segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

A degradação do processo legislativo

O Estado de S. Paulo.

Desde o início de 2021, nota-se a deterioração do processo legislativo, com situações inusitadas que desrespeitam os mais básicos princípios democráticos

Nota-se deterioração que desrespeita princípios básicos da democracia.

No mundo inteiro, notam-se casos de deterioração democrática. São governos que, sem romper formalmente os limites constitucionais, se rebelam contra os controles institucionais para impor suas pretensões autoritárias. Valem-se, entre outros meios, do ressentimento e da desinformação. Infelizmente, o Brasil não é exceção. Por exemplo, em descarada imitação do que Donald Trump fez nos Estados Unidos, o governo Bolsonaro promoveu em 2021 forte campanha de desmoralização do sistema eleitoral, com a acusação, sem provas, de supostas fraudes nas urnas eletrônicas.

Deve-se advertir, no entanto, que o regime democrático brasileiro tem sofrido também um outro tipo de ataque. Trata-se da deterioração do processo legislativo observada ao longo de 2021, com situações absolutamente inusitadas, que desrespeitam os mais básicos princípios democráticos. Gravíssimo, o tema exige especial cuidado do Judiciário para defender a Constituição e assegurar o funcionamento do Legislativo.

Essa deterioração vai além do atropelo na tramitação dos projetos, excluindo o debate, o que, por si só, é muito preocupante. Constata-se o descumprimento do processo legislativo, como ocorreu no fatiamento da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios. Diante da resistência de vários senadores a respeito das alterações constitucionais aprovadas na Câmara, inventou-se uma manobra: tratar cada dispositivo da PEC como se fosse independente, e não parte de um todo.

Com isso, a PEC dos Precatórios, que não tinha votos suficientes para ser aprovada – ou seja, que não contava com o apoio parlamentar mínimo exigido pela Constituição –, teve alguns trechos promulgados. Num passe de mágica, criou-se uma nova modalidade de processo legislativo. É no mínimo estranho que a Constituição (que traz requisitos rigorosos para as alterações em seu texto) possa ser modificada dessa forma.

Outro episódio esdrúxulo de 2021 foi a votação na Câmara do projeto que altera o Imposto de Renda (IR). No momento em que foi votado, o texto final da reforma do IR era desconhecido pelos parlamentares. Não havia sido divulgado. Só depois da votação, os deputados souberam os efeitos de seus votos sobre as contas públicas. Para surpresa de muitos, descobriu-se que a reforma do IR aprovada na Câmara resultava em perda de receita de R$ 21,8 bilhões para a União e de R$ 19,3 bilhões para Estados e municípios. Não há democracia se a votação é feita sobre um texto desconhecido. A rigor, não houve sequer votação, uma vez que não se sabia o conteúdo do que estava em discussão.

Num Estado Democrático de Direito, cada Poder é livre e autônomo. Isso não significa, no entanto, que a presidência da Câmara, ou quem quer que seja, possa ignorar o processo legislativo, que é o caminho pelo qual se expressa a vontade da população, por meio de seus representantes. Não se pode infringir esse processo impunemente. Afinal, leis que não foram votadas simplesmente não são leis.

É também inteiramente inusitada a situação revelada pelo Estado a respeito das emendas de relator, com repasse de dinheiro público por vias não transparentes. Essa manobra com o Orçamento agride uma das principais funções do Poder Legislativo, que é permitir que a sociedade defina e controle o uso dos recursos públicos. Não há controle sem transparência.

Não são episódios isolados. Observa-se uma nítida deterioração do processo legislativo, relacionada com Arthur Lira na presidência da Câmara dos Deputados, o que foi, por sua vez, fortemente patrocinado pelo Palácio do Planalto. Além disso, as confusões e as incompetências de Jair Bolsonaro deixaram o Executivo federal especialmente refém das pressões do Centrão, o que intensifica a disfuncionalidade do Congresso e favorece a opacidade de suas práticas.

É mais um ataque, portanto, com a participação estratégica do bolsonarismo, contra o funcionamento do Poder Legislativo. Cabe ao Supremo defender a Constituição. Cabe ao eleitor não votar em quem faz tanto mal ao regime democrático.

Uma tragédia que poderia ser pior

O Estado de S. Paulo.

IBGE mostra que o auxílio emergencial evitou que a pandemia tornasse o Brasil ainda mais pobre, mas as disparidades sociais se agravaram

O pagamento do auxílio emergencial para a população de baixa renda no ano passado evitou que, além da grave crise de saúde que provocou, a pandemia de covid19 piorasse ainda mais o quadro social do Brasil, aumentando a miséria e devastando as condições de vida já precárias de milhões de brasileiros. Em grande medida por causa dos benefícios extraordinários, diminuíram a porcentagem das pessoas vivendo em extrema pobreza (de 6,8% em 2019 para 5,7% em 2020) e a das consideradas em situação de pobreza (de 25,9% para 24,1%). São dados da Síntese de Indicadores Sociais publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

É, sem dúvida, um resultado expressivo. O valor do auxílio emergencial foi bem maior do que o pago pelos programas já existentes e, por isso, como observou a analista do IBGE Barbara Cobo, “seu impacto no rendimento domiciliar foi muito maior”. Trata-se, porém, de uma melhora temporária, pois o número de beneficiados deve se reduzir com a nova política social do governo, que exclui parte da população que recebeu o auxílio emergencial.

E, a despeito do notável impacto social dos benefícios, um entre quatro brasileiros vive abaixo da linha de pobreza. São cerca de 51 milhões de pessoas nessas condições. Sem o auxílio emergencial, seriam cerca de 67 milhões, um terço de toda a população. A parcela que vive em extrema pobreza somava 12 milhões de pessoas no ano passado; sem o auxílio emergencial, o contingente seria mais do dobro, de 27,3 milhões de brasileiros.

Sem os programas de transferência de renda, os 10% mais pobres da população teriam de sobreviver com apenas R$ 13,00 por mês, o que corresponde a R$ 0,43 por pessoa por dia. Os benefícios do governo permitiram que a renda mensal fosse elevada para R$ 128 por pessoa, ou R$ 4,27 por dia, o maior valor já aferido na série do IBGE, baseada na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, iniciada em 2012.

A melhora do rendimento das parcelas mais pobres da população propiciada pelo auxílio emergencial teve impacto notável sobre a distribuição de renda no País. O Índice de Gini, que mede a concentração de renda num determinado grupo (quanto mais próximo de 1, maior a concentração, e quanto mais próximo de 0, mais equitativa a distribuição de renda), vinha subindo desde 2015, mas, no ano passado, teve forte queda, de 0,544 para 0,524. Sem os benefícios de emergência, teria subido de 0,560 para 0,573.

A renda, no entanto, é apenas uma das dimensões da pobreza. Há outras, como acesso à educação, saúde e moradia adequada. O impacto da pandemia nesse caso foi mais intenso.

A pandemia deixou 10,8% dos estudantes de 6 a 17 anos de idade sem aulas presenciais e sem atividades escolares em novembro do ano passado. Na educação básica, 42,6% das escolas (a maioria da rede privada) promoveram aulas ao vivo pela internet, mas apenas 48,6% dos alunos de 15 a 17 anos das escolas públicas tinham computador e acesso à internet em casa.

No mercado de trabalho, os grupos mais vulneráveis e com menor escolaridade foram os mais afetados. O nível de ocupação caiu mais entre os jovens de 14 a 29 anos e entre as mulheres. No ano passado, o rendimento médio da população ocupada branca foi 73,3% maior do que o da população preta ou parda. Os homens ganharam 28,1% mais do que as mulheres.

Quanto a gastos domésticos, despesas com gás, energia, água e esgoto consumiram, em média, 17,4% do orçamento das famílias mais pobres; entre as mais ricas, o comprometimento foi de apenas 2,6%.

São números que sintetizam o quanto o Brasil precisa avançar para superar, ou pelo menos mitigar, o drama diário que caracteriza a vida de boa parte de sua população.

Governo responsável, com políticas adequadas que assegurem estabilidade econômica e política e crescimento de longo prazo, é essencial para isso. Mas um governo com essa característica é de que o País mais carece no momento. Felizmente, a possibilidade de mudança desse quadro, por meio do voto, estará ao alcance dos brasileiros em 2022.

A sombra soviética

Folha de S. Paulo

Implosão do contraditório império comunista, 30 anos atrás, ainda causa impacto

Em 25 de dezembro de 1991, um exausto Mikhail Gorbatchov foi à televisão e dirigiu-se pela última vez a seus compatriotas soviéticos para anunciar que o império comunista centrado em Moscou havia cessado de existir.

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas já não era o que seu nome dizia havia meses, mas o momento entre o solene e o patético permitiu marcar com rara precisão um fato histórico ímpar.

A academia ainda disseca as sete décadas de um experimento social inédito, que fez a ponte entre um Estado feudal e uma superpotência nuclear, vitoriosa numa guerra mundial e líder em campos como a conquista do espaço.

O mesmo colosso impôs uma brutal anulação da liberdade individual, gerando fome e violências indescritíveis a seus cidadãos e àqueles de países sob a influência da adequadamente chamada Cortina de Ferro na Europa.

A implosão do sistema comunista, antes de tudo por suas contradições intrínsecas, liberou uma onda de otimismo nos anos 1990, com apressados falando até no fim da história e na vitória definitiva da democracia liberal como modelo de organização da humanidade.

Que o dito socialismo real não fosse melhor alternativa, isso era claro. Entretanto poucos poderiam dizer que, 30 anos depois daquele dezembro, autoritarismos estariam em alta e os impactos do fim da União Soviética ainda ditariam rumos da política internacional.

Se hoje há um risco real, ainda que reduzido, de a Rússia invadir a Ucrânia e entrar em choque com o Ocidente, é porque o Kremlin viu suas fronteiras encolherem e a Otan avançar suas tropas rumo às proximidades de seu território.

Parece inaceitável na prática para governos a oeste da Rússia, mas é a realidade para um país que sofreu quatro grandes invasões desde o século 18. Profundidade estratégica, o conceito de se defender com aliados ou ao menos vizinhos neutros, é central a Moscou.

Na psique política, o fantasma do comunismo segue rondando cabeças fantasiosas, do interior americano à campanha eleitoral deste ano no Chile, passando pelas redes sociais bolsonaristas.

Mais importante, a debacle de 1991 guia comportamentos no gigante comunista do mundo moderno, a China. Por óbvio, é incomparável a dinâmica de Pequim e da antiga Moscou. Isso dito, o Partido Comunista Chinês aprendeu as lições do fracasso da URSS.

Capitalizou ao máximo suas potencialidades econômicas e entrou em simbiose com o mercado mundial, mantendo ao mesmo tempo um totalitarismo que só tem crescido, fugindo da "glasnost" que ao fim selou o destino soviético.

O quão de barro se mostrarão os pés da fórmula que ora dá esperança aos esquerdistas nostálgicos, apenas o tempo, a exemplo do caso da União Soviética, dirá.

Verão esgotado

Folha de S. Paulo

Potencial turístico se estiola com poluição de praias por falta de saneamento

Um novo verão chegou sem que o Brasil tenha conseguido dar passos relevantes na despoluição das praias. Não se sabe o que é pior, se o atraso representado pela falta de saneamento ou o prejuízo por ameaçar tal patrimônio turístico.

Levantamento realizado anualmente pela Folha, em 1.338 pontos litorâneos de coleta, aponta que pouco mais de um terço (37%) das praias está em boas condições para banho. Esse indicador oscila entre 34% e 39% desde 2016, quando o monitoramento começou.

Observam-se, por certo, diferenças regionais. Melhorou a qualidade das praias no Nordeste e no litoral norte de São Paulo, mas não no entorno de Santos, zona há muito flagelada pela poluição característica de complexos portuários.

Houve recuo auspicioso no percentual de águas ruins ou péssimas, que chegou a 33% em 2019 e ora se encontra em 21%. Ainda assim, é inquietante que mais de um quinto dos balneários marinhos exibem concentrações de coliformes fecais incompatíveis com a saúde.

Pois é de esgotos que se trata, ou, mais exatamente, de esgotos não tratados. Apenas 54% da população nacional tem os dejetos recolhidos em tubulações sanitárias; da parcela coletada, ademais, só metade termina processada em estações de tratamento.

Pior, a proporção de esgotos canalizados avançou quase nada, de 50% em 2014 para 54% em 2019. Segundo dados do Instituto Trata Brasil, lançamos todos os dias 5.000 piscinas olímpicas de dejeções brutas na natureza.

O governo Jair Bolsonaro delira com uma Cancún brasileira na baía de Ilha Grande, região de Angra dos Reis, no estado do Rio. Mesmo para quem enxerga no polo mexicano um ideal turístico, parece óbvio que seria obrigatório começar pela limpeza das praias.

Espera-se que o novo marco legal do saneamento abra caminho para um aumento expressivo dos aportes privados no setor, dado que os recursos públicos encontram-se exauridos. Os resultados, porém, não são imediatos.

De nada valerá encher representações brasileiras no exterior de fotografias de gente bronzeada em trajes sumários nas praias ensolaradas se o turista se arriscar a contrair doenças. Estereótipos tropicais não são páreo para a realidade do subdesenvolvimento.

Pandemia expôs fragilidade na logística global

O Globo

Entre tantos efeitos indesejados, a pandemia expôs uma fragilidade da economia globalizada: as cadeias de suprimento azeitadas — ou just-in-time — soçobraram diante da volatilidade na demanda. Ao colapso repentino das encomendas no primeiro semestre de 2020, seguiu-se uma recuperação inesperada. “As redes intrincadas de produção e logística eram uma virtude em tempos normais, mas se tornaram um propagador de choque durante a pandemia”, constatou a última Revisão do Transporte Marítimo publicada pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).

A capacidade de transporte, que vinha em queda desde 2011, despencou 16% em 2020. A ociosidade nos contêineres bateu em 12%, um recorde. De repente, a demanda explodiu, e não havia como atendê-la. Em maio de 2020, 75% das entregas globais por via marítima chegavam no prazo. Um ano depois, só 39%. O atraso médio nos portos chegou a uma semana, gerando um efeito dominó que prejudicou diversas indústrias (a produção de carros novos parou por falta de chips).

Na tentativa de atender ao movimento, que crescerá 10% neste ano, houve corrida por investimentos em novos navios. Mas eles demoram a ficar prontos e, enquanto não chegam, o preço do frete disparou. Em julho de 2020, transportar um contêiner da China ao Porto de Santos custava US$ 959. Em julho deste ano, dez vezes isso: US$ 9.720. Está aí uma das causas da atual maré inflacionária. Pelas simulações da Unctad, até 2023 os solavancos logísticos elevarão o preço de produtos importados em 11% e a inflação global em 1,5% na média de 198 economias (1,2% no Brasil). O maior impacto será sentido nos produtos mais afetados pelo transporte marítimo: computadores (11%); móveis e têxteis (10%); farmacêuticos (7,5%).

A reação de diversas empresas e governos tem sido tentar reduzir a dependência dos fornecedores externos, ainda que isso encareça os produtos. Tentam reerguer as cadeias de suprimento com base não na eficiência do modelo just-in-time, mas na resiliência de um novo modelo, apelidado just-in-case. O solavanco na logística também forneceu argumentos convenientes ao protecionismo que já se espalhava.

Apesar desse recuo, é difícil crer que o mundo volte a funcionar sem as cadeias globais. Pode ser até fácil deslocar indústrias que dependem sobretudo de mão de obra, como vestuário ou têxteis. Mas é inviável no caso dos produtos baseados em tecnologia. O relatório da Unctad cita uma estimativa de que apenas entre 9% e 19% dos fluxos poderia se mover para chips, entre 15% e 20% para carros e entre 38% e 60% para produtos farmacêuticos. E não seria necessariamente um movimento para fora dos centros de produção asiáticos. Quando os Estados Unidos impuseram tarifas a produtos chineses em 2018, boa parte da produção se deslocou para Camboja e Taiwan.

Também é improvável que o movimento resista à recuperação da fluidez na logística global e alívio nos preços. “O efeito inflacionário direto dos gargalos provavelmente será limitado depois que os preços relativos se ajustarem”, diz boletim do Banco de Compensações Internacionais (BIS). Não quer dizer que as fragilidades devam ser esquecidas, mas que as novas cadeias precisam ter a redundância necessária para resistir a choques e manter-se confiáveis até nas crises repentinas.

Intolerância religiosa dá sinais de crescimento e tem de ser combatida

O Globo

A defesa da liberdade de culto e da convivência respeitosa entre diferentes credos é pauta permanente de qualquer sociedade que se pretenda civilizada. Mais ainda em tempos de intolerância religiosa como o atual. Notícias recentes de ataques a sinagogas, mesquitas, terreiros de umbanda e candomblé, além de outras manifestações de preconceito, mostram que é preciso ser firme no combate ao radicalismo crescente. O que está em jogo não é apenas o inadmissível vilipêndio à fé alheia, mas também o risco de atentados.

Os sinais de crescimento do antissemitismo são alarmantes. A antropóloga Adriana Dias, que pesquisa o assunto há duas décadas, estima que atualmente haja no Brasil 530 células neonazistas (formadas por pessoas que estão no mesmo município). Em 2019, ela detectara 334. Houve, portanto, um aumento de 58% em dois anos.

A Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro também revela dados preocupantes. Em 2019, recebeu 201 queixas, mais que o dobro do ano anterior: 92 registros. Em 2020 não houve estatística por causa da pandemia, e a queda dos números neste ano é atribuída ao fechamento total ou parcial dos terreiros, já que a maioria das queixas refere-se a religiões de matriz africana — e não a uma súbita onda de tolerância.

A intolerância não escolhe credo: em novembro, uma mesquita foi invadida e vandalizada em Ponta Grossa, no Paraná; os invasores queimaram um exemplar do Alcorão, o livro sagrado do islã, e atearam fogo num quadro que descrevia as bases do islamismo. Nem poupa celebridades. A cantora Anitta, candomblecista, sofreu ataques virulentos nas redes sociais neste mês ao postar uma foto com seu pai de santo. O apresentador Tiago Leifert foi alvo de uma saraivada de mensagens antissemitas na semana passada.

A violência é a forma mais grave da intolerância, que se expressa também em preconceitos escondidos na melhor das boas intenções. É o caso da resistência — sob a alegação da defesa do Estado laico — à indicação do ministro André Mendonça ao Supremo Tribunal Federal pelo fato de ele ser evangélico, condição enfatizada pelo presidente Bolsonaro. No STF há ministros de outras religiões e, enquanto a fé não guiar suas decisões em vez dos princípios constitucionais, não há motivo para temer. Professar uma fé não qualifica nem desqualifica ninguém para ocupar assento no Supremo.

Operações como a realizada no dia 16 de dezembro pela Polícia Civil e pelo Ministério Público do Estado do Rio contra extremistas que disseminavam o ódio contra judeus e negros em sete estados devem ser intensificadas. Se é que correspondeu algum dia à realidade, a ideia do país tolerante em que o sincretismo religioso acomodou diferenças precisa ser posta na devida perspectiva, para dar lugar à vigilância que garanta o respeito devido a todas as crenças.

Desrespeito à LRF e ‘furos’ no teto exigem debate sobre regime fiscal

Valor Econômico

O Brasil levou 26 anos para superar a chamada “crise da dívida”, cujo marco se deu em 1982, quando os países em desenvolvimento (na ocasião, classificados como “subdesenvolvidos”) anunciaram, durante a reunião anual do FMI, que não tinham divisas para pagar a dívida externa. Os maiores credores eram bancos americanos e nações ricas da Europa, além do Japão, que naquela época concediam empréstimos bilaterais.

A escassez de dólares, provocada pela forte alta das taxas de juros promovida por bancos centrais de economias avançadas, levou o Banco Central (BC) brasileiro a centralizar o câmbio, isto é, a escolher os credores que seriam pagos, uma vez que não havia divisas suficientes para honrar todos os compromissos. Na maioria dos casos, os devedores - empresas privadas, estatais e entes da Federação - cumpriam as obrigações com o BC, que, detentor do monopólio de moeda estrangeira, é o responsável pela troca dos recursos por divisas e sua remessa aos devidos credores.

Como o país, naquela quadra, acumulava déficits em transações correntes com o exterior equivalentes a 10% do PIB, o BC ficava inadimplente com inúmeros credores e, assim, a dívida externa tornou-se pública. Para lidar com o problema, o governo teve que promover desvalorizações acentuadas da moeda nacional, de maneira a reduzir o salário real dos trabalhadores e os custos de produção em geral. O objetivo era aumentar a competitividade das exportações, uma forma de elevar os saldos da balança comercial e, portanto, gerar divisas para o pagamento dos juros da dívida externa.

Os calotes fecharam o acesso do Brasil aos mercados lá fora. Sem financiamento externo e com inflação atingindo 200% em 1985, o país entrou num processo penoso de estagnação. Tentativas frustradas de estabilização dos preços levadas a cabo entre 1986 (Plano Cruzado) e 1992 (Collor II) desorganizaram ainda mais a economia e aumentaram, de forma considerável, o custo dos programas seguintes de combate à inflação, que, a cada fracasso, voltava mais alta e mais resistente.

Quando a nova moeda foi lançada, em 1º de julho de 1994, o Brasil já havia concluído a renegociação da dívida externa. Diretor da área internacional do BC antes da queda de Collor, Arminio Fraga conduziu processo de abertura da conta de capitais, medida que, após a normalização de nossas relações com a comunidade financeira internacional, começou a atrair fluxos de capitais, o que, por sua vez, permitiu ao BC acumular reservas cambiais. Estas foram cruciais para acabar com a hiperinflação, uma vez que contribuíram para a valorização do real frente ao dólar, evento que ajudou a quebrar a lógica da indexação dos preços domésticos à variação da moeda americana.

Demorou um pouco, mas, pressionado pela crise dos países asiáticos em 1987 e, em agosto do ano seguinte, pela moratória da Rússia, economias que, a exemplo do Brasil, usavam regimes de câmbio fixo como principal instrumento de combate à inflação, o governo de Fernando Henrique Cardoso entendeu que o pilar da estabilidade de preços é o equilíbrio das contas públicas. No último trimestre de 1998, começou a gerar superávits primários (conceito que exclui o gasto com juros) para estabilizar a evolução da dívida pública e, depois, reduzi-la como proporção do PIB. No ano 2000, o Congresso aprovou a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), arcabouço destinado, entre outras coisas, a impedir a criação de despesas sem que haja receita equivalente para custeá-las.

Esse arcabouço funcionou bem entre o segundo mandato de FHC (1999-2002) e os dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010). Eleita graças à popularidade de Lula em 2010, Dilma Rousseff decidiu descontinuar, sem anúncio público, o modelo bem-sucedido das duas gestões anteriores. O aumento de gastos promovido pela então presidente foi tão vertiginoso que, desde 2014, o governo não consegue gerar saldos positivos nas contas públicas. A situação fiscal se deteriorou tanto que, depois de Dilma ter sido afastada do cargo por impeachment em maio de 2016, o governo seguinte, de Michel Temer, aprovou no mesmo no Congresso medida radical: a criação do teto constitucional de gastos, que passou a limitar a expansão da despesa à variação da inflação.

Neste ano, o governo Bolsonaro, com apoio do Congresso, aprovou medidas que, na prática, representam furos no teto de gastos. Diante desses fatos, o país voltou a ser visto como vulnerável do ponto de vista fiscal. Essa percepção é dada pela taxa de juros de títulos públicos de longo prazo - nos papéis de dez anos, está seis pontos percentuais acima do título americano de mesmo prazo, e nove pontos acima nos papéis não indexados à inflação. Se quiser controlar a inflação e ter condições mínimas para voltar a crescer, o Brasil necessitará de novo regime fiscal. A âncora anterior se perdeu.

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