terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Joel Pinheiro da Fonseca - Existe cristofobia no Brasil?

Folha de S. Paulo

Discurso evangélico de vítima ganharia credibilidade com atos para coibir a intolerância à fé alheia

Se protestantes das mais variadas denominações já compõem mais de 30% da população brasileira, é natural e positivo que um membro desse grupo integre o STF (Supremo Tribunal Federal).

Que esse evento seja tão raro mostra que a religiosidade brasileira, assim como tantas outras coisas, tem também um recorte de classe. A comemoração efusiva da primeira-dama —se não tiver significados mais venais—, é uma mostra da importância da representatividade desejada por tantos milhões de brasileiros.

Muitos viram, riram ou se assustaram com Michelle "orando em línguas", prática comum em igrejas pentecostais. Esse tipo de reação alimenta o discurso de parte das lideranças evangélicas de que seus adeptos são uma minoria perseguida no país. Mas será mesmo?

O preconceito e a intolerância religiosos também obedecem a uma divisão de classes. Uma coisa é o que vale no discurso da elite cultural, e outra coisa é o que ocorre no dia a dia da maioria do país.

Entre a elite cultural —composta pela comunicação, jornalismo, academia, artes etc., ou seja, uma minoria letrada, com ensino superior—, há sim um menosprezo pelo mundo evangélico.

Pilhérias, espanto, repulsa ou até medo são algumas das reações que um culto evangélico mais animado pode produzir entre membros da classe, bem como comentários maldosos e um menosprezo intelectual pela pessoa. Isso tudo é real e negativo, podendo causar e perpetuar injustiças.

Mas se saímos desse âmbito mais restrito da elite cultural e vamos para o resto da sociedade, a realidade se inverte: quando falamos de intolerância religiosa no Brasil, o cristão é mais comumente o ator da violência, e suas vítimas são os seguidores de religiões não cristãs, em particular as de matriz africana.

Isso vale já para a intolerância no discurso. Piadas e menosprezo ofendem mesmo, e é parte de viver em sociedade passar a respeitar aquilo que, de início, parecia bizarro.

Pior do que a troça, contudo, é a demonização, justamente o que sofrem candomblecistas, umbandistas e espíritas nos discursos acalorados de muitos pastores.

Para certas versões do fundamentalismo cristão, essas religiões não são apenas equivocadas. Orixás e espíritos não são vistos como fruto da imaginação de quem ainda não conhece a verdadeira religião, e sim como demônios, encarnações do mal que possuem a alma dos desgraçados que neles acreditam.

Assim, o médium, o pajé ou o pai de santo deixam de ser apenas praticantes de uma religião considerada falsa e se tornam verdadeiros servos das forças do inferno. Quem se incomoda com troças ou ridicularização deveria ser o primeiro a se levantar contra esse tipo de discurso —infinitamente mais violento— quando parte de suas próprias hostes.

De um discurso desses para a violência física o caminho é curto. No Oriente Médio, cristãos são uma minoria perseguida. No Brasil, os cristãos são os perseguidores, e adeptos de religiões afro são as principais vítimas dessa perseguição.

Não se queimam igrejas em nosso país; já a destruição de terreiros, a ameaça de morte a pais e mães de santo e o descaso (quando não repressão) das autoridades são cotidianos. Tudo em nome da salvação das almas.

Preconceito, seja de onde vier, é negativo. Não há santos neste mundo, mas é possível ter atitudes mais ou menos coerentes.

O discurso evangélico que se pinta como vítima ganharia mais credibilidade se viesse com atitudes concretas para coibir a intolerância e o desrespeito à fé alheia em seu próprio meio. No Brasil, há menos cristofobia do que ódio cristão.

 

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