quinta-feira, 3 de junho de 2021

Merval Pereira - Algo no ar

- O Globo

 “Há algo no ar além dos aviões de carreira”

(Barão de Itararé)

No dia 2 de julho de 2012, dois caças supersônicos Mirage F-2000 da Força Aérea Brasileira sobrevoaram a Praça dos Três Poderes tão baixo que estilhaçaram todos os vidros do prédio do Supremo Tribunal Federal (STF). O fato se repetiria, não em forma de acidente, caso o desejo do presidente Bolsonaro se realizasse.

Irritado com uma decisão do Supremo, o presidente revelou a pessoas próximas que gostaria de dar um susto nos ministros, fazendo com que os novos caças Gripen dessem um voo rasante sobre o prédio. O mais próximo disso aconteceu no dia 21 de outubro do ano passado, quando os novos F-39E Gripen foram apresentados em voo sobre a Esplanada dos Ministérios, sendo ouvidos na sala em que o hoje ministro do STF Nunes Marques estava sendo sabatinado pelo Senado.

O desejo do presidente não foi atendido, em mais um episódio do que está sendo conhecido nos meios militares como bullying de Bolsonaro, que quer impor suas vontades às Forças Armadas. Os generais do Alto-Comando do Exército, reunidos ontem para debater a situação da indisciplina do general de divisão da ativa Eduardo Pazuello, decidiram não anunciar a decisão no momento.

Aproveitarão o feriado para amadurecer a tendência de puni-lo, em clima de indignação com a atitude do presidente de proteger seu ex-ministro da Saúde, em claro confronto com a instituição a que pertence. Embora o vice-presidente Hamilton Mourão tenha falado que a nomeação de Pazuello como assessor diretamente ligado ao presidente na secretaria de Assuntos Estratégicos não interferirá na sua punição, que ele defende, ela é um recado do presidente ao Exército.

Evidente que um general da ativa investigado por indisciplina não poderia ser nomeado para nenhum cargo, muito menos um diretamente ligado ao presidente da República, a menos que ele queira protegê-lo e impor sua condição de comandante em chefe das Forças Armadas para pressionar o comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira.

Bolsonaro não tem limites e não respeita nada nem ninguém. Ou você o aceita como é, ou será confrontado sempre, não apenas o STF, o Congresso, mas até as instituições militares a que ele é ligado, sempre marcado por indisciplina e insubordinações. A visão dele da Presidência da República é totalitária, acha que pode mandar em todo mundo. Caso Pazuello não seja punido, podem começar a surgir manifestações em escalões inferiores das Forças Armadas, que sempre foram proibidas.

Míriam Leitão - Fatos que mudam o cenário político

- O Globo

Numa pequena amostra da intensidade do tempo presente, em apenas duas semanas um general da ativa foi para um ato político e ficou na estranha situação de ser premiado pelo presidente e ameaçado de punição pelo Exército. Uma grande manifestação contra o governo ocupou as ruas de mais de 200 cidades. O PIB surpreendeu os economistas, o dólar caiu e uma crise hídrica surgiu como uma nova sombra sobre o país. A CPI avançou, mostrando que a mentira é usada como método pelo governo. O ministro do Meio Ambiente e o então presidente do Ibama foram alvos de uma operação que investiga a exportação ilegal de madeira.

A lista poderia crescer, porque os acontecimentos não deram trégua. Nas duas semanas em que fiquei longe deste espaço houve fatos que mudaram o cenário político. O mais importante deles foi a manifestação que tomou as ruas do país no sábado, 29. Quem saiu para protestar contra o governo Bolsonaro teve que vencer o conflito interno entre suas convicções sobre as medidas de proteção e a necessária reação a um presidente que tem provocado mortes pelas suas decisões. Bolsonaro, no domingo anterior, havia feito um desfile de moto, com seus apoiadores, pelas ruas do Rio, exibicionista e intimidatório, à moda Benito Mussolini. Era como se fosse o único capaz de mobilizar. O convincente ato 29M deixou marcado que a força contrária existe e é significativa.

O presidente Bolsonaro tem feito atos de campanha eleitoral, fora de hora, usando recursos públicos em seus deslocamentos e segurança. Leva ministros, como levou o ministro da Defesa a Manaus. O mais ostensivo ocorreu no Rio e instalou no palanque o general Eduardo Pazuello, um oficial da ativa. Pazuello mentiu na CPI, Pazuello mentiu para o Exército. É óbvio que aquele ato no qual ele discursou era político e, portanto, proibido pelo estatuto das Forças Armadas. Bolsonaro fez de propósito. Ele está minando as instituições ou querendo mostrar que as controla. Depois de trocar todos os comandantes das Forças, ele dá um xeque-mate no novo comando ao instalar Pazuello no próprio Palácio. Aliás, um general da ativa vai ficar sob a chefia de um almirante da ativa, Flávio Rocha, da Secretaria de Assuntos Estratégicos. As Forças Armadas precisam escolher de que lado estão. A ambiguidade não é mais tolerável.

Malu Gaspar - Vem aí o Bolsa Reeleição?

- O Globo

Não é preciso ser íntimo de Jair Bolsonaro para saber que ele só pensa na reeleição. “Você passou 30 anos votando em que tipo de gente? Quem não tá contente comigo tem Lula em 2022”, respondeu irritado, outro dia, a uma apoiadora que perguntou por que ele deixava “o povo sofrer”. Dias antes, já havia declarado: “O bandido foi posto em liberdade, foi tornado elegível, no meu entender, para ser presidente. Na fraude. Ele só ganha na fraude no ano que vem”.

O presidente gosta de dizer que não se importa com pesquisas nem entende de economia. Mas compreende muito bem onde o calo aperta, na hora do voto. Já disputou nove eleições e ganhou todas. E percebeu que, se quiser sair vencedor das urnas em 2022, precisará colocar a mão no bolso, ou melhor, no cofre.

Os resultados da última pesquisa Datafolha, que detectou vantagem de Lula contra Bolsonaro — num eventual segundo turno, o petista teria 41% dos votos e o presidente, 23% —, trouxeram dados enfáticos. Se a eleição fosse hoje, Lula teria 56% dos votos no Nordeste, 51% dos eleitores com ensino fundamental e 47% dos que têm renda familiar de até dois salários mínimos.

Estamos falando de um universo de 50 milhões de brasileiros, gente que sofreu seriamente o impacto da pandemia e foi socorrida pelo auxílio emergencial, que, pela regra atual, deverá pagar a última parcela em agosto. Apesar dos dados animadores de crescimento do PIB, o desemprego ainda é de 14,7% e atinge 14,8 milhões de pessoas. Outros 6 milhões são desalentados, que perderam os empregos, mas ainda nem sequer começaram a procurar nova ocupação.

Cora Rónai - A cloroquina está longe de ter sido o pior dos pecados do governo durante a pandemia

- O Globo

Foi uma aposta equivocada da meia dúzia de curiosos. Não entendo a obsessão dos senadores da CPI da Covid com ela. Sua função seria, se bem entendi, avaliar ações e omissões

Não entendo a obsessão dos senadores da CPI da Covid com a cloroquina. A cloroquina está longe de ter sido o pior dos pecados do governo durante a pandemia. Foi uma aposta equivocada da meia dúzia de curiosos que constituíram o gabinete de crise do Idiota Supremo, mas, a rigor, não é a principal culpada pelo rumo sinistro que a pandemia tomou entre nós.

A CPI não foi instituída para determinar se a cloroquina funciona ou não funciona contra a Covid. Isso já foi estabelecido e, a essa altura, deveria ser página virada. A função da CPI seria, se bem entendi, avaliar ações e omissões do governo. A obsessão dos senadores pela cloroquina a transformou, porém, em palanque para pessoas que disfarçam o charlatanismo por trás de diplomas de medicina.

Não é à toa que que o mundo bolsonaro comemora os depoimentos de Mayra Pinheiro e Nise Yamaguchi como grandes vitórias.

É inacreditável que, em pleno ano de 2021, uma reles fórmula científica se transforme em símbolo ideológico. Nós rimos dos nossos antepassados que acreditavam no benefício das sangrias e tomavam ópio para a tosse, mas como sociedade evoluímos muito pouco de lá para cá.

Escrevi que a cloroquina está longe de ter sido o pior dos pecados do governo não porque o gasto de dinheiro público para a sua fabricação às toneladas seja irrelevante, ou porque não seja inadmissível ver o chefe da nação insistindo em fazer propaganda de remédio ineficaz, ou ainda porque a ideia de um “tratamento precoce” não possa levar a população a uma atitude displicente; mas porque a lista de ações e de omissões do presidente e de seus ministros é maior e mais grave, e é nela que a CPI deveria se concentrar.

William Waack - A insubordinação de Bolsonaro

- O Estado de S. Paulo

Ao incentivar a anarquia no Exército, arrisca a própria autoridade

Durou quase meio século a trajetória do Exército entre eliminar a ameaça de anarquia dentro da instituição e o retorno à ameaça de anarquia. Nos dois episódios – quando a anarquia foi abortada e quando ela foi incentivada – a figura central foi o presidente da República.

No primeiro episódio o mandatário era o general Ernesto Geisel – alguém que, de fato, sabia o que era a natureza do poder. Destituiu sumariamente em 1977 seu ministro do Exército por entender que aquele oficial participava de um movimento de insubordinação, que arrasava qualquer princípio de autoridade, começando pela do presidente.

No segundo episódio o mandatário é o ex-capitão Jair Bolsonaro – alguém que, de fato, nunca soube o que é poder. Incentivou a insubordinação de um general, atacando um pilar fundamental de qualquer Exército, sem entender que está colocando em jogo a própria autoridade. Aliás, exercida de forma incoerente, contraproducente e que está diminuindo depressa.

Eugênio Bucci* - O dilema está nas ruas (e nos jornais)

- O Estado de S. Paulo

A oposição ao governo é plural, integrada por pessoas e correntes múltiplas

Em editorial publicado anteontem, o Estado deixou patente a avaliação positiva que faz das passeatas contra o presidente da República, que tomaram as ruas de diversas cidades no sábado passado. O texto começa por afirmar que “foram muito significativas as manifestações”. Na avaliação deste diário, “a realização, em si mesma, do protesto” repõe o equilíbrio de forças: “O embate entre o bolsonarismo e o antibolsonarismo, que antes estava restrito ao universo das redes sociais, a partir de agora poderá ser travado ao ar livre, com ou sem vírus.”. O argumento prossegue atestando que, “para muita gente, o risco da continuidade do governo de Bolsonaro é maior do que o perigo representado pelo coronavírus, razão pela qual valeria a pena arriscar-se em manifestações de rua se isso causar problemas para o presidente”.

O editorial nos chega em boa hora, quando ainda pairam dúvidas sobre a posição das principais redações do País sobre as manifestações. Há quem tente rotulá-las como um movimento de esquerda. Outros resmungam que tudo não passa de uma grita radical, extremista, em defesa de corruptos. O Estado discorda dessas visões redutoras: “Seria um erro entender que o antibolsonarismo seja uma exclusividade da esquerda. (...) É lícito supor que, se não fossem as reticências sanitárias motivadas pela pandemia, muito mais cidadãos, de diversos credos políticos, poderiam se animar a participar de manifestações contra o presidente”.

Everardo Maciel* - O paraíso perdido

- O Estado de S. Paulo

Tomo emprestado o título da celebrada obra do poeta inglês John Milton para tratar da prosaica, mas não irrelevante, erosão das bases tributárias, a principal causa da crescente desigualdade entre países e pessoas.

Essa patologia tributária consiste no dissimulado deslocamento de lucros de grandes multinacionais e fundos de investimentos para países e dependências indulgentemente denominados paraísos fiscais, onde se recolhe pouco ou nenhum imposto e tão somente “alugam” suas jurisdições mediante pagamento de módicas taxas. 

Há uma vasta coleção de impactantes estatísticas que revelam a desproporcional dimensão dessa patologia. Destaco duas delas: Ugland House, modesto edifício de 5 pisos nas Ilhas Cayman, abriga as improváveis sedes de 26 mil empresas, o que foi considerado pelo então presidente Obama como o maior escândalo fiscal contemporâneo; estudo do FMI, em 2019, mostrava que os investimentos estrangeiros “diretos” no minúsculo Grão-Ducado de Luxemburgo alcançavam um montante de US$ 4 trilhões, o que corresponde a inacreditáveis 10% do total global.

Ricardo Noblat – Cai o ritmo da vacinação contra a Covid no Brasil

- Blog do Noblat / Metrópoles

Enquanto isso sobe a média móvel de mortes diárias e autoridades médicas alertam para a possível chegada da terceira onda da doença

No dia em que o presidente Jair Bolsonaro ocupou uma cadeia nacional de rádio e de televisão prometendo vacinas contra a Covid-19 para todos ainda este ano, novos dados nada estranhos ao Ministério da Saúde revelam que caiu o ritmo da vacinação.

A média de maio último foi de 662 mil doses diárias de vacinas aplicadas. Em abril, havia sido de 821 mil. Marcelo Queiroga, ministro da Saúde, prometeu que até junho um milhão de brasileiros seriam vacinados por dia.

Há poucas opções de vacinas – por ora, apenas a Coronavac e a AstraZeneca. Falta matéria prima para produzi-las na velocidade necessária. Falta campanha para aumentar o comparecimento das pessoas aos postos de vacinação.

A fala de Bolsonaro foi respondida por um panelaço em todas as regiões do país. Um ensaio do discurso com o qual ele pretende se reeleger ano que vem, a fala passou por vacina, críticas ao isolamento social e recuperação da economia.

Maria Hermínia Tavares* - Risco claro e presente

- Folha de S. Paulo

Militares estão mais presentes na vida nacional, indo além de atividades de defesa das fronteiras

Quando instituiu o Ministério da Defesa, em 1999, e entregou o seu comando a um civil, o presidente Fernando Henrique deu um passo crucial para a consolidação da democracia no país, aproximando-a dos melhores padrões internacionais. Ao cumprir o que estabelecia a Carta de 1988 —e não sem resistências—, assegurou pela primeira vez na história da República que nenhum militar com assento no escalão superior do governo controlasse a política de defesa.

A criação da pasta —e a decisão do presidente de confiá-la a um civil— correspondeu ao anseio das forças democráticas de impedir que a política tornasse a invadir os quartéis, dividisse seus comandantes e, não raro, subvertesse a sua estrutura hierárquica. Tratava-se de blindar a um só tempo a democracia e a integridade das três Armas.

Bruno Boghossian - Nem tudo tem dois lados

- Folha de S. Paulo

Comissão deve deixar claro que ciência e medicina não são questões de opinião

Senadores governistas ficaram furiosos com o cancelamento de um par de depoimentos na CPI da Covid. Eles queriam receber dois médicos que defendem o uso da cloroquina contra a doença. Na mesma sessão, seriam ouvidos profissionais que apontam a ineficácia comprovada do medicamento. O show de falso equilíbrio foi desmarcado.

A CPI dá palanque para médicos, agentes públicos e parlamentares que tentam passar um verniz científico na negligência de Jair Bolsonaro. O presidente transformou em política oficial um remédio que não funciona, mas a tropa de choque do governo insiste em tratar esse delírio como uma questão de opinião.

Mariliz Pereira Jorge - Terraplanistas da medicina

- Folha de S. Paulo

Médicos usam a tragédia da Covid para transformar humanos em cobaias

A cloroquina teve sua ineficiência comprovada. Não funciona para o tratamento de Covid e pode ter feitos colaterais. Uma comissão do SUS não recomenda o seu uso. Fabricantes já se posicionaram contra a sua prescrição. A ivermectina vai no mesmo caminho. O próprio laboratório, que teria todo interesse em encher as burras de dinheiro, declarou que não há eficácia.

Mas, como temos visto nos depoimentos na CPI da Covid, o "kit charlatão" foi distribuído largamente pelo governo, tem sido receitado por médicos e continua sendo enaltecido por "especialistas", como Nise Yamaguchi e Mayra Pinheiro.

"Estamos discutindo de que borda da Terra plana vamos voar", disse em depoimento à comissão a infectologista Luana Araújo, anunciada como secretária de Enfrentamento à Covid e desanunciada dez dias depois, certamente por não se enquadrar no perfil da maioria dos picaretas que assessoram o governo.

Conrado Hübner Mendes - Arquitetura da omissão

- Folha de S. Paulo

Procurador-geral da República se fez autoridade imune a controle, não a crítica

Augusto Aras resolveu intimidar professor que o chama de omisso. Até advogados e colegas relatam seu ethos colaboracionista há meses. Mas foi um trocadilho pouco inspirado que tirou o PGR do prumo. Não quis se defender em público nem explicar por que a avaliação geral de seu malvisto desempenho estaria equivocada. Partiu para o processo criminal e pediu cadeia. Do professor.

Sua petição faz duas coisas: metade expõe biografia de homem não ordinário, espécie de “sabe com quem está falando” versão bacharelesca; outra metade afirma que atribuir omissão a esse homem fora de série não é só crime contra sua honra, mas notícia falsa.

Aras assegura trabalhar mais que todos os PGRs anteriores. Sacou número mágico para provar sua vida laboriosa: teria instaurado 78 “apurações preliminares” contra o governo, cujos arquivamentos, até aqui, teriam sido todos “acolhidos pelo STF”.

Cuidado com o ilusionismo embutido na verborragia jurídica. Ele não diz o que faz, nem faz o que diz. Do mesmo jeito que pode haver autoritarismo disfarçado de democracia, violência pintada de liberdade, charlatanismo vendido como cura e genocídio como incompetência, pode haver omissão vestida de ação. De fato, não é por falta de trabalho que se lidera omissão institucional dessa magnitude.

Há muito suor e grito por trás do nada fazer contra a política bolsonarista do deixa morrer. O diabo mora nos truques processuais e retóricos. Nesse caso, nas tais “apurações preliminares”.

Costumam funcionar assim: notícias-crime apresentadas ao PGR podem ser arquivadas sumariamente ou virar apurações preliminares; como arquivamentos sumários vinham se avolumando, atores passaram a apresentar notícia-crime ao STF, que tem o dever de encaminhar ao PGR; essa via alternativa criou constrangimentos adicionais ao PGR.

Vinicius Torres Freire – Um país com falta de ar e de água

- Folha de S. Paulo

Sequelados de Covid, abandonados da educação, sem água: Brasil prepara próximas crises

Desde o final do ano passado e ainda mais agora, é possível ouvir de executivos de comércio digital ou de tecnologia em geral que está difícil de encontrar mão de obra qualificada para preencher as muitas vagas abertas. O setor se expandiu mais rápido na epidemia, como todo mundo já está cansado de saber; já sobrava algum emprego mesmo antes disso.

Um dos resultados mais evidentes, se não escandalosos, do andamento recente da economia é a recuperação sem emprego, um descompasso maior do que o habitual. A despiora do PIB é menos lenta do que a do mundo do trabalho, que na verdade apenas passou do terror para o horror. Em parte, sabemos o que se passa: epidemia de longa duração e muitos pobres sem qualificação. Isto é, as águas de um desastre recente se encontram com um rio de problemas antigos.

Vai faltar água. Há algum risco de faltar eletricidade. Os especialistas desses setores terrivelmente complicados e ainda avacalhados por décadas de má administração e degradação ambiental ainda não sabem muito bem o tamanho do problema. Fazem contas e tentam pensar qual estratégia combinada pode permitir a redução do consumo de água sem causar muito dano, de modo que não tenhamos risco maior de racionamento de eletricidade em 2022.

Isto posto, estamos discutindo riscos de escassez em uma economia deprimida, em que o nível do PIB era no início deste ano 6% menor do que na média de 2014. Ou seja, mesmo produzindo menos, estamos de novo à beira da asfixia elétrica. Dependemos dos deuses da chuva.

É muito primitivo. Não fazemos o essencial. Não faz muito tempo, subsidiamos com dinheiro público a formação de oligopólios e conglomerados em um país em que falta esgoto, escola infantil e creche. Neste momento mesmo, estamos cultivando os problemas crônicos dos próximos anos.

Bolsonaro é alvo de panelaços durante fala

Após manifestações de rua no sábado, protestos ocorrem em cidades como São Paulo e Rio

- Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Quatro dias após manifestações de rua pelo país, o presidente Jair Bolsonaro foi alvo de panelaços em diversas cidades do país, incluindo capitais como São Paulo e Rio, na noite desta quarta (2), durante pronunciamento em rede nacional de TV.

Na capital paulista, houve panelaço em bairros como Santa Cecília (região central), Perdizes (zona oeste), Tatuapé (zona leste), Santana (zona norte) e Saúde (zona sul).

Pelo Brasil, também foram registrados em capitais como Recife, Salvador, Porto Alegre e Belo Horizonte. Em Brasília, na Asa Norte, houve ainda gritos de "fora" e "genocida".

Esse tipo de protesto contra o presidente tem ocorrido desde março de 2020, quando foi declarada a pandemia do coronavírus, principalmente em ocasiões em que Bolsonaro faz declarações na TV.

A gestão da crise sanitária pelo governo e a demora na aquisição de vacinas contra a Covid-19 têm sido a principal motivação para os panelaços. Nesta quarta, o país atingiu a marca de 467 mil mortes pela doença.

Pesquisa do Datafolha, feita entre os dias 11 e 12 de maio, mostrou que Bolsonaro está com a sua mais baixa taxa de apoio no mandato —24%. Questionados sobre a corrida eleitoral de 2022, 54% dos entrevistados pelo instituto disseram que não votarão no atual presidente de jeito nenhum.

Bolsonaro tem sido pressionado também pela CPI da Covid, que apura falhas de sua administração na resposta à pandemia.

No último sábado (29), grupos de oposição, liderados por centrais sindicais e partidos de esquerda, decidiram ir às ruas, mesmo com o risco de disseminação da doença, para protestar contra o presidente. Houve manifestações em todas as capitais estaduais, e novos atos já estão sendo convocados para o dia 19 deste mês.

Nesta semana, o presidente voltou a provocar críticas da oposição ao articular a realização no Brasil da Copa América, que iria ser sediada pela Argentina e pela Colômbia nas próximas semanas.

Fala de Bolsonaro vem com atraso fatal, afirma CPI

Para senadores, discurso reflete pressão do colegiado que investiga condução da pandemia e de pressões das ruas

Julia Chaib / Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - O grupo majoritário da CPI da Covid, formado por sete senadores, afirmou em nota que "a inflexão" do presidente Jair Bolsonaro celebrando vacinas em pronunciamento em cadeia nacional nesta quarta-feira (2) ocorreu com "atraso fatal e doloroso".

"O Brasil esperava esse tom em 24 de março de 2020, quando inaugurou-se o negacionismo minimizando a doença, qualificando-a de 'gripezinha'", escreveram os senadores.

Nesta quarta, Bolsonaro, em rede de rádio e televisão, afirmou que, neste ano, todos os brasileiros que quiserem serão vacinados, destacou o avanço do PIB (Produto Interno Bruto) e voltou a criticar políticas de isolamento social.

"Neste ano, todos os brasileiros, que assim o desejarem, serão vacinados", disse o presidente. A declaração ocorre no momento em que o governo tenta contornar o desgaste causado causado pela CPI da Covid no Senado e por protestos de rua contra Bolsonaro.

"Um atraso de 432 dias e a morte de quase 470 mil brasileiros, desumano e indefensável. A fala deveria ser materializada na aceitação das vacinas do Butantan e da Pfizer no meio do ano passado, quando o governo deixou de comprar 130 milhões de doses, suficientes para metade da população brasileira", afirmaram os senadores após o pronunciamento.

O grupo afirmou que o presidente optou por desqualificar vacinas "sabotar a ciência, estimular aglomerações, conspirar contra o isolamento e prescrever medicamentos ineficazes para a Covid-19".

No pronunciamento, Bolsonaro, embora tenha iniciado o discurso lamentando as mortes pela Covid, voltou a reclamar das medidas de distanciamento social adotadas por governadores e prefeitos.

"O nosso governo não obrigou ninguém a ficar em casa, não fechou o comércio, não fechou igrejas ou escolas e não tirou o sustento de milhões de trabalhadores informais", afirmou o presidente.

Para os senadores, o pronunciamento de Bolsonaro é consequência do trabalho da CPI e da "pressão da sociedade que ocupou as ruas contra o obscurantismo".

"Embora sinalize com recuo no negacionismo, esse posicionamento vem tarde demais. A CPI volta a lamentar a perda de tantas vidas e dores que poderiam ter sido evitadas."

A nota é assinada pelos seguintes senadores: Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente; Renan Calheiros (MDB-AL), relator.

Assinam também, em apoio: Tasso Jereissati (PSDB-CE), Otto Alencar (PSD-BA), Humberto Costa (PT-PE) e Eduardo Braga (MDB-AM), membros titulares; e Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Rogério Carvalho (PT-SE), suplentes. A CPI tem 11 titulares.

LEIA A ÍNTEGRA DA NOTA DOS SENADORES DA CPI DA COVID:

NOTA PÚBLICA

A inflexão do Presidente da República celebrando vacinas contra a Covid-19 vem com um atraso fatal e doloroso. O Brasil esperava esse tom em 24 de março de 2020, quando inaugurou-se o negacionismo minimizando a doença, qualificando-a de ‘gripezinha’.

Um atraso de 432 dias e a morte de quase 470 mil brasileiros, desumano e indefensável. A fala deveria ser materializada na aceitação das vacinas do Butantan e da Pfizer no meio do ano passado, quando o governo deixou de comprar 130 milhões de doses, suficientes para metade da população brasileira. Optou-se por desqualificar vacinas, sabotar a ciência, estimular aglomerações, conspirar contra o isolamento e prescrever medicamentos ineficazes para a Covid-19.

A reação é consequência do trabalho desta CPI e da pressão da sociedade brasileira que ocupou as ruas contra o obscurantismo. Embora sinalize com recuo no negacionismo, esse reposicionamento vem tarde demais. A CPI volta a lamentar a perda de tantas vidas e dores que poderiam ter sido evitadas.

Omar Aziz, presidente
Randolfe Rodrigues, vice-presidente
Renan Calheiros, relator

Membros efetivos:

Tasso Jereissati

Otto Alencar

Humberto Costa

Eduardo Braga

Suplentes:

Alessandro Vieira

Rogério Carvalho

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Instituições têm de reagir a avanços do bolsonarismo

O Globo

Acertou o governador Paulo Câmara, de Pernambuco, ao exonerar o comandante da Polícia Militar (PM) no estado em virtude da repressão violenta aos protestos contra o presidente Jair Bolsonaro no último sábado. Recife foi a única entre 21 capitais onde policiais reagiram com brutalidade diante de uma manifestação pacífica, sem nenhuma justificativa para isso. Dois atingidos pelas balas de borracha disparadas pela PM pernambucana contra os manifestantes perderam a visão num dos olhos. Uma vereadora petista foi agredida com spray de pimenta.

Acertou também a Secretaria de Segurança Pública de Goiás ao afastar o policial que prendeu um professor por ter se negado a retirar do carro uma faixa que chamava Bolsonaro de “genocida”. Tem se multiplicado pelo país, com dedicação especial da Advocacia-Geral da União, o uso de dispositivos autoritários da Lei de Segurança Nacional para cercear o direito à livre manifestação e à expressão de opiniões políticas.

As decisões em Pernambuco e Goiás são o recado correto a transmitir às vozes que semeiam a insubordinação e a anarquia nos quartéis policiais e militares e àqueles que tentam restabelecer o clima de repressão e vigilância dos tempos da ditadura militar.

Bolsonaro já deu um sem-número de provas de que não terá nenhum tipo de pudor em insuflar policiais e milicianos contra seus inimigos políticos. Não há maior evidência disso do que o desdém com que tem tratado a hierarquia militar no caso do ainda general da ativa — e ex-ministro da Saúde responsável pelo desastre na gestão da pandemia — Eduardo Pazuello, que se recusa a ir para a reserva, apesar de ter flagrantemente violado o regulamento do Exército ao participar de manifestação política ao lado do presidente no Rio de Janeiro.

Agora, Bolsonaro pressiona o Alto-Comando do Exército a não punir Pazuello, com base no argumento estapafúrdio de que o passeio de motocicleta não tinha motivação política. Não punir um general em tal situação é um incentivo claro à insubordinação e à anarquia nos quartéis. Mas não ficou nisso. Ainda por cima, Bolsonaro cometeu a desfaçatez de trazer Pazuello de volta ao Planalto num cargo de assessoria. Não só ele não foi punido, como foi premiado.

Quem frequenta o universo paralelo das redes sociais e grupos de WhatsApp do bolsonarismo tem sido apresentado a uma enxurrada de informações fraudulentas sobre a pandemia, estimulando a revolta contra instituições como o Congresso, o Supremo e governos estaduais. Não é segredo o alcance que esse tipo de mensagem tem nos baixos escalões da PM e das Forças Armadas. Bolsonaro não esconde querer um Exército para chamar de seu, nem suas intenções claramente golpistas caso as urnas não lhe sejam favoráveis em 2022.