sábado, 22 de maio de 2021

Marco Aurélio Nogueira* - Reinventar, articular, reconstruir

- O Estado de S. Paulo

Fala-se em ‘terceira via’ para 2022 como se fosse mágica, mas pouco se faz por ela

O melhor seria passar um pano em tudo e começar de novo.

Só que é impossível. Sociedades, Estados, sistemas políticos, instituições, acumulam pó e sujeira, mas não podem ser limpos com panos e detergentes comuns. Requerem recursos e ingredientes que não se encontram no mercado. E que, hoje, nesse Brasil que está deixando de ser tão brasileiro, fazem uma falta lancinante, que machuca e faz sofrer.

Falta-nos, antes de tudo, uma ideia de sociedade futura. Como queremos viver, para além da obviedade de que queremos todos ser felizes e bem tratados, ter um Estado eficiente e instituições que se façam respeitar e regulamentem a vida? Queremos justiça e igualdade (entre gêneros, etnias, orientações sexuais e classes), mas não há pistas de como isso poderá ser alcançado. Reivindicações e desejos saltam na vida cotidiana, mas os atores políticos não sabem como agarrá-los.

Com qual economia, para começo de conversa? Uma pujante, consciente de suas possibilidades, disposta a incluir o País no sistema de intercâmbios internacionais, capaz de gerar renda e empregos, de adotar a sustentabilidade como critério estratégico, de aceitar o Estado como regulador ativo? Ou uma perdulária, sem produtividade, voltada para si, sem tecnologia incorporada? Uma economia atenta aos imperativos categóricos do planeta, a começar da agenda climática e ambiental, ou caolha, dedicada à destruição da natureza, ao desmatamento predatório, à conquista da terra como bem a ser explorado sem cautela e sem interesse coletivo?

Não temos um projeto para revitalizar a Federação, equiparar minimamente Estados e municípios, dar a cada um deles as condições necessárias para progredir. O País está manco, caminha claudicando.

Bolívar Lamounier* - Da utopia deles ao nosso retrocesso

- O Estado de S. Paulo

Se permanecer, essa estúpida polarização política nos meterá em mais dez anos de crise

A História registra numerosas utopias sem pé nem cabeça – projetos de sociedade somente realizáveis em sonhos – e o curioso é que nem todas elas foram concebidas por idiotas.

Retrocessos, sim, quase sempre são obra de debiloides, mas alguns dos maiores filósofos perpetraram quimeras sem pé nem cabeça. Um exemplo notável é Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), indiscutivelmente um dos maiores filósofos de todos os tempos. Rousseau pretendeu que uma sociedade só teria um governo verdadeiramente legítimo se os interesses de cada cidadão coincidissem ponto por ponto com o interesse geral da sociedade. É lógico que nenhuma sociedade jamais se aproximou sequer remotamente de tal condição. O sisudo Karl Marx, ícone de um suposto realismo, algumas vezes também ciganeou pelos labirintos da quimera. Em 1844, somente 12 anos após a primeira reforma eleitoral da Inglaterra, ele não mediu louvores ao sufrágio universal, vendo-o como o aríete que poria abaixo a organização do poder baseada nos estamentos (nobreza, clero, povo e agricultores), aquele resto petrificado dos séculos anteriores. Dividindo o Estado entre tais “corpos”, a Assembleia dos Estamentos também dividia o próprio cidadão, cuja participação nos negócios públicos se converte numa ilusão e, pior, numa ilusão que, na prática, se transforma em monopólio da burocracia governamental. Apenas nove anos mais tarde Marx se convenceu de que o sufrágio eleitoral nunca deixaria de ser uma ilusão e que uma sociedade verdadeiramente integrada exigia uma revolução, a derrubada do capitalismo, que acarretaria o desaparecimento do Estado e das próprias classes sociais, abrindo, finalmente, a larga avenida que levaria à sociedade sem classes.

Vera Magalhães - Reações a encontro de FH e Lula evidenciam deterioração da política e deserto no centro

- O Globo

Nunca uma foto de dois ex-presidentes da República num encontro civilizado causou tanta comoção. O fato de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva se encontrarem para discutir a democracia e a crise da pandemia não deveria provocar tamanha celeuma, não fosse a profunda deterioração da política brasileira e o deserto de opções eleitorais do centro. As duas coisas ajudaram a eleger alguém absolutamente desqualificado para exercer a Presidência e a nos trazer até aqui.

Ao aceitar se reunir com Lula, de quem já foi próximo, no fim dos anos 1970 e início dos 80, FH não está, como dizem tucanos desesperados, jogando a toalha quanto à possibilidade de o PSDB ter um candidato. E, aliás, não depende de alguém prestes a completar 90 anos, e sabidamente fora do dia a dia da vida partidária, construir essa candidatura.

Já escrevi neste espaço a respeito da atual fase de uma antiga patologia: a tendência do PSDB ao "tucanocídio". Agora ela consiste na incapacidade de definir um candidato mesmo diante de um governo como o de Bolsonaro.

Bernardo Mello Franco - FHC defende diálogo após foto com Lula: “Foi um gesto de civilidade”

- O Globo

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso diz que tinha um objetivo claro ao se encontrar com o ex-presidente Lula: ajudar a distensionar o ambiente político no país.

— Foi um gesto de civilidade. Minha mensagem é: podemos vir a ser adversários, mas não precisamos ser inimigos nem jogar pedras um no outro — disse ao GLOBO.

— Nunca rompi com o Lula. A vida leva a gente a posições diferentes. Mas é importante manter a civilidade e conversar — acrescentou.

Os dois rivais históricos não se viam desde 2017, quando FH visitou Lula após a confirmação da morte cerebral da ex-primeira-dama Marisa Letícia. Voltaram a se encontrar no último dia 12, na casa do ex-ministro Nelson Jobim.

— Fui até lá para conversar. Não tenho nenhum propósito eleitoral. O Lula pode ter, é legítimo. Ele é um ser eleitoral — brincou FH.

Fernando Luiz Abrucio* - O almoço pela democracia contra o bolsonarismo

-  O Estado de S. Paulo

Encontro entre os ex-presidentes Lula e FHC realça que o momento atual é o da conversa; o que está em jogo são os ganhos obtidos pela democracia do País durante cerca de 30 anos

encontro entre os ex-presidentes Lula e FHC realça que o momento atual é o da conversa das várias forças democráticas para combater o bolsonarismo. Esse é o diagnóstico que embalou o almoço de ambos e que foi organizado por Nelson Jobim, uma liderança política que dialoga com todos e que passou pelos principais postos dos três Poderes da República brasileira. O que está em jogo são os ganhos obtidos pela democracia do país durante cerca de 30 anos, conquistados a duras penas, e para os quais tanto FHC como Lula tiveram participação decisiva. 

O almoço, obviamente, não selou uma aliança política imediata. O mais provável é que cada um deles esteja em lados diferentes no primeiro turno da próxima eleição presidencial. Uma candidatura petista é quase irreversível, dado que Lula larga no mínimo com 30% dos votos. A busca de uma terceira via é uma aposta de FHC, seja para construir uma candidatura competitiva, seja para ajudar a montar para o longo prazo esse campo disperso que hoje ganha o nome de centro. 

De todo modo, já se anuncia uma grande novidade para 2022 em relação a 2018: dessa vez, se houver um segundo turno entre Lula e Bolsonaro, muita gente que anulou o voto ou mesmo apoiou a candidatura bolsonarista ficará sem titubear com a liderança petista. Isso significa, em outras palavras, que parte do forte antipetismo presente no último pleito está se reduzindo, gradativamente, graças ao trágico governo atual. Vender o lulismo como comunista ou corrupto provavelmente não será suficiente para fazer com que muitos eleitores mais ao centro votem em Bolsonaro. As pesquisas já estão revelando isso agora, e, se houver mais um ano e meio de desastres na Educação, na Saúde, no Meio Ambiente e para a renda da população brasileira, haverá menores chances ainda de reeleição. 

Cristina Serra - FHC, Lula e 2022

- Folha de S. Paulo

O gesto mostra que ainda é possível salvar alguma coisa dos escombros

A fotografia dos ex-presidentes Fernando Henrique e Lula, ambos de máscara e dando um "aperto de mãos" como manda o protocolo da pandemia, é cheia de significados e mexe com todas as peças no tabuleiro de 2022. Esse encontro é como um ajuste de placas tectônicas que, até bem pouco tempo, estavam em choque e, ao que parece, encontraram algum ponto de acomodação.

FHC disse que ainda prefere uma terceira via, mas que votará em Lula se o segundo turno for entre este e Bolsonaro. Justamente por isso a aproximação faz sentido. As últimas pesquisas Datafolha têm indicado o esfarelamento da tal terceira via: Ciro, Moro, Doria, Huck, todos ficam comendo poeira, muito atrás de Lula, na dianteira, e Bolsonaro, em segundo lugar.

Gesto político: Reunião entre FH e Lula irrita parte do PSDB

Bruno Araújo afirmou que a reunião não faz bem a uma candidatura para 2022; FH reafirmou apoio à sigla por meio de sua conta no Twitter

Sérgio Roxo / O Globo

SÃO PAULO - O encontro entre os ex-presidentes da República Fernando Henrique Cardoso e Lula ocorrido no último dia 12, em São Paulo, causou mal-estar no PSDB. Já os petistas celebraram o encontro, mas descartam aliança com tucanos. O presidente do partido, Bruno Araújo, criticou a reunião e disse que é preciso evitar passar sinais trocados aos eleitores do partido. A avaliação de Araújo é de que o encontro não faz bem a um potencial candidato do PSDB em 2022. Outros tucanos, como o deputado Aécio Neves e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, defenderam o direito de FH a se reunir com quem quiser, mas reforçaram que o partido deve continuar a busca por um nome de centro para concorrer em 2022.

"Esse encontro ajuda a derrotar Bolsonaro, mas não faz bem a um potencial candidato do PSDB. Nossa característica é saber dialogar, inclusive com adversários políticos. De toda forma, precisamos evitar sinais trocados aos nossos eleitores. O partido segue firme na construção de uma candidatura distante dos extremos que se estabeleceram na democracia brasileira" diz o presidente do PSDB, em nota.

O dirigente tucano ainda lembrou as críticas que os petistas faziam ao governo Fernando Henrique e sugeriu que Lula foi ao encontro motivado por interesses eleitorais:

"Depois de o petismo rotular o seu governo de ‘herança maldita’, parece mais que estão em busca de votos do que um reconhecimento da gestão de FHC", completou.

Em resposta a um descontentamento da cúpula do PSDB, Fernando Henrique se pronunciou nesta manhã por meio de sua conta oficial no Twitter e reafirmou apoio ao candidato do partido nas eleições presidenciais de 2022.

"Reafirmo, para evitar más interpretações: PSDB deve lançar candidato e o apoiarei; se não o levarmos ao segundo turno, neste caso não apoiarei o atual mandante, mas quem a ele se oponha, mesmo o Lula", disse FH nas redes sociais.

João Gabriel de Lima - Uma força inovadora e um medo retrógrado

- O Estado de S. Paulo

O governo Bolsonaro não sabe ou não quer aproveitar o potencial da sociedade civil

CPI da Covid possibilitou, ao longo da semana, uma retrospectiva dos maiores erros no combate à pandemia. Um deles foi a restrição aos dados sobre o coronavírus. O episódio ocorreu em junho do ano passado, já na gestão do ministro Eduardo Pazuello. Alguns veículos de imprensa se rebelaram contra o ato autoritário, reuniram-se num consórcio – do qual o Estadão faz parte – e garantiram o acesso às informações básicas, essenciais para a criação de políticas eficazes na área de saúde.

Foi possível lembrar também de alguns acertos, como o auxílio emergencial. Ele é fruto de um movimento que juntou 163 organizações sociais de perfis diversos – dos coletivos da Coalizão Negra por Direitos ao Instituto Ethos, que congrega empresários. Acadêmicos reunidos por essas entidades ajudaram o Congresso a desenhar e a viabilizar o auxílio, importantíssimo para que trabalhadores informais seguissem o isolamento social. Estudos mostraram que em países como o México, onde não houve política semelhante, a pandemia se espalhou mais entre os cidadãos vulneráveis.

Sérgio Augusto - Falador passou mal



-  O Estado de S. Paulo

O primeiro 'emblema rubro da coragem' de Pazuello foi, ironicamente, a covid

Cadê o telão? 

Foi a primeira pergunta que me fiz, na abertura da CPI do Genocídio. Não havia. Uma CPI municiada apenas por depoimentos, papelada e gravações de áudio, pareceu-me um retrocesso tecnológico diante das possibilidades visualmente comprobatórias oferecidas pelo vídeo.

Até agora, os desmentidos e tira-teimas limitaram-se às evidências arquivadas nos celulares dos senadores da oposição. Ainda é pouco. 

Só após o depoimento do ex-ministro Pazuello cogitou-se de contratar uma agência de checagem online e em tempo real, um VAR das afirmações negacionistas feitas à Comissão, inclusive por seus integrantes governistas.

Se essa varredura já se mostrara urgente e crucial na inquirição do ex-chanceler Ernesto Araújo, as contradições e mentiras despejadas na CPI pelo ex-ministro da Saúde a tornaram imprescindível, até para conter o ímpeto falaz da tropa de choque do governo, que, alinhada com o modus operandi bolsonarista, não economiza dados, no mínimo discutíveis, quando não comprovadamente defasados e falsos, para livrar a pele do presidente, tumultuar e desacreditar o trabalho da Comissão. 

Alguns deles são tão alinhados com o presidente que ainda nem aprenderam a usar a máscara direito, como demonstrou o senador cearense Eduardo Girão, no segundo dia de depoimento de Pazuello.

Ascânio Seleme - Ministro, madeireiro, corrupto

- O Globo

Desde o primeiro dia de governo, Ricardo Salles opera contra os objetivos da pasta que comanda

Na noite da posse do presidente Jair Bolsonaro, 1º de janeiro de 2019, um jantar em Brasília reuniu alguns jornalistas, parlamentares e um dos recém-empossados ministros do novo governo. Não posso dizer que foi sorte, mas ao meu lado sentou-se justamente o tal ministro. Ele era pouco conhecido, embora já se soubesse de seu potencial. Tinha cara de bom menino, mas logo no primeiro minuto deu para perceber um coração agitado, uma alma angustiada. Estava com um assessor. Os dois chegaram com um veterano deputado, que não ficou. Pareciam deslocados, por isso conversavam entre si, evitando outras interlocuções. Mas deu para ouvir algumas barbaridades. A mais grave foi explicitada assim: “Temos que acabar com o ICMBio, fechar”. Era o ministro do Meio Ambiente, o hoje conhecido madeireiro Ricardo Salles.

Desde o primeiro dia de governo, Salles opera contra os objetivos da pasta que comanda. Não conseguiu fechar o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, mas debilitou o órgão. Fez o mesmo com o Ibama, que aparelhou. Em nenhum momento escondeu sua ojeriza a ambientalistas e ONGs ambientais. Como Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, Salles trabalha diuturnamente contra os interesses que deveria defender. Por isso, não surpreende que o ministro, um dia flagrado dizendo que era preciso aproveitar o foco da imprensa sobre a pandemia para passar esdrúxulos processos de desregulamentação da defesa do meio ambiente, seja agora investigado por exportação ilegal de madeira.

A investigação da exportação de madeira colhida ilegalmente em áreas de florestas protegidas começou graças a uma denúncia feita pelo Serviço de Pesca e Vida Selvagem (FWS) americano, órgão fiscalizador de agressões ambientais nos EUA. O FWS embargou um carregamento de madeira sem certidão de exportação no porto de Savannah, no estado da Geórgia. Ao avisar às autoridades brasileiras, soube através do presidente do Ibama, Eduardo Bim, que as regras tinham mudado e que a madeira era perfeitamente legal. Lorota. O FWS não caiu no conto do presidente do Ibama e a denúncia foi formalizada. Uma vergonha sem tamanho. Aos olhos do FWS, Bim é apenas mais uma autoridade latino-americana corrupta que não deve ser levada a sério.

Eurípedes Alcântara - A democracia e a paz

- O Globo

O conflito entre israelenses e palestinos é, há décadas, a mais complexa questão internacional. Um cessar-fogo entre os dois lados, como o desta semana, ocorre sempre por pressões externas. Os líderes da região vicejam na guerra. Sua força parece aumentar apenas com o rugir dos tanques, o macabro assobio dos mísseis e com o calor da retórica belicista. Uma economia de guerra prospera de ambos os lados, tornando a paz genuína e duradoura uma miragem. Já se tentou de tudo para parar essa marcha da insensatez — menos a democracia.

As tiranias são as maiores ameaças à paz. Elas esmagam todas as tentativas de coexistência pacífica. O estudioso palestino Edward Said criou, com a ajuda do maestro judeu Daniel Barenboim, a Orquestra Divan, composta por jovens músicos palestinos e israelenses unidos pela música. Demonizada pelo Hamas, grupo militar que governa a Faixa de Gaza, e condenada pelo BDS, movimento internacional que preconiza o boicote econômico, acadêmico, cultural e político de Israel, a Orquestra Divan sobrevive apenas pelas doações de voluntários em todo o mundo.

Carlos Alberto Sardenberg - Aposta para salvar vidas

- O Globo

Os governos que compraram vacinas no escuro, quando ainda estavam sendo desenvolvidas pelas farmacêuticas, certamente correram um risco — o risco de perder dinheiro. Era uma aposta boa. Os laboratórios já tinham demonstrado competência em outros medicamentos. Mas continuava sendo uma aposta. Tanto que, hoje, é consenso nos meios científicos que a produção de vacinas tão eficientes em tempo tão curto só se compara à formidável operação que levou o homem à Lua.

O governo brasileiro, entretanto, não quis correr o risco. Achou que estava sendo mal tratado, especialmente pela Pfizer. Lá pelas tantas, o general Pazuello disse que negociou com a farmacêutica com o propósito de defender a soberania nacional. E que “não somos caloteiros”.

Não deu mais detalhes, nem os senadores perguntaram, mas só podia ser uma referência à exigência de pagamento adiantado.

Ora, os mais de 100 governos que toparam a aposta entenderam melhor: o pagamento adiantado era uma forma de financiar os laboratórios e, pois, de apressar o processo de produção das vacinas.

Oscar Vilhena Vieira* - Ativismo ou responsabilidade judicial?

- Folha de S. Paulo

Ao sustentar que Judiciário não pode se omitir diante da resistência do poder público, Fachin toma decisão inovadora

Tornou-se senso comum no debate político brasileiro de acusar o Judiciário de ativista. Não gosto do termo. Prefiro distinguir as decisões judiciais em boas ou más, em função de sua maior ou menor aderência às regras do direito na solução de problemas concretos. Nesse sentido, a postura mais ou menos “responsiva” do Judiciário deve ser uma consequência da complexidade dos problemas que é convocado a resolver e da natureza dos direitos que cumpre assegurar.

Na chamada “ADPF das favelas”, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a julgar a grave omissão do estado do Rio de Janeiro em restringir o emprego abusivo da força letal pelas polícias contra as populações, sobretudo negras, que vivem em suas comunidades mais pobres, descumprindo inclusive decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A decisão cautelar do Supremo, em agosto de 2020, foi restringir a realização de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro, durante a pandemia, que deveriam ocorrer apenas em situações excepcionais e dentro determinados limites. Como foi destacado pelo ministro Gilmar Mendes, o “tema da letalidade policial é extremamente complexo”, evidenciando a questão da “desigualdade” e da “seletividade” criminal. A consequência imediata da decisão foi não apenas a redução da letalidade policial, mas também dos índices de criminalidade, inclusive homicídios, naquelas comunidades.

Hélio Schwartsman - Turismo vacinal

- Folha de S. Paulo

Seria ético impedir um milionário de ir ao exterior para ter acesso ao remédio?

Façamos um experimento mental. Um laboratório multinacional desenvolveu um novo medicamento que cura um tipo comum de câncer até então letal. O problema é que a farmacêutica cobra US$ 10 milhões pelo tratamento.

O Brasil já quebrou a patente da nova droga. Mas, como não podemos sequestrar e torturar os cientistas estrangeiros para que nos ensinem a produzi-la, ainda levará um tempo até que ela esteja à disposição dos usuários do SUS e de planos de saúde --um tempo que o paciente de câncer não tem.

Seria ético impedir um milionário brasileiro de viajar para fora do país para ter acesso ao remédio? E que tal exigir que ele deposite na conta do SUS o valor de um tratamento para deixá-lo sair do Brasil?

Demétrio Magnoli – Hamas, um Estado de mentira

- Folha de S. Paulo

Estratégia militar oblitera natureza de conflito enraizado na negação do direito nacional palestino

O emblema do Hamas retrata o Domo da Rocha, no monte do Templo, em Jerusalém, e os contornos do território de Israel, Cisjordânia e Faixa de Gaza como um Estado palestino unificado. A organização rejeita o conceito da paz em dois Estados. Sua ação assegura a existência de um Estado único na Terra Santa —mas do Estado de Israel.

O Hamas, acrônimo de Movimento de Resistência Islâmica, é uma ramificação regional da Irmandade Muçulmana, organização fundamentalista sunita de raízes egípcias e aspirações transnacionais. Foi fundado em 1988, durante a primeira intifada, uma onda de levantes civis palestinos contra as forças ocupantes. Já naqueles anos definiu uma estratégia de militarização do movimento nacional palestino, engajando-se em atentados suicidas.

As curiosas alianças firmadas com as forças xiitas do Hizbullah libanês e com o Irã propiciaram a evolução para as saraivadas de foguetes contra cidades israelenses. “Os palestinos emergiram como uma nação equipada com mísseis”, celebrou Hossein Salami, chefe da Guarda Revolucionária iraniana, enquanto civis palestinos sofriam os bombardeios israelenses.

Marcus Pestana* - 1984, distopia premonitória

Raramente releio livros. Ocorreu com alguns clássicos. Mas olho para os livros enfileirados nas livrarias e vejo que ainda gostaria de ler muita coisa na vida. E tendo consciência da finitude de meu tempo pessoal e da infinitude da literatura universal, procuro ler sempre coisas novas. Vez ou outra, consulto livros de economia, ciência política, sociologia ou história para a elaboração de um artigo, texto ou palestra.  

O boom de lançamentos e vendas de “1984” e “Revolução dos Bichos” de George Orwell, no entanto, me chamou a atenção e despertou minha curiosidade. Como explicar que os dois livros estejam na lista dos dez mais vendidos nos últimos meses, já que “1984” foi publicado em junho de 1949, refletindo o ambiente do pós-guerra, e o autor tenha morrido há 71 anos?

“1984” é um brado contra o totalitarismo. Li quando tinha 18 anos – 42 anos já se vão – e o Brasil vivia a fase terminal da ditadura militar e a ascensão do movimento pela redemocratização, no qual já militava. Já era um bestseller na época. E agora volta a ser um campeão de vendas.

George Orwell é considerado um dos maiores escritores do Século XX e “1984” sua obra-prima. A qualidade do texto é impressionante e como assinalou o New York Review of Books “... 1984 é uma leitura obrigatória absorvente e indispensável para a compreensão da história moderna”.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Variante indiana dispara alerta para falta de testes

O Globo

A dúvida não era se a variante indiana do Sars-CoV-2, considerada “preocupação global” pela Organização Mundial da Saúde (OMS), chegaria ao Brasil, mas quando. Dúvida não há mais. Na quinta-feira, o governo do Maranhão confirmou os primeiros casos de Covid-19 provocados pela nova cepa que catapultou a Índia ao indesejável posto de epicentro da pandemia, com o recorde de 4.429 mortes em 24 horas na quarta-feira.

A nova variante foi identificada em tripulantes do navio Mv Shandong Da Zhi, com bandeira de Hong Kong, que chegou a São Luís vindo da África do Sul em 7 de maio. Quinze tripulantes testaram positivo para a Covid-19. Nos seis testes genômicos que puderam ser feitos, todos deram positivo para a cepa B.1.617.2, linhagem da variante indiana. A embarcação, que transporta 24 passageiros, está isolada em alto-mar, sem permissão para atracar.

Tudo sob controle? Claro que não. Pelo menos três pacientes com sintomas de Covid-19 saíram da embarcação para ser atendidos em terra. Tiveram contato com cerca de cem pessoas, em tese rastreadas para testagem e isolamento. Autoridades informaram que não foi constatada transmissão local da variante, mas o flagrante fracasso brasileiro para erguer barreiras sanitárias na pandemia não autoriza despreocupação. Não se sabe se há outros casos da variante indiana circulando silenciosamente pelo país. O governo levou dez dias para cumprir orientação da Anvisa para proibir voos e passageiros vindos da Índia.

A situação se torna mais preocupante porque o Brasil faz pouquíssimos sequenciamentos de genoma, que permitem identificar as mutações sofridas pelo Sars-CoV-2 e monitorar as variantes que circulam. Sem esses testes, o combate à pandemia é conduzido às cegas. Não custa lembrar que o alerta para a variante de Manaus, que levou a capital amazonense a uma tragédia, foi feito por autoridades japonesas. Um vexame. Até o fim do ano passado, o Brasil sequenciara 1.768 genomas, ou 1% dos 134.859 do Reino Unido.