O Estado de S. Paulo
Não subsistem otimismos fáceis nem se pode
contar com horizontes finais que resistam às ‘duras réplicas da História’
Complexo e contraditório como é, todo tempo
histórico convida a conceitos-síntese que, mesmo parciais e sumários, algum
fragmento de verdade sinalizam e, de um modo ou de outro, respondem a uma
necessidade imediata do espírito.
Há duas gerações, com o “socialismo
realmente existente” assentado numa parte extensa do mundo e os processos de
descolonização, poucos discordariam de Jean-Paul Sartre, para quem o marxismo –
designado assim mesmo, sem nuances – seria o horizonte insuperável da época. As
revoluções se seguiriam como num jogo de dominó e as gestas do romantismo
revolucionário não se deteriam com a morte de Guevara, antes se multiplicariam
em mil Vietnãs. A “metrópole” capitalista estaria sob o assalto da classe
operária ou, então, cercada pelo “campo” global.
Algumas décadas depois, o espírito do tempo se inverteria. As reformas de Gorbachev chegaram tarde demais e as palavras que ele trouxera, como a glasnost ea perestroika, logo perderam o viço. Talvez tenham facilitado a implosão relativamente pacífica do anquilosado país dos sovietes – o que não foi pouco, dado o arsenal atômico ali acumulado –, mas o fato é que desapareceram sem deixar rastro, tal como o marxismo genérico antes anunciado pelo filósofo existencialista.
O horizonte, então, se abriu para a
globalização capitalista – termo sintético para a unificação contraditória do
gênero humano, levada a cabo por um hegemon incontrastado. O “fim da história”
parecia a nova senha explicativa. Uma versão fraca da liberal-democracia
recobriria os mecanismos implacáveis de produção de mercadorias finalmente
dispostos em escala universal, acima e além de fronteiras nacionais. O mundo
estava pronto, a vida era um fato consumado.
A bem da verdade, milhões foram retirados
da penúria extrema, ainda que a desigualdade tenha paradoxalmente se acentuado.
A percepção de que tudo se relaciona e a noção de que povos e nações dependem
uns dos outros se tornaram realidades palpáveis até para o indivíduo comum. Por
sua vez, do movimento de “recuo das barreiras naturais”, efeito da ampliação do
domínio humano sobre toda a Terra, passaram a vir sinais cada vez mais
inquietantes. É que há óbvios limites intransponíveis para tal recuo e, como se
pode constatar com evidência contundente, riscos fatais sempre estão à espreita
em cada lance de apropriação da natureza, por mais que obedeça a sofisticados
cálculos formais.
Não subsistem otimismos fáceis nem se pode
contar com horizontes finais que resistam às “duras réplicas da História”.
Aquele hegemon incontrastado não ocuparia sozinho por muito tempo o centro do
palco. Refiro-me, evidentemente, à ascensão econômica da China, um dos mais espetaculares
acontecimentos na escala dos séculos, a ponto de incendiar a imaginação dos
modeladores de cenários nas ciências sociais. Tucídides e a Guerra do
Peloponeso voltaram a ser invocados para explicar novamente a possibilidade do
quase inevitável conflito entre a potência que irrompe impetuosamente e a que
vê diminuir seu poder relativo.
Um choque geopolítico com reverberações
clássicas, só que agora dotado de dimensões catastróficas? Uma segunda guerra
fria, com suas zonas inevitáveis de confronto direto ou por interpostas nações?
Não faltará quem – na trilha aberta por um dirigente perigoso, como Donald
Trump – planeje e queira a reedição do contraste entre sistemas frontalmente
contrapostos. Uma vez mais, agora num contexto em que ninguém se salva sozinho,
“capitalismo” e “comunismo” (chinês) promoveriam a mobilização total de cada um
dos seus campos, armados até os dentes, minados reciprocamente por
“quintas-colunas” e assolados por teorias conspiratórias. Haverá quadro mais
propício para o suicídio coletivo?
Seguindo esta trilha, extravia-se o
elemento de progresso na convocação feita pelo presidente Joe Biden em prol da
democracia – esta que nos parece a palavra por excelência do nosso tempo. Por
certo, há diferenças essenciais entre sociedades abertas e fechadas, entre dois
ideais reguladores, um liberal e cosmopolita, outro autoritário e nacionalista.
Mas a disputa só pode se dar no campo da política ou, se se quiser, da disputa
hegemônica no sentido nobre – a saber, como capacidade de solução de avassaladores
problemas comuns, como a atual pandemia nos ensina todos os dias.
É preciso, ainda, falar de um fator
perturbador: no caso do Ocidente político, a que pertencemos por origem e
vocação, tem se espalhado a feroz corrupção populista da democracia. Tal
espalhamento chamanos a um autoexame a propósito do que Norberto Bobbio
costumava denominar “promessas não cumpridas” da democracia. De resto,
incumprimento não só no plano institucional, como no da própria vida cotidiana,
o que atinge em cheio l’uomo qualunque e o torna presa das formas modernas e
pós-modernas de demagogia.
Como sempre, a tentação autoritária nasce e se nutre no interior das nossas sociedades, antes de se encarnar num adversário avesso a compromissos e inteiramente “outro”. Teremos a coragem de nos examinar neste espelho impiedoso?
*Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil
Excelente esse artigo de Luiz Sérgio, especialmente pela visão de conjunto que apresenta. Mas gostaria de apresentar algumas discordâncias ou modo de pensar diferente do que ele defende. É bem verdade que Sartre acertou na mosca quando disse que o marxismo era a filosofia insuperável do tempo dele. Como os dois gigantes (EUA e URSS) não podiam se enfrentar diretamente, a história do mundo era decidida na periferia: partes da Ásia, África e até América Latina. Acontece que o mundo comunista não evoluiu no sentido da democracia. E o próprio povo desses países estava de saco cheio de foguetes e bombas. Estava mais interessado em liquidificadores, secadores de cabelos, comida fasf food, moda parisiense, etc. Quando Gorbachev apareceu com suas propostas de glasnost e perestroika de difícil compreensão, o bêbado Yeltzin propunha um mergulho de cabeça direto no capitalismo. Foi o que o povo soviético preferiu. E a Rússia só não virou uma espécie de Brasil (um puteiro onde se ganha mais dinheiro) graças a Vladimir Putin, um ex-KGB diga-se de passagem. Por que o comunismo faliu? Porque não entendeu a questão democrática. E o capitalismo resolve a questão democrática? Claro que não. O capitalismo hoje vive do que Luiz Sérgio chama de "corrupção populista da democracia". Eu acrescentaria "guerra híbrida". A democracia para o capitalismo sempre foi um cartão de visitas. Quem enxergou um "valor universal" na democracia foi um pensador comunista. Quanto ao "autoritarismo nacionalista" chinês, está botando pra quebrar e deixando os americanos para trás. a China em pouco mais de dez anos retirou 500 milhões de chineses da situação de miséria. Costumo dizer que a China é aquela esfinge a nos dizer "Decifra-me ou te devoro". O único problema chinês é o democrático. No dia que que os chineses resolverem esse problema o mandarim será o que o esperanto não conseguiu ser: a segunda língua de todo o mundo. A China é um grande poluidor do planeta, mas os "planos quinquenais" do governo já têm data marcada para o fim da poluição. O "autoritarismo" chinês tem se revelado mais cosmopolita que o "liberalismo" capitalista. É só pensarmos na nova Rota da Seda, nos bancos de investimentos que estão sendo criados pelo BRICS e países asiáticos. O que continua prejudicando o mundo é a roubalheira capitalista de sempre: aqueles que querem vender a madeira da Amazônia, roubar o ouro dos índios, destruir biomas com plantações de cana de açúcar e soja. Esse é o ânimus de sempre do capitalismo. Com o fim do comunismo restaram as "formas modernas da demagogia". Na Alemanha o movimento "volkisch" precedeu a ascensão do nazismo. Volkisch no mundo de hoje se chama bolsonarismo/trumpismo. O fim do comunismo não beneficiou o capitalismo que não tem solução para os problemas da raça humana e nem da natureza. Ficaram abertas as portas para o proletariado tomar a bandeira da democracia das mãos sujas da burguesia. Mas isso não aconteceu ainda por falta de inteligência de seus intelectuais. Enquanto isso o capitalismo avança com base na corrupção populista da democracia, a guerra híbrida, as fake news, Bolsonaro e Trump.
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