado que transfere mais renda aos ricos num país de maioria pobre e miserável - e, portanto, correm riscos.

Empresários e banqueiros são bem maus - porque seu poder de fixar preços e manipular mercados torna-se incomensurável - quando a sociedade, dominada por interesses de poucos, subjuga a maioria. Contribui para que vejamos a “black friday” como “black fraude” o seguinte:

1. Nossa economia é fortemente concentrada. Isso reduz concorrência e busca por eficiência. No setor de bebidas, uma empresa domina quase 80% do mercado de cerveja. No setor bancário, três bancos privados detêm quase 50% do mercado;

2. Baixo grau de abertura do mercado brasileiro ao exterior restringe concorrência, encarece custos de produção internamente e, consequentemente, os preços dos produtos; além disso, eleva custo de capital (ao dificultar importações de máquinas e equipamentos). Tudo isso dificulta a obtenção de ganhos de escala, o que por sua vez limita a possibilidade de queda de preços;

3. O custo de capital é excessivamente alto, provocado pela concentração bancária e pelo desequilíbrio fiscal, que faz o governo dragar poupança doméstica para cobrir despesas correntes e gastos crescentes com juros. Por isso, é escasso e caro o crédito a empresas e famílias;

4. Convivência com inflação alta e juros amazônicos durante décadas criou situação que nem a estabilidade trazida pelo Plano Real resolveu: preços de produtos no Brasil são fortemente indexados à taxa de juros. Compras à vista e a prazo no varejo têm o mesmo valor;

5. Carga tributária alta (quase 35% do PIB) e amparada mais na taxação do consumo do que na renda torna tudo no Brasil, somando-se este aspecto aos mencionados, mais caro do que em qualquer país, planeta, galáxia, buraco negro, enfim, na vastidão do infinito e além.

 

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