quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

José Nêumanne*: Amazônia, Minamata, Chernobyl

O Estado de S. Paulo.

Poluição em garimpo criminoso em rios da bacia do Amazonas pode repetir Minamata, e o governo não está nem aí

Há um mês, 300 balsas ocupadas por garimpeiros invadiram o rio Madeira e ameaçaram publicamente impedir a ordem da Polícia Federal (PF) de não garimparem em territórios reconhecidos como de posse e usufruto de tribos indígenas. A imagem nos jornais e emissoras de televisão daquele momento causaram forte impacto no Brasil, pela audácia do desafio à lei e à ordem e pelo abusado desprezo ao poder de fogo da PF, temido por traficantes de drogas, da política e da gestão pública. A barreira, contudo, se desfez e logo caiu no esquecimento um fato alarmante e secreto, como o orçamento clandestino do bolsolão. A morte insidiosa desliza no lugar das balsas na composição química de um metal tão precioso como o ouro, que os balseiros pretendem “bamburrar”, como se dizia nos tempos de Serra Pelada, sob o domínio do Major Curió. Ao contrário do novo coronavírus, que parou o Brasil e o mundo, o mercúrio não atua acobertado pela surpresa.

Seus efeitos contra a saúde e a vida dos seres vivos começaram a ser percebidos em 1930, quando a empresa Chisso instalou na cidade costeira de Minamata, no Japão, uma fábrica de insumos para matéria plástica aceltadeído e PVC. Em 1956, uma criança de cinco anos foi diagnosticada como portadora de uma doença contagiosa e desconhecida, dando início a pesquisas científicas que localizaram, vários anos e milhares de vítimas depois, o mercúrio, que nada tem de cromo e tudo tem a ver com coma. Seus sintomas, que demoram mais de dez anos até serem sentidos, passam da fadiga a dores de cabeça, comuns em gripes e covid 19, a formigamento em braços e pernas, que podem se confundir com preliminares de enfarte, e aparecem logo depois de se manifestarem em voos descontrolados de aves, além de disfunção muscular, loucura e morte entre os humanos, normalmente de famílias de pescadores e consumidores de pescados. Há mais de 60 anos, o mundo reconhece e evita o vilão mercúrio. O Brasil, não. Nestes tristes trópicos, como o francês Lévi Strauss descreveu após uma passagem pela Universidade de São Paulo, a Operação Uiara da PF, que, aliando-se ao mercúrio do coma, os garimpeiros ilícitos consideram inimiga de sua cobiça aurífera, achou nas águas traiçoeiras do Rio Madeira de 16 a 95 vezes níveis de mercúrio acima dos considerados normais pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Nos fios de cabelos coletados dos ribeirinhos foram encontradas níveis três vezes acima do máximo tolerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Do mineral diluído na água, usado para separar ouro de outros segmentos na garimpagem, foi encontrado em duas amostras de segmentos colhidos pela perícia com valores máximos identificados de 47 a 120 vezes maiores.

Segundo Edilson Martins, primeiro jornalista a assinar uma coluna na imprensa sobre meio ambiente, no Pasquim, à época da ditadura, disse na série Dois dedos de Prosa, no blog do Nêumanne no Portal do Estadão, “na Amazônia ficam 97% dos garimpos do Brasil. Pelo menos 17% de forma ilegal. A corrida ao ouro começou nos anos 1970, com o projeto Radam, que fez o mapeamento do solo e subsolo de toda a Amazônia, via radar, em aviões, no governo Médici. Foi revelado que ela é uma imensa reserva mineral. Em 1986, a Aeronáutica abriu uma pista de pouso na região dos Yanomami. No mesmo instante, criaram-se 50 pontos de garimpo. Antes do ouro, houve a corrida pelos diamantes no entorno do Monte Roraima. Hoje, em todos os rios onde há garimpo - Madeira, Tapajós, Xingu e bacia do território dos Yanomami - há mercúrio.”

Quando se fala em garimpo ilegal, a primeira tentação é inculpar o atual desgoverno. O facilitário nem sempre ajuda a enxergar a realidade inteira. Em 1980, o autor deste texto sobrevoou a floresta úmida de Serra Pelada a Marabá sem enxergar uma copa de árvore. Só fumaça. Ali já era evidente o que a ignorância de Bolsonaro não permite enxergar: a “floresta da chuva”, como dizem no Primeiro Mundo anglo-saxônico, queima, sim. Mas o fogo que produzia aquela nuvem de fumaça não queimava mata virgem, e sim preciosos e produtivos castanhais, garantiu Martins.

Naquele decênio, Chernobyl, na Ucrânia, incendiou cinco milhões de hectares de florestas. Aqui, o desmate, as queimadas e o mercúrio nas águas resultam de atentados à lei penal. Trata-se de alçada da polícia judiciária que conduziu a Operação Uiara. Para evitar a confirmação de que a mina mata mesmo e a destruição de 5 milhões de hectares, como aconteceu na Ucrânia, urge acionar a polícia. A hora de agir é anterior à eleição de 2022. A Indesejada das gentes, na forma de minerais preciosos, não poupará só a maior floresta tropical do mundo, mas o país que a consome de forma genocida. A hora é já. A mina mata japoneses, eslavos e as tribos indígenas, que a democracia dos civilizados de araque do Brasil trata como escórias da barbárie. A mortandade dos peixes e ribeirinhos do Madeira não pode assassinar o resto de espírito público, se é que ainda existe e resiste, na velha Pindorama de Diogo Velho e Pedro Cabral.

*Jornalista, poeta e escritor

 

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