sexta-feira, 5 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

País precisa de ações nacionais para conter o vírus – Opinião / O Globo

Março já é o mais cruel dos meses: leitos de UTI faltando, hospitais entrando em colapso, cadáveres se empilhando nos cemitérios. O Brasil é hoje visto como risco sanitário internacional. O ambiente propício à propagação do Sars-CoV-2 tornou o país o laboratório ideal para a evolução de variantes mais contagiosas. Enquanto o darwinismo corre solto, a displicência do Planalto deu origem a reações desencontradas de estados e municípios, cujos governantes, apresentados dia após dia a novos recordes de mortos, têm decretado medidas de restrição mais duras para lidar com a pandemia fora de controle.

O presidente Jair Bolsonaro diz que “criaram pânico”, desdenha as mortes — “chega de frescura, de mimimi; vão ficar chorando até quando?”— e agride quem cobra vacinas —“só se for na casa da tua mãe (sic)”. Diante de tanta grosseria e da omissão irresponsável, secretários estaduais endereçaram à nação um grito de socorro. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) propôs toque de recolher — já em vigor em alguns estados — em âmbito nacional; lockdowns nas cidades em que a ocupação de UTIs ultrapassar 85%; proibição de shows, cultos religiosos e atividades esportivas; fechamento de praias e bares; barreiras sanitárias nacionais e internacionais. Pede ainda o reconhecimento do estado de emergência, recursos extraordinários para o SUS e a volta do auxílio emergencial.

Fernando Gabeira - A vitória parcial do coronavírus

- O Estado de S. Paulo

O desprezo pelo conhecimento fez do Brasil campo fértil para a devastação

Ainda não é hora do balanço final, mas já é possível afirmar que o Brasil foi devastado pelo coronavírus, com possibilidade de se tornar o país que mais sofreu com a pandemia. Sem mencionar as outras razões que nos isolam no mundo, o território brasileiro tornou-se um campo de observação para a humanidade, pois aqui surgiram perigosas mutações do vírus e nada garante que outras variantes não estejam em curso.

Com todo o respeito aos médicos e demais trabalhadores da saúde que batalham na linha de frente, comunicadores que tentam transmitir a dimensão do drama sanitário e grupos que se dedicam diuturnamente à solidariedade, todos combateram o bom combate, mas o saldo nacional é um grande fracasso.

Como é possível que um vírus triunfe sobre uma comunidade humana, neste momento de fácil comunicação e avanço da ciência? O que torna o Brasil tão vulnerável a um vírus mutante? Uma das razões é exatamente a nossa incapacidade de mudar com rapidez para enfrentar a nova situação.

Eliane Cantanhêde – Esse Cara

- O Estado de S. Paulo

Às vítimas: ‘para que pânico?’ A médicos: ‘Chega de frescura!’ A parentes: ‘Vão chorar até quando?’

O presidente Jair Bolsonaro disse que não se pode combater o vírus “de forma ignorante, burra, suicida”, mas, um ano e 260 mil mortes depois, não diz como deve ser, não dá nenhuma pista do seu “plano” nem anuncia quando irá de Estado a Estado, para dar uma bronca em pacientes, parentes, médicos, enfermeiras e funcionários de hospitais. “Para que pânico?” “Chega de frescura, de mimimi!” “Vão chorar até quando?” 

Poderia começar pelo Paraná, demonstrando impaciência e pedindo paciência às 800 pessoas com covid-19 que estão à espera de leitos de UTI ou da morte: “Para que pânico?” Depois, dar uma passadinha por Santa Catarina, para reclamar com mães, pais, irmãos, maridos, mulheres e filhos das dezenas de vítimas que morreram sem conseguir vaga na UTI: “Vão chorar até quando?” 

Em vez de pular de palanque em palanque, provocando ilusão e aglomeração, o presidente poderia dar uma esticada ao Rio Grande do Sul e à Bahia, que estão contratando contêineres refrigerados para acomodar corpos. Cara a cara, gritaria para médicos e enfermeiros enfrentarem o problema “de frente” e pararem com esse mimimi, só porque assistem, impotentes, exaustos, a mais e mais pessoas morrendo dia e noite. “Chega de frescura, de mimimi!” 

Vera Magalhães - Quanto custa Bolsonaro?

- O Globo

Demorou, mas a oposição parece começar a acertar o tom e o passo para combater o malefício que Jair Bolsonaro causa ao Brasil.

Recebi ontem, e postei no meu blog, um vídeo que abre com a pergunta que vai aí em cima, no título. Afinal, quanto este presidente custa ao país?

Como parece ser esta, a do bolso, a única variável capaz de sensibilizar uma parcela do eleitorado e da elite empresarial e financeira brasileira, o vídeo mostra, com dados e números, quanto a gestão temerária de Bolsonaro prejudica a atração de investimentos, a permanência de empresas no país, a imagem do Brasil junto a governos e organismos multilaterais internacionais e o enfrentamento à pandemia de Covid-19.

O tom é frio, didático, sem adjetivos. A cada diatribe bolsonaresca, é contraposto um dano claro, tangível em moeda, ao bolso dos que ainda, apesar de tudo, apoiam o presidente.

A descompostura pública não se atém ao chefe. Seus auxiliares também são expostos em todo o esplendor de sua incompetência e da constatação óbvia: nenhum deles seria ministro em qualquer governo minimamente normal.

Luiz Carlos Azedo - O Brasil está de luto

- Correio Braziliense

Nada disso, porém, importa para o presidente Bolsonaro. Seu comportamento é o que pode ser chamado de darwinismo social, segundo o qual os mais fortes sobrevivem

Com mais 1.699 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas e 75.102 novos casos, o Brasil está de luto fechado. Já são 260 mil famílias que choram pela perda de entes queridos, mas o presidente Jair Bolsonaro conseguiu, ontem, bater o recorde da falta de respeito e empatia com as vítimas da pandemia do novo coronavírus, que já tem 10.793.732 de casos confirmados: “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, disse, ao criticar medidas de restrição de circulação da população em meio a recorde de mortes pela doença.

Bolsonaro está irritado com governadores, que cobram mais empenho do governo na compra das vacinas, liberação de verbas para mais leitos e o endosso do Ministério da Saúde às recomendações dos seus sanitaristas. Os governadores, em documento encaminhado ao governo, alegam que estão no “limite” e que a vacinação em massa “é a alternativa que se afigura como a mais recomendável e, provavelmente, a única capaz de deter a pandemia”.

“Neste momento, há novas, reais e importantes justificativas para que o Brasil obtenha, com celeridade, novas remessas de imunizantes, a principal delas é a chegada e a rápida disseminação, já no estágio de transmissão comunitária, da nova variante P1, que tem se revelado ainda mais letal, prejudicando os esforços para proteger a vida de nossas cidadãs e cidadãos, bem como de suas famílias”, afirmam no documento.

Ricardo Noblat - O mundo de Bolsonaro está cheio de rachaduras e pode desabar

- Blog do Noblat / Veja

Um dia a casa cai (nada a ver com a mansão do Zero Um)

Ainda bem que o presidente Jair Bolsonaro cancelou as assinaturas de jornais dos dois palácios à sua disposição, o Alvorada onde mora, e o Planalto onde despacha, e estendeu a medida aos ministérios e demais órgãos da administração pública. Ainda bem, como disse outro dia, que já não assiste aos telejornais da Rede Globo.

Talvez se informe pelo SBT – o sistema bolsonarista de televisão que o poupa de críticas. Do contrário, com a mania de perseguição que o atordoa a bater nos píncaros, a essa altura teria concluído que o mundo inteiro, e um pouco além, está de sacanagem com ele, e que ele tem mais é que ignorá-lo para preservar sua saúde.

Por falar em saúde… Nas últimas 24 horas, o Brasil registrou 1.786 mortes. Morreram até ontem 261.188 vítimas da Covid. São, em média, 1.361 mortes por dia. É o sexto recorde seguido, um aumento de 30% em duas semanas. É a média de mortes mais alta desde o início da pandemia há um ano.

Ruy Castro - Bolsonaro é nosso e ninguém tasca

- Folha de S. Paulo

O único governante do mundo mais preocupado com o remédio do que com a doença

Ele é nosso e ninguém tasca. Em Jair Bolsonaro temos o único governante no mundo que, ao estimular a pandemia e desacreditar a vacina, está mais preocupado com o remédio do que com a doença. Outra de suas inversões da lógica, esta executada pelo boneco inflável que ele escalou para comandar a saúde, foi a de impor um tratamento "preventivo", a cloroquina, numa região, a Amazônia, em que o flagelo já se instalara. As mortes provocadas por essa decisão só poderão ser contabilizadas por alto --mas, mesmo por baixo, deveriam justificar uma prisão perpétua.

Bolsonaro prepara-se agora para nova farsa: promover um spray nasal fabricado em Israel chamado EXO-CD24, ainda em fase experimental, como um elixir mágico contra a Covid. Por enquanto, os israelenses estão testando a droga somente em animais. Talvez por isso, dez homens de Bolsonaro, inclusive o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, viajarão neste sábado para Tel-Aviv, a fim de tomar uma prise.

Hélio Schwartsman - Os sapatos de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro se comprometeu com obrigações com as quais agora está se omitindo

Você deceparia seu dedo mindinho para curar a enxaqueca de 5 milhões de pessoas na Ásia? E se for para salvar a vida de cinco desconhecidos em sua cidade? E para salvar seu filho?

Essa incomensurabilidade das dores (e dos prazeres) é um dos problemas que assombram o utilitarismo em particular e as éticas consequencialistas em geral. O fato de a dificuldade ser real não implica que não existam situações concretas em que a solução é óbvia. Todos, afinal, reprovamos a atitude do campeão de natação que deixa de resgatar uma criança que se afoga apenas para não estragar seu par de sapatos novos.

Faço essas considerações a propósito da imposição/retirada de restrições na epidemia de Covid-19. Embora não chancele, compreendo a posição do dono de restaurante prestes a falir que se insurge contra um "lockdown". Ele está, "mutatis mutandis", na situação do sujeito que pode salvar desconhecidos cortando o próprio dedo. Fazê-lo é a coisa certa, mas não obrigatória.

Bruno Boghossian – O tique-taque de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Quantas mortes cabem num dia de trabalho de Bolsonaro?

Pela manhã, Jair Bolsonaro deixou o Palácio da Alvorada e foi até a Base Aérea de Brasília. Antes de decolar, repetiu nas redes sociais a propaganda de sua caçada pelo spray nasal israelense contra a Covid, que ainda não tem eficácia comprovada. Quando o avião presidencial deixou a pista, 600 pessoas já tinham morrido da doença no país, segundo a média dos últimos dias.

Às 9h15, o presidente pousou em Uberlândia (MG). Durante o voo, outros 55 brasileiros morreram. Antes de seguir para Goiás, Bolsonaro parou para conversar com apoiadores. A cidade tem 100% dos leitos de UTI ocupados, mas o governo montou um cercadinho no setor de cargas e causou aglomeração no aeroporto.

Ali, o presidente disse que quem cobra dele a compra de vacinas é "idiota". "Só se for na casa da tua mãe. Não tem para vender no mundo", completou. Ele deixou o aeroporto de helicóptero, por volta das 10h da manhã, 55 mortes depois.

Reinaldo Azevedo – Somos os leitões baratos de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

 Parte do STF ajudou a pavimentar o caminho para a terra dos mortos. E agora? Como enfrentar a necropolítica?

Na terça (2), houve recorde de mortes por Covid-19 no país, já superado por outros. Jair Bolsonaro estava num almoço festivo no Alvorada com políticos mineiros. Peça de resistência do cardápio: brasileiro no espeto. Estávamos lá na forma de um leitão esturricado. Somos a carne barata do capitão tresloucado, cercado de generais por todos os lados.

Nesta quinta, com um novo marco de cadáveres, ele conclamou os brasileiros a cair na vida para entrar na morte. "Chega de mimimi", exortou. Afirmou que, na Bíblia, a expressão "não temas" aparece 365 vezes. Teve de consultar um papel. Não conseguiria reter na memória tanta informação. Disse o troço olhando estranhamente para o lado, como se fizesse o download de algo que não era deste mundo.

Vamos a uma indagação que fez história: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?" É um dos tuítes golpistas que o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, dirigiu ao STF no dia 3 de abril de 2018. Mais de 260 mil mortes depois, será que ele tem a resposta?

Vinicius Torres Freire - A recaída da economia e os EUA

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro e seu desgoverno são o ruído de fundo do desastre, mas convém olhar para os EUA e na reação dos donos do dinheiro à inflação no Brasil

Em um país distante do Norte da Terra, que baniu o Ogro Laranja e vai distribuir poções medicinais para seu povo inteiro até maio, há um negócio em que os mercadores de dinheiro do mundo prestam a maior atenção. É a taxa de juros dos títulos de 10 anos do governo dos Estados Unidos.

Grosso modo, é o custo de o governo americano tomar empréstimos por dez anos. Define o custo do crédito para outros negócios, desde comprar casa no Texas a emprestar para o governo do Brasil. Pelo menos desde 25 de fevereiro, a alta dos juros de longo prazo americanos tumultua a finança mundial, em particular nos países “emergentes”.

O Brasil, um país submergente nas profundas dos infernos, padece em especial do remelexo americano. A gente precisa prestar atenção nisso. “Estruturalmente, a questão americana é a mais relevante, é central”, como diz em termos sóbrios Armando Castelar, pesquisador do IBRE/FGV, professor de economia da UFRJ.

A alta da taxa de juros nos EUA é motivo da alta do dólar pelo mundo. A economia americana se recupera com rapidez. Vai receber US$ 1,9 trilhão de impulso de gasto do governo (35% mais que o PIB brasileiro anual). Conta ainda com o estímulo do Banco Central deles, o Fed, que continua comprando mais de US$ 100 bilhões por mês em títulos públicos e privados. Para resumir uma conversa enrolada, na prática isso significa que o Fed reduz as taxas de juros pagas por governo, empresas e mesmo indivíduos: o Fed subsidia, banca, parte da conta dos juros. Até maio, a população americana deve estar vacinada. Parte da dinheirama do mundo corre, pois, para os EUA.

Rogério Werneck* - Populismo explícito

- O Estado de S. Paulo / O Globo

Já entravada por um risco fiscal proibitivamente alto, equipe econômica terá de lidar com o risco de uma guinada populista inequívoca

Não é de hoje que o País anda sobressaltado com a possibilidade de Bolsonaro rasgar a fantasia e abandonar de vez seu suposto compromisso com uma agenda de política econômica liberal. 

Em janeiro, houve a tentativa de demissão do presidente do Banco do Brasil, por ter anunciado redução no quadro de funcionários da instituição. A escalada mais recente, da demissão do presidente da Petrobrás, por insensibilidade pelos interesses dos caminhoneiros, configurou episódio bem mais grave. 

Como interpretar a súbita disposição de Bolsonaro de se mostrar tão mais truculento no problemático cabo de guerra que, há tempos, vem travando com Paulo Guedes e sua equipe? Em que medida tudo isso levanta incerteza sobre a condução da política econômica no País?

Não há como se agarrar ao autoengano. O episódio deixa mais do que clara a extensão do esgarçamento na complexa relação de Bolsonaro com seu ministro. É inegável que houve constrangedora perda de face de Paulo Guedes e sério comprometimento de sua credibilidade. E, sobretudo, de sua capacidade de articulação, tanto dentro do governo como com o Congresso.

Bernardo Mello Franco - Chega de mimimi

- O Globo

Nem a morte de 261 mil brasileiros é capaz de extrair alguma humanidade de Jair Bolsonaro. No pior momento da pandemia, o capitão voltou a ostentar desprezo pelo sofrimento alheio. “Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, debochou ontem, em Goiás.

As duas frases sintetizam a visão do presidente sobre a tragédia. Nas palavras dele, os esforços para conter a doença não passam de “frescura”. Quem usa máscara tem “medinho do vírus”. Quem respeita as regras de distanciamento é “frouxo” e “covarde”.

Obcecado por afirmar sua masculinidade, o capitão diz que é preciso enfrentar o vírus “como homem, não como moleque”. “Tem que deixar de ser um país de maricas!”, esbravejou, em outro comício contra o isolamento social.

Com o termo “mimimi”, o presidente tenta desmerecer as críticas a seu comportamento irresponsável. A gíria foi adotada pela militância bolsonarista para ironizar minorias e grupos oprimidos. Quem protesta contra o racismo é “vitimista”. Quem contesta a homofobia é “mimizento”.

Por essa lógica, também é “mimimi” reclamar de um governo que ignora a ciência, deixa pacientes sem oxigênio e sabota a negociação de vacinas. Ontem o capitão chamou de “idiota” quem reivindica a compra de imunizantes para todos. “Só se for na casa da tua mãe!”, acrescentou.

Flávia Oliveira - O vermelho de Bolsonaro

- O Globo

Não há medida que esconda o fracasso maiúsculo do Brasil no enfrentamento à pandemia. Sob a mão de Jair Bolsonaro, o país apequenou-se de cabo a rabo. É ilha num mar de dramáticos indicadores sanitários, sociais, econômicos, fiscais. Um quarto de milhão de brasileiros já perdeu a vida. Num mix de indiferença e incompetência, a nação que, um ano atrás, em três semanas vacinou contra a gripe 18,9 milhões de idosos e 3,8 milhões de profissionais de saúde, nos últimos dois meses não imunizou nem oito milhões contra a Covid-19. O país maculou um de seus orgulhos, o Programa Nacional de Imunização, porque a administração povoada de militares planejou mal e executou debilmente. A economia encolheu 4,1% em 2020 (o pior resultado da série histórica iniciada em 1996) e saiu da lista das dez maiores do mundo. Adentrou o novo ano em frangalhos, com atividade patinando, Orçamento pendente, equipe econômica enfraquecida, política social interrompida, miséria alargada.

O Brasil colheu doença e morte, desemprego e empobrecimento, fome e desesperança. O presidente debocha, e a pandemia se agrava. No início da semana, a Fiocruz publicou edição extraordinária do boletim Observatório Covid-19. O conteúdo tratou sem sutileza da formação de um patamar de intensa transmissão do coronavírus. Dias antes, o médico e cientista Miguel Nicolelis antecipara o colapso sanitário e alertara também para o risco da tragédia funerária ora materializada numa escala próxima de duas mil mortes por dia. Pela primeira vez desde o início da pandemia, escreveram os especialistas da Fiocruz, o país experimentava o agravamento simultâneo de número de casos e óbitos, níveis altos de incidência, grande proporção de testes positivos e sobrecarga de hospitais.

Nelson Motta - Quanto vale uma vida?

- O Globo

Muitas vezes viajando pela Europa me impressionava o valor que davam a vidas humanas. Enquanto isso, no Brasil, sempre me horrorizou o desprezo que o Estado e a sociedade têm pela vida humana

Para as famílias e os amigos, não tem preço. Mas, para a economia, a política e o Estado, tem, em reais ou em dólares.

Muitas vezes viajando pela Europa me impressionava o valor que davam a vidas humanas, os cuidados, a proteção. Aos poucos entendi que não era só por humanismo, mas pelo que cada um custava ao Estado do bem-estar social, até se tornar um pagador de impostos em tudo que trabalha, produz e consome.

Enquanto isso, no Brasil, sempre me horrorizou o desprezo que o Estado e a sociedade têm pela vida humana (a imagem-símbolo é um corpo estirado chão coberto por um jornal ), que foi explicitado e exacerbado na pandemia pelo negacionismo e a impiedade do presidente da República. Na falta de coração, deveria ao menos pensar no bolso do cidadão, mas o cara ignora o prejuízo real, em reais, que os mortos e contaminados dão a um Estado que gasta R$ 40 mil por ano com cada preso e R$ 15 mil por estudante do ensino superior. Imaginem com internações hospitalares.

Ruth de Aquino - Sem lockdown nacional, teremos 3 mil mortos por dia

- O Globo

Quem diz isso é o médico, neurocientista e professor catedrático Miguel Nicolelis. Sem 21 dias de lockdown nacional, o Brasil entrará numa “guerra explícita”, “um prejuízo épico, incalculável, bíblico”. E será já neste março. A pneumologista Margareth Dalcolmo receia que o mês seja lembrado como “o mais triste de nossas vidas”. A saída é lockdown ao estilo europeu: “Duas semanas ao menos. Zero circulação. Sem shopping, sem restaurante, sem BRT. A não ser serviços essenciais. Para reduzir a transmissão e desafogar hospitais, enquanto se produzem mais vacinas”.

Parece radical. Mas o Brasil é um dos poucos que jamais recorreram ao lockdown. Só jeitinho, embromação, apelo à consciência cívica. Países civilizados sabiam que não bastava pedir empatia a uma população instruída. Fecharam. A única forma de salvar milhares de vidas era o lockdown temporário, com auxílio emergencial aos mais pobres para ficar em casa. Toque de recolher, agora, é uma medida cosmética, porque o vírus circula muito mais durante o dia. O BRT lotado é um viveiro de Covid. 

César Felício - O grande eleitor e o fator de ruptura

- Valor Econômico

Bolsonaro tem a sorte de poder contar com a oposição

A pandemia e a dificuldade do presidente Jair Bolsonaro em lidar com ela superaram as expectativas mais negativas do mais delirante pessimista. Tudo que pôde dar errado deu, desde escolhas equivocadas na definição das vacinas a serem usadas até o surgimento no país de uma variante especialmente maligna, pouco antes do início da imunização.

O próprio presidente também foi muito além do que se podia imaginar para quem esperava dele um papel de liderança. No dia em que a Nação começava uma escalada rumo ao abismo, à vertigem de mais de um morto por minuto, essa foi a palavra do chefe de Estado: “Nós temos que enfrentar os nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”.

Na sequência, quem começou o mimimi foi ele: “Fui eleito para comandar o Brasil, espero que este poder me seja restabelecido. eu sou um democrata, criticam decisões que tomam contra mim e eu não reajo”, argumentou.

Soma-se a esse desastre verbal a circunstância econômica. O auxílio emergencial virá, menor do que o do ano passado. Compensações para a redução de jornada e salário serão feitas, também, mas inferiores O espaço fiscal para crédito a empresas em dificuldades tende a ser mais reduzido. Estas três variáveis significam que a economia ficará muito mais exposta à devastação da pandemia neste primeiro semestre do que ficou em 2020.

Armando Castelar Pinheiro - Sabor de fim de festa

- Valor Econômico

Pandemia, populismo, inflação alta e um cenário externo menos favorável vão complicar o quadro econômico

A matéria de Lucas Hirata, manchete do Valor de uma semana atrás, impressionou: A bolsa de valores “sofreu fuga recorde de capital externo após a intervenção do presidente Jair Bolsonaro na Petrobras. Investidores estrangeiros retiraram, segundo a B3, R$ 9,2 bilhões no período de três pregões desde o estouro da crise”. No mês, os estrangeiros tiraram R$ 6,8 bilhões da bolsa, depois de três meses investindo uma média de R$ 28,3 bilhões ao mês. Com essa virada, não surpreende o Ibovespa ter caído 5,1% em fevereiro.

Dois fatos determinaram esse movimento, nenhum deles provável de ser revertido nos próximos meses.

Primeiro, a percepção de que o “estilo populista” do presidente influenciará cada vez mais na política econômica, conforme as eleições se aproximem e a economia siga sem se recuperar.

Reflita um instante sobre a coreografia da crise da Petrobras. O mandato de Roberto Castello Branco estava acabando e ele logo poderia ser substituído, sem ruído ou o presidente se envolver. Este, porém, optou por comandar a mudança, via a imprensa, com grande alarde, supostamente para impedir uma paralisação de caminhoneiros. Como mostrou Malu Gaspar, porém, esse risco não existia (glo.bo/3kD06MY). A conclusão é que a “crise” foi construída do nada, para colocar o presidente do lado do “povo” contras as “elites”. Nas suas palavras: “O petróleo é nosso? Ou é de um pequeno grupo no Brasil?”.

Ao fim, a ruidosa destituição de Castello Branco rendeu o resultado que buscava: grande exposição do presidente na mídia.

Lu Aiko Otta - Quatro condições para a retomada

- Valor Econômico

Há disputa nos bastidores em torno da potência de instrumentos como retomada do BEm

Há quatro condições necessárias para a retomada do crescimento, segundo se avalia no gabinete do ministro da Economia, Paulo Guedes: 1. vacinação; 2. fiscal; 3. fiscal e 4. fiscal.

O alerta contido no boletim regional do Banco Central não poderia ser mais claro: em janeiro, a economia do Amazonas retornou aos níveis de abril de 2020. Dava sinais de haver se acomodado ainda abaixo disso no fim de fevereiro. O que aconteceu lá “sinaliza os possíveis impactos de um agravamento severo da epidemia em outras regiões”.

A “frescura” e o “mimimi” estão jogando a economia na lona de novo. A intensificação das medidas de isolamento, que nenhum governante queria adotar, se impôs.

O primeiro trimestre de 2021, antes contado como parte de uma recuperação em “V” da economia, agora é dado como perdido em termos de crescimento. Possivelmente, o segundo trimestre também será comprometido, avalia-se na área econômica. Se a vacinação avançar sem percalços, é possível pensar em melhora no segundo semestre deste ano.

Nesse quadro, medidas de socorro que se pretendiam encerradas em 31 de dezembro de 2020 vão ter de voltar. É aí que mora o perigo.

Dora Kramer - Mortos não votam

- Revista Veja

As vítimas do vírus não comovem Bolsonaro porque a ele importam mais os vivos aptos às urnas em 22

Quis uma cruza atroz do destino que a pandemia do século XXI apanhasse o Brasil nas mãos de um homem mau. Um presidente sem noção do que seja governar, desprovido de conhecimentos básicos sobre o funcionamento das coisas públicas, em estado de total privação de senso da urgência de prioridades, referido no voraz desleixo em relação ao bem-estar coletivo.

Um síndico de edifício zela pelo conjunto dos condôminos quando determina o uso de máscara aos funcionários, espalha recipientes com álcool em gel, restringe a circulação e fixa nas dependências do prédio comunicados aos moradores sobre a necessidade de cumprimento das regras, mas o atual presidente da República do Brasil nem como zelador seria bem-aceito. Não foi feito para a vida em comunidade.

Jair Bolsonaro condena qualquer tipo de proteção aos residentes da nação e ainda vilipendia quem trabalha em prol dos cuidados. Essa ausência de apreço pela vida alheia poderia ter explicação só na maldade, no desvio de caráter ou mesmo em algum tipo de dano psicológico grave, não carregasse junto doses oceânicas de cálculo político-eleitoral.

Não vejo, como apregoam alguns no afã de imprimir maior contundência ao exercício da oposição, que a ideia dele seja matar pessoas nem torcer para que morram. Isso dá dramaticidade à cena, mas cria um espaço de fantasia por onde transitam com muita habilidade o presidente e seus apoiadores, dando-lhes a oportunidade de exercer a reação com virulência igualmente irrealista. Nesse campo vicejam, por exemplo, as falácias sobre medicamentos inúteis, os malefícios do uso de máscara, o atraso na compra de vacinas e o alarde em torno de aludidos prejuízos, sem a correspondente serventia, do isolamento social.

Murillo de Aragão - As crises e as oportunidades

- Revista Veja

O Brasil foi desarmado para a guerra contra a pandemia

Como disse Pedro Malan, no Brasil até o passado é incerto. Avaliar o debate sobre a PEC Emergencial antes de sua aprovação é temerário. No entanto, quando escrevia esta coluna o Senado já tinha aprovado a proposta de emenda constitucional de forma razoável: abrindo espaço para o auxílio emergencial com a manutenção do teto de gastos. E, em meio a intenso debate, a emenda provavelmente será definitivamente aprovada nesse formato.

A aprovação definitiva da PEC Emergencial respeitando a integridade do conceito de teto de gastos é apenas uma batalha na guerra travada neste momento pelo povo brasileiro. A questão fiscal permanece relevante com o futuro debate do Orçamento da União e o andamento das reformas constitucionais e infraconstitucionais. Mas outras batalhas estão em curso.

Meus leitores sabem que, no fim de janeiro do ano passado, coloquei aqui mesmo minhas preocupações com a epidemia que vinha da China. Alertava que seria um imenso desafio para governos e sociedade. E com repercussões alarmantes, caso se alastrasse. Tempos depois escrevi Ano Zero, livro que traz uma reflexão sobre a economia e a política no pós-pandemia e que está disponível em Veja Insights, no site desta revista.

Maria Cristina Fernandes - O léxico mortífero de Bolsonaro na crise sanitária

- Valor Econômico / Eu Fim de Semana

Prisão de deputado por ofensa a um poder contrasta com a inimputabilidade de um presidente que, ao longo de 12 meses, foi determinante para a posição do Brasil no pódio mundial da covid-19

1) “Obviamente temos uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é tudo isso que a grande mídia propaga pelo mundo todo” (10/2/2020)

Discurso para a comunidade brasileira em Miami, três dias depois de chegar à Flórida, onde jantou com o então presidente Donald Trump. Nas semanas que se seguiram, 23 integrantes da comitiva foram diagnosticados com o vírus. No dia seguinte, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu a pandemia. No dia 26 seria oficializado o primeiro caso de coronavírus. O Ministério da Saúde depois reconheceria que havia casos, sem diagnóstico, desde janeiro.

2) “O que está errado é a histeria, como se fosse o fim do mundo. Uma nação como o Brasil só estará livre quando certo número de pessoas for infectado e criar anticorpos” (17/03/2020)
Entrevista à rádio Tupi. No dia anterior, o Ministério da Saúde havia notificado a primeira morte por coronavírus, depois ratificado para 12 de março. No dia seguinte à entrevista, o presidente solicitou a calamidade pública para suspender artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal.

3) “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho” (24/03/2020)
Pronunciamento em rede nacional. No dia seguinte, o presidente baixaria decreto incluindo atividades religiosas de qualquer natureza e unidades lotéricas entre atividades essenciais durante a pandemia.

4) “O tratamento da covid-19, à base de hidroxicloroquina e azitromicina, tem se mostrado eficaz nos pacientes ora em tratamento” (25/03/2020)
Postagem em redes sociais. A produção de hidroxicloroquina pelo Laboratório Químico do Exército chegaria a 80 vezes a média histórica, com compra de insumo 167% mais caro que a média do mercado. Em maio a OMS suspenderia estudos sobre a hidroxicloroquina em função dos efeitos adversos do medicamento.

José de Souza Martins* - Os benefícios de quem está acima da lei

- Valor Econômico / Eu Fim de Semana

No Brasil, os indivíduos que chegam ao poder podem ser beneficiados pelo direito não escrito de que estão acima da lei

A necessidade política da definição da igualdade social, tratada extensamente na Constituição brasileira, não é estranha em face das desigualdades historicamente profundas que nos caracterizam.

O artigo que dela trata, mais do que assegurar a igualdade, na verdade proíbe a desigualdade. É um desses indícios de hipocrisia política que atravessa as leis brasileiras. A igualdade é um direito sem ser obrigatória, fragilizada sem a previsão de instituições que a assegurem nem a responsabilização dos que a violam.

A Constituição brasileira é clara e abrangente em relação à igualdade: “Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”. Trata-se, porém, de mera igualdade jurídica, que, entre nós, assegure na competição desigual as desigualdades sociais.

Esse artigo pressupõe que se destina a assegurar a igualdade numa sociedade já igualitária, que a nossa não é. Desde os primeiros tempos de sua formação, teve ela escravidões, juridicamente diferençadas, a do índio e a do negro, e ainda tem - a de todos que caírem na rede da escravização por dívida. Portanto, uma desigualdade constitutiva e profunda.

Numa sociedade assim, a instituição do direito à igualdade criminaliza a desigualdade sem modificar a sociedade, coisa que, de fato, depende de fatores de transformação social, sobretudo de movimentos sociais que ponham em evidência as iniquidades que tornam a igualdade uma quimera. Leis, em princípio, configuram a sociedade juridicamente, mas não socialmente. Entre uma coisa e outra há um abismo.

Fernando Abrucio - Bolsonaro nos afasta do século XXI

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A covid-19 é o mal imediato, mas o problema mais profundo está na visão arcaica, míope e populista de nosso presidente

O Brasil chegou ao seu pior momento da pandemia e o governo Bolsonaro tem apenas sabotado o país. Milhões de casos, milhares de mortes, sistema de saúde em colapso, aumento da pobreza e da desigualdade, além do confronto com governadores, prefeitos e mercado, tudo de uma vez só. Esse é o retrato atual da nação. Mas é possível ver a luz do fim do túnel e imaginar que no segundo semestre, após a vacinação de boa parte da população e com os ventos positivos da economia internacional, sairemos do momento mais crítico da crise. O problema é que o dia seguinte da covid-19 deixará o rei nu, mostrando que o presidente não tem a menor ideia do que fazer para enfrentarmos os desafios do século XXI.

Muitos analistas já estão apresentando um cenário pós-pandemia alvissareiro, com melhor desempenho econômico em 2022. Por esta ótica, a crise sanitária da covid-19 é o “bode na sala”: basta retirarmos esse bicho que nos incomodou tanto que tudo voltará ao normal. Trata-se de uma visão míope, que olha apenas para o curto prazo.

Há dois grandes erros nesta percepção de que a pandemia é apenas o “bode na sala”. O primeiro deles deriva do fato de que haverá sequelas da crise impulsionada pela covid-19. Não será fácil apagar a dor dos parentes que viram seus próximos morrerem, das pessoas que sofreram com a doença, daqueles que perderam emprego ou tiveram sua vida virada de cabeça para baixo. A vacinação em massa e o impulso externo têm boas chances de ativar a roda da economia até o fim do ano, mas as taxas de desemprego dificilmente voltarão ao patamar anterior à eleição de Bolsonaro.

Brasil e o papel no golpe chileno

Livro do jornalista Roberto Simon revela, a partir de documentos, atuação brasileira no regime Pinochet

- João Luiz Sampaio, Especial para o Estadão

Em setembro de 2013, o jornalista Roberto Simon embarcou em direção ao Chile para acompanhar os eventos ligados aos 40 anos do golpe contra Salvador Allende. Na bagagem, no entanto, levava um objetivo adicional: mergulhar nos documentos da chancelaria chilena que permitissem levantar informações sobre o papel do Brasil no processo e a respeito da relação da ditadura militar brasileira com o regime militar instalado pelo general Augusto Pinochet.

De volta a São Paulo, Simon publicou no Estadão uma série de reportagens que esclareciam episódios pouco claros, envolvidos em mitos que seus textos derrubaram. O governo brasileiro não apenas havia conspirado para a derrubada de Allende, como ofereceu auxílio a Pinochet, trabalhando inclusive na repressão a esquerdistas. E o fez não a mando dos EUA, como se costumava repetir: a presença no Chile atendia uma clara política de Estado preocupada com os caminhos da política no país vizinho.

A partir das pesquisas originais, Simon voltou ao Chile e fez ainda buscas em acervos no Brasil e nos Estados Unidos, como pesquisador do Wilson Center, em Washington. Completou o material documental com depoimentos e entrevistas realizadas com diversos personagens da época. E o resultado sai agora em forma de livro com o lançamento de O Brasil Contra a Democracia: a Ditadura, o Golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul (Companhia das Letras).

“A ideia era lançar o livro dois anos depois, em 2015, mas, a cada porta que se abria, outras cinco apareciam, e era preciso seguir novas trilhas”, conta Simon em entrevista ao Estadão. “No caso brasileiro, boa parte dos documentos desapareceu. O adido militar na embaixada em Santiago, por exemplo, mandava comunicações ao governo brasileiro três vezes por semana e quase não há registros disso no Arquivo Nacional. Em outros casos, foi preciso recorrer à Lei de Acesso à Informação para conseguir documentos. No Chile, muitos papéis referentes aos militares também sumiram, mas na redemocratização eles tiveram a sábia decisão de retirar o sigilo de todos os documentos”, lembra o autor. Já nos Estados Unidos, muitas informações foram conseguidas a partir de pedidos de liberação de documentos até então sigilosos.

Alberto Aggio* - O debate em torno do populismo volta à cena

- Blog Horizontes democráticos

Os ziguezagues de Bolsonaro no comando do governo federal, dentre eles seus desconexos movimentos justificadamente interpretados como mais um retorno a políticas de caráter estatizante, evidenciados recentemente na desastrada intervenção na Petrobrás, recolocaram um velho debate no centro da conjuntura: a suposição de um “retorno ao populismo” que por sua vez contestaria as até então declaradas inclinações pelo liberalismo como a principal orientação da política econômica governamental. De repente, tudo virou de pernas para o ar e as acusações de populismo a Bolsonaro passaram a ser vocalizadas insistentemente e se combinaram com estapafúrdias similitudes com o comunismo e o fascismo — tudo junto e misturado! Num ambiente como esse, as discrepâncias entre conceitos são chocantes, o que torna imprescindível, pelo menos brevemente, revisitar a temática do populismo a partir de uma perspectiva mais crítica e esclarecedora.

O populismo não é um conceito simples como vem aparecendo na verborragia que tal debate ensejou. Ele é reconhecidamente um conceito problemático por sua ambiguidade, imprecisão, vagueza, generalização, elasticidade, subjetividade etc. Para início de conversa, trata-se de um neologismo que visou descrever as iniciativas de “ida ao povo” por parte de opositores a regimes autocráticos que se sustentavam em sociedades fechadas ou pouco dinâmicas. A historiografia registra o nascimento do conceito na tradução para inglês (populism) do movimento narodnik na Rússia do final do século XIX. A ele se consagra a pré-história do conceito, no mesmo momento, aliás, que o termo seria utilizado para identificar o movimento político de pequenos e médios produtores rurais no interland norte-americano. Depois da Rússia, como escreveu José Aricó, a América Latina tornou-se a “grande pátria do populismo”.[1] Foi nela que o conceito fincou raízes e se generalizou, a ponto de ser utilizado por historiadores e cientistas sociais como a denominação de um período da sua história.