sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Vera Magalhães: Sob o domínio do descaso

O Globo

Há uma semana escrevi neste espaço, com prematuro alívio, que a vacina havia nos protegido de danos ainda maiores que Jair Bolsonaro poderia impingir ao país no trato da pandemia e que, graças a ela, era possível vislumbrar um fim para o pesadelo de dois anos que o Brasil e o mundo atravessam.

Não contava, mesmo com o retrospecto do presidente de turno e de seu estafe, que estaríamos para começar um novo calvário, em tudo semelhante ao de um ano atrás, para garantir que nossas crianças de 5 a 11 anos tenham acesso a essa mesma garantia de salvação.

Mesmo diante de todas as evidências científicas, aqui e lá fora, de que as vacinas foram responsáveis pela queda consistente nos casos de Covid-19 e de que, mesmo diante de mutações do vírus, estão contendo a incidência da forma grave da doença e dos óbitos, Bolsonaro insiste em boicotá-las e em dificultar o acesso da população a elas.

Não só mandou que o Ministério da Saúde deixasse de cumprir a recomendação da Anvisa, que autorizou a vacinação das crianças no último dia 16, como deu determinação para que o titular da pasta, o médico Marcelo Queiroga, empreendesse todos os esforços para tornar essa recusa a uma obrigação de Estado algo “justificável”.

Demonstrando não conhecer limites para se submeter aos desígnios negacionistas do chefe, Queiroga foi além de Bolsonaro: enquanto ele já estava curtindo a vida adoidado no Guarujá, foi seu auxiliar que brindou os brasileiros, na semana do Natal, com a declaração mais vil e abjeta entre as tantas proferidas pelas cabeças coroadas do bolsonarismo desde que vivemos a emergência sanitária.

“Os óbitos de crianças estão dentro de um patamar que não implica em (sic) decisões emergenciais”, declarou o ministro da Saúde do Brasil, ainda por cima em tom irritadiço. Segundo ele, isso “favorece”, sim, outra declaração literal, o ministério que comanda a empreender uma inútil consulta pública às tias do zap para que deem sua opinião sobre a conveniência de imunizar as crianças.

São tantas as camadas de absurdo administrativo, ético, moral ou lógico do conjunto de ações e declarações do presidente e do ministro desde a acertada (e tardia, diga-se) decisão da Anvisa que choca ainda mais o fato de o chefe do Ministério Público Federal não achar que deva cobrar de nenhum deles suas obrigações.

Augusto Aras, pelo jeito, pegou o mesmo pacote de férias antecipadas de Bolsonaro e não se digna a manifestar-se sobre sucessivas ameaças aos direitos elementares da população, como receber uma vacina já aprovada pelo órgão técnico competente.

A incúria é tamanha que, um dia depois da publicação do edital mambembe em que se inventa no improviso uma consulta pública inédita, ainda não havia o formulário para que os interessados em palpitar sobre a vacinação o fizessem!

Está-se perdendo tempo precioso de assegurar a imunização de crianças quando já perdemos mais de 300 delas desde o início deste flagelo. Um número que está dentro do “patamar” que o médico Marcelo Queiroga considera aceitável, daí por que não exista pressa para dar segurança aos pequenos.

O único momento em que Bolsonaro e seus auxiliares deixaram de cometer crimes confessos e em série contra a saúde pública desde março de 2020 aconteceu enquanto ocorreu a CPI da Covid. Foi o holofote colocado pela investigação sobre os desmandos do governo federal que conteve a sanha negacionista que tantas vidas custou ao Brasil.

Tão logo ela se encerrou e o mesmo Aras enfiou suas conclusões na gaveta enquanto finge que faz investigações prévias, o presidente, Queiroga e companhia se sentiram livres para pôr o país em risco de novo.

Vivemos sob o império do descaso, em todas as pontas. Do governo federal e dos que têm a obrigação legal e funcional de fiscalizá-lo e de contê-lo.

 

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