quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Maria Hermínia Tavares - Lula entre dois mundos

Folha de S. Paulo

O antiamericanismo explica a indesculpável conivência com ditaduras de esquerda

Aplaudido pelas principais lideranças da social-democracia europeia e recebido em Paris como chefe de Estado pelo presidente centrista Emmanuel Macron, Lula definiu em sua recente turnê uma agenda internacional para o país léguas à frente de seu próprio partido e de quaisquer que venham a ser seus adversários em 2022.

No Parlamento Europeu, foi irretocável ao associar o imperativo do combate à crise do clima à redução da pobreza e das desigualdades no mundo. Entrelaçando esses temas —que requerem renovada cooperação multilateral e compromisso com a justiça ambiental—, esboçou o que seria a contribuição específica do Brasil pós-Bolsonaro ao debate dos desafios globais. Ao fazê-lo, mostrou fina sintonia com as vozes do mundo, escandalosamente ausente da retórica governista.

Só que, no início da mesma sessão em que leu o discurso nota 10, improvisou uma defesa delirante do que seria o direito dos presidentes à reeleição ilimitada —perguntando por que a chanceler alemã Angela Merkel podia permanecer 16 anos no poder, enquanto ao então presidente boliviano, Evo Morales, não foi dado aspirar a um quarto mandato (vedado pela Constituição de seu país). Dias depois, tornou a bater na mesma tecla, ao citar ditador nicaraguense Daniel Ortega.

Antipetistas se apressaram a apontar o dedo para a cumplicidade de Lula com as ditaduras de Manágua e Caracas —e, por supuesto, Havana—— como prova cabal do descompromisso do líder e de seus liderados com os valores e as regras democráticas. Embora, nesse quesito, a sua conduta tenha sido impecável, não só nos 13 anos em que o PT esteve no poder, mas também durante o impeachment de Dilma Rousseff, na contestada prisão de seu padrinho e na disputa eleitoral de 2018.

É mais provável que a indesculpável conivência com ditaduras de esquerda na região venha de um comum e arraigado antiamericanismo —por efeito de uma certa visão do sistema internacional durante e depois da Guerra Fria.

Foi quando o Brasil tratou de afirmar autonomia externa, distanciando-se dos EUA e se aliando a seus opositores dentro e fora da América Latina. Pronunciado na esquerda, o antiamericanismo a ela não se circunscreve —é traço comum aos nacionalistas em geral. Persistiu no plano retórico mesmo quando as relações de Brasília com Washington amadureceram sob salutar pragmatismo.

Mais do que nunca, o antiamericanismo mal-ajambrado de nada serve para lidar com ameaças globais em um mundo onde a China é potência ascendente com forte presença econômica e comercial no país. Uma esquerda contemporânea não tem por que esposá-lo.

 

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