domingo, 14 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Nem o diabo - Opinião / O Estado de S. Paulo

Confrontado pela realidade trágica da pandemia, Bolsonaro tenta explorar as mortes como ativos eleitorais, colocando-as na conta de seus adversários

Nas inolvidáveis palavras de Dilma Rousseff, então presidente da República, “podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. A máquina lulopetista de destruição de reputações era mesmo diabólica. Com razão, os eleitores demonstraram o desejo de dar um basta em tanta desfaçatez e passaram a castigar o PT nas urnas. O recado foi claro: em política, mesmo que alguns considerem válido “fazer o diabo”, não se pode fazer coisas que nem o diabo faria.

O presidente Jair Bolsonaro, contudo, parece disposto a cruzar todos os elásticos limites da pugna política. Em recente manifestação pública, leu uma carta de um suposto suicida, cuja morte o presidente atribuiu às medidas de restrição adotadas por governadores para conter a pandemia de covid-19.

A exploração de um alegado suicídio para fins políticos – atacar os governadores, a quem o presidente culpa pela situação econômica crítica no País – não tem paralelo na história nacional. Nenhum presidente da República foi tão longe nem tão baixo. Quem tenta capitalizar eleitoralmente a morte de um cidadão angustiado demonstra duas coisas: destempero e desespero.

Entrevista | Luiz Werneck Vianna: 'Desertificação da política é o legado da Lava Jato', diz cientista político

Para cientista político, operação ‘morre’ pelos próprios erros, como ações 'messiânicas' e querer 'salvar o País'

Wilson Tosta / O Estado de S. Paulo

RIO - Depois que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, anulou as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e considerou a 13.ª Vara Federal em Curitiba incompetente para julgá-lo, o cientista político Luiz Werneck Vianna afirmou ao Estadão que a Lava Jato "morreu de morte morrida". Para o professor da PUC-Rio, a ação dos procuradores da força-tarefa e do então juiz Sérgio Moro tinha objetivo "messiânico" – mudar o País pelo Código Penal –, durou demais e deu errado. Vianna descartou ainda a possibilidade de Moro ser candidato à Presidência, e disse que o combate à corrupção será tema "lateral" em 2022.

Que balanço faz desse processo, com a decisão de Fachin?

 Demorou muito. Não é a primeira vez que a Justiça tarda e falha. Mas o fato é que a decisão é inatacável do ponto de vista jurídico. A Lava Jato não podia assimilar todos os casos de corrupção que estavam ocorrendo no País. Desde o começo, foi um erro monumental, em que juízes e procuradores jovens, eu diria provincianos, assumiram o papel de salvadores do País. Andaram estudando a operação que transcorreu na Itália (Mãos Limpas) e aplicaram aqui. Fizeram uma leitura descontextualizada da situação italiana. E mobilizaram a mídia como peça de sustentação. Acho que foi um erro.

Mas tudo que o STF está revendo foi aprovado pelo próprio STF. Por que a mudança agora?

Não creio que tenha sido uma manobra conspiratória. A Lava Jato… ela durou demais. Nasceu de uma concepção abstrusa, em que um pequeno núcleo de procuradores e juízes assumiu um papel messiânico, de salvação da política. Querer fazer política pelo Judiciário é um caminho ruim. E foi o que a “República de Curitiba” tentou. Pelo processo formal, os processos não deveriam ser vinculados a Curitiba, mas à Justiça Federal. Houve um erro humano. Desqualificou-se a política, os partidos, e ficamos em um deserto. O legado da “República da Lava Jato” é a desertificação da política.

Qual foi o ponto de virada, no qual se notou que a Lava Jato estava indo além do que poderia?

Foi um processo. Começa com a revisão da política da chamada condução coercitiva. Havia as prisões demoradas, a que eram submetidos os indiciados nas ações, ações cercadas de espetaculosidade. A mídia participou disso, de uma forma inteiramente franca e aberta. Não existiria "República de Curitiba" sem a mídia.

Merval Pereira - Política nos quartéis

- O Globo

Caminhamos para uma disputa eleitoral em 2022 com as Forças Armadas sendo utilizadas pelo presidente Bolsonaro como instrumento político, o que não dá certo em lugar nenhum do mundo democrático.

O presidente mistura a incitação de seus militantes contra governadores e o Supremo Tribunal Federal com uma suposta defesa dos militares.
“Vou ficar sozinho nessa briga? O meu exército, que tenho falado o tempo todo, é o povo. Sempre digo que devo lealdade absoluta ao povo brasileiro”, inclusive ao Exército, salientou. “Eu faço o que vocês quiserem. Essa é a minha missão de chefe de Estado”.

Numa irresponsável atitude política, ele tem lançado ao ar em suas lives ameaças e advertências: “Até quando nossa economia vai resistir? Que, se colapsar, vai ser uma desgraça. O que poderemos ter brevemente? Invasão aos supermercados, fogo em ônibus. Greve, piquetes, paralisações. Aonde vamos chegar?", perguntou recentemente.

Qualquer outro poderia ser acusado de estar encorajando populares a atitudes radicais, especialmente um presidente da República, cuja missão é liderar a sociedade diante de uma catástrofe como a pandemia de COVID-19.

Bernardo Mello Franco - O fantasma da polarização

- O Globo

A volta de Lula reabilitou um fantasma que assombrou a última corrida presidencial: a ideia de um país dividido entre dois extremos. Em 2018, a propaganda de Geraldo Alckmin martelou que era preciso evitar, a qualquer custo, a polarização entre Bolsonaro e PT. As duas forças foram apresentadas como “lados da mesma moeda: a do radicalismo”.

A retórica denunciava o desespero do tucano. O eleitorado do seu partido já havia aderido ao capitão, e ele terminou com menos de 5% dos votos. No segundo turno, os candidatos do PSDB esqueceram o discurso e correram para Bolsonaro. A carona ajudou a eleger João Doria e Eduardo Leite, que agora tentam se descolar da imagem do presidente.

A equivalência entre PT e Bolsonaro sempre foi conversa fiada. O partido de Lula tem muitos defeitos, mas nasceu na luta contra a ditadura e governou pelas regras da democracia. Quando Dilma Rousseff sofreu o impeachment, os petistas entregaram as chaves do palácio e foram para a oposição.

Bolsonaro é um antigo defensor do autoritarismo, da tortura e das milícias. Não moderou o discurso na campanha nem no governo, onde passou a flertar abertamente com um autogolpe.

Elio Gaspari - O novo Lula é o mesmo

- O Globo / Folha de S. Paulo

Ex-presidente reapareceu com um discurso simples e de essência racional

Para o bem e para o mal, o novo Lula é o mesmo. Numa trapaça da história, enquanto o ex-presidente falava, Eduardo Bolsonaro, o 03, mandava que as pessoas enfiassem as máscaras “no rabo”, e seu pai, delicadamente, colocava-a no rosto.

Lula reapareceu com um discurso simples e de essência racional . Na quarta-feira, o número de mortos bateu a casa dos dois mil, num total de 270.917 (a provável população do Brasil no final do século XVII). A “gripezinha” estava no “finalzinho”, e a “conversinha” da nova onda mostrou-se mais letal que a do ano passado. Lula chamou Bolsonaro de “fanfarrão” e seu governo de “incompetente”: “Não siga nenhuma decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da Saúde. Tome vacina. Tome vacina, porque a vacina é uma das coisas que pode livrar você da Covid.”

Mais: “O Brasil não é dele e dos milicianos.”

Sem a teimosia delirante do capitão, Lula também tem um pé em sua realidade paralela. Ele fala de uma “Petrobras bem dirigida, como foi no nosso governo”.

A boa gestão no petróleo explicaria “o golpe contra a Dilma, porque é preciso não ter petróleo aqui no Brasil na mão dos brasileiros. É preciso que esteja na mão dos americanos, porque eles têm que ter o estoque para guerra.” Até aí, trata-se de uma opinião, mas Lula foi adiante:

“A Alemanha perdeu a guerra porque não chegou em Baku, na Rússia, para ter acesso à gasolina.”

A Alemanha não chegou a Baku porque foi detida em Stalingrado no início de 1943. A essa altura, os nazistas já haviam sido detidos às portas de Moscou, e os Estados Unidos já haviam entrado na guerra (dezembro de 1941) e quebrado a perna do poder naval japonês na batalha do Midway (junho de 1942). A partir do final de 1942, os alemães passaram a combater numa guerra que não poderiam ganhar, mesmo que tivessem chegado ao petróleo de Baku. Isso para não se falar na bomba atômica, cujo combustível era urânio.

Luiz Carlos Azedo - O príncipe audacioso

- Correio Braziliense

A reeleição de Bolsonaro subiu no telhado. Além da pandemia e da recessão, agora tem um adversário calejado e com sangue nos olhos: o ex-presidente Lula

Nicolau Maquiavel, o fundador da ciência política moderna, viveu o esplendor da República Florentina (fundada em 1115), durante o governo de Lorenzo de Médice (1449 1492), antes de ser transformada num ducado hereditário pelo papa Clemente II, em 1532. Não há texto mais lido pelos políticos do que O Príncipe, sua obra-prima. A razão é simples: Maquiavel trata da conquista e da preservação do poder. Uma de suas edições mais interessantes, por exemplo, é a comentada por Napoleão Bonaparte (Ediouro), que esbanja bom humor e ironias. Nem por isso deixou de perder a guerra contra Rússia e, depois, contra os ingleses, em Waterloo, na Bélgica.

Uma das lições de Maquiavel é sobre os príncipes que chegam ao poder mais pela sorte (Fortuna) do que por suas virtudes (Virtù). Esses são os que têm mais dificuldade para se manter no poder quando as circunstâncias mudam. Parece o caso do presidente Jair Bolsonaro. Não se pode dizer que sua ascensão ao poder não teve grande preparação. Teve, sim; por anos a fio, Bolsonaro cultivou a representação política de certas corporações e grupos de interesse — militares, policiais, agentes de segurança, milicianos, grileiros e madeireiros — , além de ruralistas.

Ricardo Noblat - Doria admite deixar a boca do palco para depois voltar

- Blog do Noblat / Veja

Recuo tático

Assim como é cedo para Lula admitir que será candidato a presidente da República no ano que vem, é cedo também para qualquer outro nome – salvo Ciro Gomes (PDT) e Jair Bolsonaro em campanha contínua desde que um foi derrotado pela terceira vez consecutiva e o outro acabou eleito para surpresa dele mesmo.

João Doria (PSDB) disse, ontem, ao jornal O Estado de São Paulo que não descarta a possibilidade de abrir mão de uma eventual candidatura à vaga de Bolsonaro, resignando-se a tentar se reeleger governador de São Paulo. Pouco importa que ele tenha dito ao se eleger que não disputaria o mesmo cargo em seguida.

Quando candidato a prefeito de São Paulo, José Serra (PSDB) registrou em cartório a promessa de que cumpriria o mandato, negando a hipótese de concorrer ao governo do Estado dali a dois anos. Concorreu e ganhou. Eleito presidente com uma votação estrondosa, Jânio Quadros renunciou seis meses depois.

Rolf Kuntz* - A chanchada sinistra do autoritarismo

- O Estado de S. Paulo

A pandemia avança, enquanto o governo encena a paródia da ditadura militar

Pornochanchada já era. O Brasil vive agora uma chanchada trágica, encenada pelo mais incompetente e mais desastroso governo de sua História. Não há como estranhar as obscenidades de Jair Bolsonaro e de seu filho Eduardo, especialmente quando dirigidas à imprensa. Suas barbaridades apenas expressam, de modo chulo, o padrão moral, intelectual e político do grupo instalado no centro do poder federal. Quando manda enfiar em lugar impróprio as máscaras destinadas à prevenção sanitária, o filho do presidente celebra, como seu pai, a mortandade dos brasileiros. Essa grosseria, tipicamente bolsonariana, foi postada em 10 de março, quarta-feira. No mesmo dia, um novo recorde de mortes pela covid, 2.349 em 24 horas, foi registrado. A família presidencial poderia celebrar um novo marco em sua história.

Também na quarta-feira o ministro Eduardo Pazuello, famoso por sua omissão quando pacientes morriam sufocados em Manaus, negou o risco de colapso nos serviços de saúde. “O nosso sistema de saúde está muito impactado, mas não colapsou nem vai colapsar”, assegurou. Em todo o País, governadores, prefeitos, secretários e médicos apontavam hospitais lotados e filas de doentes à espera de vaga em UTIs. Todos esses fatos eram componentes de um desastre muito maior: o desmoronamento, iniciado em 2019, da administração federal.

Pedro S. Malan* - 2022, o ano que vem chegando mais cedo

- O Estado de S. Paulo

Aung San Suu Kyi: ‘O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem’

 “Creio que nenhum homem tem plena consciência das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimento de sua própria pessoa” (Joseph Conrad). Seria possível imaginar o mesmo de um país? Dizer, como o personagem de Shakespeare (em Macbeth): “Ai de ti, pobre país, quase com medo de conhecer a si próprio”. O Brasil sob o bolsonarismo parece cada vez mais enredado no autoengano e na autocomplacência, empenhado em perder-se em engenhosas artimanhas para escapar ao conhecimento de si próprio.

Mas a terrível sombra está a ficar mais visível com o agravamento da pandemia, e com suas consequências. Paradoxalmente, é o que poderá talvez permitir que escapemos, nos próximos 18 meses, do autoengano coletivo, que seria trágico. Terrível como possa ser, o Brasil, a duras penas, pode estar se conhecendo melhor. Afinal, Bolsonaro e sua grei são parte integrante de nossa realidade. Cumprirá a cada um de nós procurar construir coalizões – de pessoas, de partidos – aptas a apresentar-se à sociedade em geral (não apenas a nichos identitários, corporações estabelecidas e interesses consolidados) como alternativas de poder viáveis e construtivas.

Eliane Cantanhêde - Lula, Bolsonaro e o vírus

- O Estado de S. Paulo

Bolsonaro, agora 'Capitão Gotinha', muda a retórica, assume as vacinas e vai abrir as torneiras

À deriva, à mercê do coronavírus e exportando novas cepas para o mundo, o Brasil vai assistir – e sofrer – uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com o camarada Lula ressentido e disposto a tudo e o capitão Jair Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos. Acaba de surgir o "Capitão Gotinha", o maior defensor da vacina no planeta. Acredita quem quer. E o pior é que tantos acreditam em qualquer coisa.

Os dois lados estão armados até os dentes e só nos resta torcer para que a imagem de retórica não vire realidade na era de um presidente com delírios autoritários e fetiche por armas. Depois de papai Jair combater incansavelmente as vacinas, a família presidencial assume um slogan oposto: "Nossa arma agora é vacina". Mas deixaram rastro, fantasiando o doce Zé Gotinha de miliciano, com um fuzil em forma de seringa. Argh!

Centro precisa se viabilizar contra populismo, dizem cientistas políticos

Para Luis Felipe d’Ávila e José Alvaro Moisés, é preciso que haja uma 'terceira força', além do antibolsonarismo e do antipetismo

Marcelo Godoy / O Estado de S. Paulo

 O cientista político Luis Felipe d’Ávila considera que uma eventual união entre candidatos centristas deve ser feita com base em três diretrizes: o combate à corrupção e aos privilégios, a preocupação com os mais pobres e a promoção do serviço público de qualidade para garantir acesso à Educação e à Saúde aos mais necessitados. “O centro precisa criar a vacina contra o populismo”, disse.

Segundo d’Ávila, o presidente Jair Bolsonaro foi eleito por quatro grupos e já foi abandonado por três deles: os antipetistas, os liberais e os lavajatistas. Mantém o apoio dos fidelíssimos, do “bolsonarismo duro”. Mas, avalia, hoje a maioria dos brasileiros deseja um governo totalmente diferente do atual, e um candidato em um partido médio, como Cidadania e o Podemos, teria mais chance de atrair outras siglas sem prejudicar os acertos regionais.

Para ele, o antibolsonarismo deve ter papel central na eleição em 2022. “Os votos que Lula e que Bolsonaro tiveram são votos do passado. Bolsonaro carregará o peso da crise sanitária, Lula o da corrupção e Moro o da resistência ao seu nome na esquerda. O centro é que pode construir pontes. Se o centro chegar ao segundo turno, ele ganhará a eleição.”

Substituição

O cientista político José Alvaro Moisés concorda que o antibolsonarismo deve ocupar o papel do antipetismo nessa eleição em razão do “desastre da política sanitária” do governo. “É possível que o eleitor antipetista abandone Bolsonaro e procure alguém mais competitivo contra Lula em 2022.” Para que haja uma terceira força capaz de capturar parte do antibolsonarismo e o voto de esquerda crítico ao PT, diz Moisés, seria necessário que o centro democrático não aparecesse dividido na próxima eleição.

O cientista político acredita ser necessário que o centro apresente um programa viável de retomada econômica com a criação de empregos e a defesa da democracia, combatendo a desigualdade “abismal”. “É preciso que o centro saiba dialogar com o sentimento de rejeição da política para que ele não desapareça. Nós precisamos de estadistas.”

Janio de Freitas - Justiça com injustiça é impostura

- Folha de Paulo

O que já é conhecido na conduta de Moro não suscita suspeita, induz certeza

As duas ações em que Edson Fachin emitiu decisão e Gilmar Mendes proferiu voto, apesar de formalmente separadas, tratam do mesmo tema.

Na aparência, a conduta ilegal e persecutória de Sergio Moro nos processos com que retirou o candidato Lula da Silva (39% das preferências) da disputa pela Presidência em 2018, encaminhando a eleição de Bolsonaro (18%). A rigor, o que está na essência das ações judiciais é uma operação de interferências distorcivas no processo eleitoral que comprometeram, por inteiro, a legitimidade de uma eleição presidencial.

Nem Sergio Moro é “caso de suspeição”, nem a ocupação da Presidência por Bolsonaro, mesmo que vista como legal, tem legitimidade.

O que já é conhecido —e falta muito— das violações do Código de Processo Penal, da Lei Orgânica da Magistratura e da própria Constituição na conduta judicial de Sergio Moro não suscita suspeita, que é dúvida: induz certeza. São fatos. Não retidos em memória, mas em diferentes registros comprovadores e consultáveis, muitos de longo conhecimento em tribunais e em parte da população.

Bruno Boghossian – Pandemia 2022

- Folha de S. Paulo

Decantação da pandemia no eleitor deve definir novo presidente

Quando os americanos foram às urnas em novembro do ano passado, as mortes por Covid-19 voltavam a se aproximar de 1.000 por dia nos EUA. O coronavírus foi um dos temas mais presentes da eleição presidencial, com uma característica que se tornou a marca política da pandemia: a divisão entre as mortes e seus impactos sobre a economia.

A atuação de Donald Trump e os efeitos da doença no mercado de trabalho racharam o país. Entre os eleitores que consideravam a economia uma prioridade, 78% votaram no republicano, segundo pesquisas de boca de urna. Para aqueles que diziam que o importante era conter o vírus, 79% escolheram Joe Biden.

O democrata ficou em vantagem porque mais americanos achavam importante salvar vidas (52%) do que recuperar a atividade econômica (42%). No Brasil, a escalada da doença e a decantação da crise no humor do eleitorado podem definir o próximo presidente.

Ruy Castro - Aos biógrafos de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

O trabalho deveria começar por seus antepassados: Hitler, Jack o Estripador, Drácula, Herodes e Belzebu

Sempre achei um risco biografar gente viva. Não por medo do biografado ou de sofrer um processo, mas por motivo mais sério: como contar uma história que ainda não terminou? Imagine se, no dia seguinte ao lançamento de uma biografia, o biografado comete algo terrível, como estrangular seu papagaio ou fugir com a mãe de sua mulher. Em um segundo lá se vai o trabalho de anos do biógrafo —por que ele não previu que seu biografado seria capaz daquilo? Donde o certo é esperar que o fulano abotoe naturalmente o paletó, para só então mergulhar na investigação de sua vida.

Mas, com Jair Bolsonaro, não se pode mais esperar que ele vá para o diabo que o carregue. É urgente começar a biografá-lo porque, pela velocidade de sua trajetória —não passa um dia sem praticar um crime contra a democracia, a saúde, a educação, a ciência, a cultura, a economia, a ecologia, a diplomacia, a Justiça, os direitos humanos e a vida—, em breve ela não caberá em um volume. E isso apenas desde que assumiu a Presidência.

Vinicius Torres Freire – No desespero, país quer vacina russa

- Folha de S. Paulo

Nordeste, BH, Betim, Maricá etc. compram vacina russa, que ainda não existe

Os estados do Consórcio Nordeste, liderados pela Bahia, contrataram a compra de 37 milhões de doses da vacina russa Sputnik. As primeiras chegariam em abril.

Belo Horizonte afirma ter contratado 4 milhões. Betim, outra cidade mineira, 1,2 milhão de doses. Maricá, no Rio de Janeiro, diz ter fechado a compra de 400 mil. A prefeitura de Morro da Fumaça assinou carta de intenções para comprar 20 mil doses para 18 mil fumacenses. A cidade faz parte do grupo de 233 cidades de Santa Catarina que pretende encomendar 4,1 milhões de doses. Até o governo federal diz agora ter contrato para 10 milhões de doses.

De certo modo, é a revolta da vacina. O descrédito e a incompetência do governo de Jair Bolsonaro fazem com que governadores, prefeitos, empresas privadas e associações civis se virem a fim de obter doses, alguns com motivos nada republicanos.

Na prática, como em tantos assuntos nacionais, de “reformas” a providências para barrar tentativas autoritárias de Bolsonaro, passando pela gerência da epidemia, o restante do país tem de improvisar a governança básica.

Isto posto, impõem-se duas questões essenciais: 1) haverá tanta Sputnik? Quando?; 2) quando sai a aprovação da Sputnik? Desde janeiro está atrasada a entrega dos documentos corretos na Anvisa 3) como seriam aplicadas essas vacinas? Alguns governantes falam em usar as doses apenas em sua região.

Míriam Leitão - A falha dos poderes é ameaça perigosa

- O Globo

A democracia brasileira, nos últimos dias, deu mais alguns passos na perigosa trilha em que entrou. O Supremo Tribunal Federal (STF) aumentou a insegurança jurídica, ao dar vários sinais de que os ministros tomam decisões que mudam a vida do país seguindo a lógica das brigas internas da corte. A Câmara entregou a Comissão de Constituição e Justiça a uma deputada que esteve em atos que propuseram rasgar a Carta e a Comissão do Meio Ambiente a quem faz parte da tropa antiambiental. O presidente mais uma vez ameaçou o país com a ditadura, contando para isso com o silêncio dos generais.

A decisão do ministro Edson Fachin obedece à lógica de que se o caso não é relativo à Petrobras não tem que ficar na 13ª Vara Federal em Curitiba. A dúvida que permanece é por que levar tantos anos para descobrir a procedência da tese sempre apresentada pelos advogados do ex-presidente. Fachin explicou em entrevista a Aguirre Talento e Bela Megale do GLOBO que o assunto havia sido mencionado, mas que ele não recebeu pedido direto da defesa de Lula até novembro de 2020. O ministro disse que a Justiça tem que ser imparcial e apartidária. É verdade. Mas também precisa ser tempestiva. A intempestividade pareceu mais um lance da briga entre duas das onze ilhas da corte

Dorrit Harazim - Brasil, ano 2

- O Globo

Lançado em 1976, ano do bicentenário da independência dos Estados Unidos, o filme-sátira “Rede de intrigas”, de Sidney Lumet, contava a história de um âncora de TV demitido porque sua audiência despencara. Interpretado por Peter Finch (Oscar póstumo de melhor ator), o personagem decide comunicar ao vivo sua saída e avisa que se suicidará na semana seguinte com o programa no ar. A audiência dá um salto, e a emissora decide voltar atrás. A partir daí, o âncora passa a encarnar um oráculo insano que só diz verdades. Numa cena antológica, ele convoca os espectadores a se insurgirem contra a lógica do mercado e da dominação do capitalismo: “Quero que todo mundo levante de sua poltrona agora, vá até a janela, abra-a, ponha a cabeça pra fora e grite a plenos pulmões: ‘Chega! Não aguento mais! Estou explodindo de raiva!’.”

O Brasil de 2021 tem um quê de “Rede de intrigas”. Temos o cidadão que não aguenta mais, que gostaria de explodir sua raiva contra o abandono a que foi condenado. Ele só não explode nas janelas e pelas ruas do país por medo de morrer de Covid-19. A diferença é que, no lugar de um maluco de ficção que no filme apontava para a realidade, temos um presidente da República insano, porém real, descontrolado e amoral, a nos enredar em falsidades.

Cristovam Buarque* - Lula Taí

- Blog do Noblat / Veja

A história do Brasil já está marcada por ele

Quando Arraes voltou do exílio, não havia TV a cabo, internet, WhatsApp, mas logo se espalhou o cochicho de “Arraes Taí”. Lembrei disto ao assistir a fala do Lula na manhã da quarta-feira, depois que o Supremo Tribunal Federal anulou seu julgamento pela Lava-Jato de Curitiba. Foi como anistia de condenação que está passando a ideia de ter sido motivada politicamente. Muitos dos que se indignam e condenam a comprovada avassaladora corrupção na Petrobras, durante seu governo, desconfiavam das provas contra o Lula nos casos que o envolviam pessoalmente. Sobretudo depois de o juiz dos casos abandonar a toga para assumir um ministério. Mais ainda, ao tomarem conhecimento dos diálogos entre juiz e procuradores, durante o processo.

Por isto esperei a fala de Lula com temor de que voltasse ao discurso desagregador de quando foi solto em 2019, e com esperança de um discurso agregador, como fez em 2002 e durante seus dois governos. Colocando-se à disposição das forças políticas para encontrar o candidato com mais chance de impedir a reeleição do atual presidente. Seu discurso não teve a mensagem desagregadora, nem foi suficientemente esperançoso. Não passou a arrogância do isolamento, nem deixou clara mensagem de que “Lula Taí” para ser um dos líderes, não o monopolizador, de uma aliança pela democracia, olhando o futuro com responsabilidade econômica e empatia social. Mas deixou aberta a possibilidade dele e o PT participarem da construção de uma aliança de todos que desejam superar a atual tragédia que o Brasil enfrenta na epidemia, na incompetência gerencial, nas ameaças à democracia, no obscurantismo e no isolamento internacional.

Raquel Dias* - A difícil jornada de se declarar preta

- Correio Braziliense, 13 de março de 2021

Era 1983, em Brasília (DF), uma mãe preta leva a filha, recém-nascida, para se registrar. Não se questionava a cor dos filhos. Isso era definido por um rápido olhar do profissional do registro: a criança, sem ausência de melanina na pele suficiente para ser declarada branca e com menos que o mínimo para ser vista como criança preta, é então taxada de parda. É aí que começa nossa jornada em busca de identidade.

O termo "pardo" surge durante a colonização espanhola entre os séculos 16 e 18, com a economia baseada na escravidão. Para o IBGE, ele se aplica a pessoas com mescla de cores, seja essa mulata (entre brancos e negros), seja cabocla (entre brancos e ameríndios) ou cafuza (entre negros e indígenas).

É nessa mistura de origens étnicas, fenotípicas e culturais que estão 42,7% dos brasileiros, o que torna difícil a identificação de nosso povo com base nas origens étnico-culturais, já que o termo pardo agrega todas as miscigenações feitas no País desde o processo de colonização até o projeto de "embranquecer" a população com os investimentos feitos para trazer os imigrantes europeus para cá.

Paulo Fábio Dantas Neto* - Lula na área: desjejum, almoço e jantar (Atualizado)

O Lula que irrompeu no topo do noticiário dessa última semana é o “sapo barbudo” ou o político “paz e amor? A julgar por seu pronunciamento de retorno ao primeiro plano da cena política, está sendo as duas coisas. No ato político em São Bernardo, na quarta-feira, 10 de março, o eterno metalúrgico saiu de longo jejum guiando-se pelo seu ABC político, que quem tem mais de trinta anos de idade conhece bem. Ele foi o nacionalista e anti-imperialista grisalho, que manifestou reconhecimento a Maduro e ao Foro de São Paulo, o lulo-petista autocentrado, sem qualquer sombra de autocritica, que repetiu várias vezes o "nunca antes nesse país", pelo qual contrasta o PT e ele próprio com tudo o que existiu antes dele e com tudo o que veio depois dele no Brasil; a fera ferida que, entre vírgulas, repetiu o mantra de que houve “golpe” em 2016, que bateu no PSDB, em Temer, na mídia em geral e na Globo em particular. E foi também, ao mesmo tempo, o político de pés no chão, conhecedor do terreno onde pisa e com o qual se identifica, o pai da pátria que afirmou o Brasil como lugar de paz e de solidariedade, que fala com todo mundo e com o mundo todo, que se declarou sem ressentimentos, mesmo enfatizando a injustiça que sente ter sofrido da Lava Jato, que se reafirmou um defensor da liberdade de imprensa, aberto a conversar com a sociedade e até com a direita sobre pandemia e auxílio emergencial, insistindo que essa é a pauta unitária do momento; e que não fugiu à regra de todo político sensato, que sabe não ser hora de falar em eleição ao grande público, pois compreende as aflições que lhe importam agora.

Lula deve continuar sendo assim por um bom tempo, talvez até a urna, sua íntima.  Ocupa tanto o lugar do homem de luta como o da pacificação. É o candidato da esquerda e é também aquele que pode saltar por cima do centro e atrair o centrão. Perda de tempo querer colar na sua testa a etiqueta de extremista.

O chamado centro não tem a menor chance de ser ouvido agora. Não conseguirá, por mais que tente, ser mais oposição a Bolsonaro do que Lula é, nem conseguirá convencer o imenso eleitorado da direita de que o centro é opção mais segura do que Bolsonaro para evitar a possível volta do PT. Fala e falará para as paredes quem prega, em tese, contra a polarização, um dado do mundo real que só passará a ser visto como algo a ser superado se e quando ficar claro que a reeleição de Bolsonaro é o desfecho provável dela. No atual momento, é inútil. A fênix Lula comunica aos quatro ventos precisamente o contrário, isto é, que essa polarização é o caminho visível a olho nu para livrar o país do extremismo que o desgoverna.  Só depois de meses se poderá medir e saber (por pesquisas e outros termômetros) se a luz no fim do túnel que o ex-presidente promete é comunicação veraz, portanto, promissora, ou esperança vã e perigosa, pelo risco que a reeleição de um extremista de direita representa para a democracia. Nessa segunda hipótese sim, poderá surgir espaço a um discurso real, não só evangelizador, contra a polarização Bolsonaro/ Lula. A fotografia atual da situação dá razão a quem considera essa disputa entre ambos como o que temos para o almoço. Quem recusar essa realidade, arrisca-se a ficar com fome.

Agora, o jantar vai ter esse cardápio também? Ou em um ano e meio o cenário pode mudar? Não me arrisco a passar da fotografia à profecia. É preciso ter em conta que o imenso impacto que a volta de Lula ao protagonismo provoca em tudo ao seu redor vira de ponta cabeça a conjuntura, porque ele, sem dúvida, é um dos eixos que a estrutura e a torna mais clara e compreensível. Mas esse impacto não faz do ex-presidente e seus movimentos chaves interpretativas do que passará a ser esse “tudo ao redor”. O futuro continua a ser propriedade do imprevisto.  A razão humana é teimosa e deseja fazer previsões, mas para que elas não sejam só projeções de desejos, precisam recorrer a hipóteses alternativas, que só podem ser pensadas se usarmos instrumentos de prospecção adequados. Eles existem, para esse caso?

Poesia | Pablo Neruda - Esperemos

Há outros dias que não têm chegado ainda,
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras ou o produto
das farmácias ou das oficinas
– há fábricas de dias que virão –
existem artesãos da alma
que levantam e pesam e preparam
certos dias amargos ou preciosos
que de repente chegam à porta
para premiar-nos
com uma laranja
ou assassinar-nos de imediato.