quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Daniel Rittner: O que a eleição para o TCU deixou de contar

Valor Econômico

Órgão estaria deixando papel fiscalizador para assumir uma postura mais consultiva em relação ao Executivo

A eleição para a vaga recém-aberta no Tribunal de Contas da União (TCU) ignorou um debate que provoca cada vez mais aflições no governo e na iniciativa privada: por acaso o órgão de controle tem atuado não apenas como “watchdog” (que supervisiona a obediência às regras e à lei), mas assumido excessivamente as funções de “sheepdog” (conselheiro que guia políticas públicas e ações governamentais por meio da expedição de comandos)?

O tribunal já mexeu na taxa de retorno dos leilões de energia, multou diretores da Antaq por considerar que eles não regularam adequadamente a cobrança de uma tarifa por terminais portuários, entrou nos acordos de leniência com empreiteiras da Lava-Jato, travou a liquidação da estatal dos semicondutores (Ceitec), mandou os bancos públicos devolverem R$ 199 bilhões ao Tesouro. Suas decisões - não se discute se certas ou erradas - têm feito surgir uma safra de textos acadêmicos e análises sobre o raio de atuação do TCU.

A dissertação de mestrado do advogado Antônio Bastos, na UERJ, mapeia aproximadamente 200 acórdãos do tribunal para investigar como ele age nas escolhas regulatórias de uma agência específica - no caso, a ANTT (que fiscaliza e regula concessões de transportes terrestres). Seus achados revelam uma atitude intrusiva do TCU, como se fosse um regulador de segunda instância. Ele encontrou quase 600 determinações e mais de 100 recomendações. Em 70% dos casos, sobre a atividade-fim da agência. Ou seja, não se falta pessoal ou se há problemas nos contratos administrativos, mas como ela deve fixar revisões das tarifas de pedágio em concessões rodoviárias ou como fazer a modelagem antes de um leilão.

“A unidade técnica refaz os cálculos feitos em estudos de viabilidade prévios às licitações, verifica se os métodos de regulação são adequados e vai aos detalhes nesses itens. O TCU praticamente refaz o trabalho que caberia à ANTT”, afirmou Bastos em uma live recente da Portugal Ribeiro Advogados, o escritório onde trabalha. “A ANTT continua sendo o regulador, obviamente, mas o TCU se tornou uma instância de redundância ocasional. Como se fosse um supervisor das escolhas feitas pela agência”, acrescentou.

Em três de cada quatro acórdãos, o plenário acata de forma praticamente integral a proposta de encaminhamento da área técnica, sem alterações relevantes. Detalhe: o advogado não identificou um volume significativo de casos em que o TCU tenha discordado da ANTT, mas reconhecido que talvez coubesse à agência decidir sobre determinado aspecto.

O pesquisador Eduardo José Grin, da FGV-SP, escreveu para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) um texto em que aponta o aumento, entre 2005 e 2019, de auditorias operacionais e relatórios de fiscalização cujos objetivos são avaliar, parcial ou totalmente, políticas públicas de diversas áreas. Saúde, educação e inclusão social são os campos de atuação mais forte dos trabalhos.

Não é uma tendência apenas no Brasil, segundo Grin, ver o tribunal de contas propondo ações e definindo metas para as políticas públicas, embora estas sejam uma tarefa primordial de lideranças eleitas e da burocracia estatal. No papel, o TCU é órgão auxiliar do Congresso Nacional e responsável pela fiscalização do Poder Executivo. Na prática, tem dotação orçamentária própria, capacidade de autorregulação (com lei orgânica e regimento interno), um quadro técnico altamente qualificado (cinco vezes e meia mais servidores com título de mestre ou doutor do que no Poder Judiciário), canais diretos de interlocução com agentes políticos, com outras esferas de poder e a sociedade.

Compete ao TCU, segundo a Constituição Federal, vigiar a “legalidade” dos atos tomados pelo Executivo. Ocorre que o conceito de ilegalidade vai sendo alargado por meio de normas e jurisprudência que podem afastar-se do sentido original, alerta Francisco Sérgio Alves, auditor do tribunal, em artigo na revista do Senado em que analisa o “ativismo” do órgão de controle.

Casos de corrupção e má conduta de dirigentes estatais, bem como a avaliação negativa de muitos serviços públicos, favorecem a atuação mais incisiva do TCU. Um efeito paradoxal é que, quanto mais o tribunal ganha relevo, mais se exacerba a desconfiança em órgãos do Executivo. Pode-se reforçar o jogo de obediência formal às regras e ampliar os custos organizacionais para monitorar decisões do tribunal, em vez de gerar uma melhoria efetiva das políticas. E um risco adicional: o “apagão das canetas” - medo dos gestores de assinar alguma medida que lhe venha a custar o CPF no futuro, mesmo se não houver dolo. Para muitos analistas, isso estimula lentidão ou paralisia da máquina pública.

Em um artigo memorável que publicou em 2018, no jornal “O Globo”, o ministro Bruno Dantas complementou. Ele apontou a importância de avaliar políticas públicas que tomam bilhões do Orçamento e, se ineficientes, são mais custosas à sociedade do que uma licitação fraudada. Mas defendeu a “autocontenção” dos auditores, acentuando que o controle de eficiência deveria mirar processos de tomada de decisão e a razoabilidade dos critérios adotados. “A hipertrofia do controle gera a infantilização da gestão pública. Agências reguladoras e gestores públicos em geral têm evitado tomar decisões inovadoras por receio de terem atos questionados.”

Parabéns ao senador Antônio Anastasia (PSD-MG), uma das mentes mais aptas em Brasília para qualificar essa discussão.

 

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