sexta-feira, 11 de junho de 2021

Hélio Schwartsman - Recessão democrática

- Folha de S. Paulo

Essa atual erosão veio para ficar ou é algo transitório?

Que o mundo vive uma recessão democrática não há muita dúvida. Nas contas da ONG Freedom House, desde 2006, mais países experimentam deterioração do que avanços em seus sistemas democráticos. E a pandemia não ajudou. Em 2020, 73 países perderam pontos contra apenas 28 que ganharam —um saldo de -45, o pior já registrado pela organização.

Essa erosão veio para ficar ou é algo transitório? Às vezes, olhar muito de perto para o indicador mais confunde que ilumina. Uma boa analogia são as bolsas de valores. Um gráfico com a variação diária dos índices é um sobe-e-desce estonteante. Já um que mostre sua evolução ano a ano ou a cada década talvez reflita melhor a valorização das empresas.

Com a democracia não é diferente. Se usarmos a lente das décadas e séculos em vez da dos anos, a expansão das democracias salta aos olhos. Nas contas de Steven Pinker, em 1971, apenas 31 países poderiam ser considerados democráticos; hoje, eles são mais de uma centena. Dois séculos atrás, apenas 1% da população mundial vivia sob democracias; hoje são 75%.

Bruno Boghossian - Maioria por rejeição

- Folha de S. Paulo

Caminho longo e pedregoso é a principal aposta de adversários de Bolsonaro

Binyamin Netanyahu alcançou uma façanha em Israel. O desgaste do primeiro-ministro fez com que partidos da esquerda à ultradireita fechassem um acordo para tirá-lo do poder. Na mesma aliança, estão israelenses que defendem a anexação da Cisjordânia e líderes árabes que fazem campanha por um Estado palestino independente.

A política é um território que estimula a formação de maiorias por rejeição. O parlamentarismo israelense mostra que, em certos casos, elites partidárias aceitam dividir o poder e deixar divergências centrais de lado com o objetivo de se livrar de um adversário comum. No presidencialismo brasileiro, o caminho é mais longo e pedregoso.

Grupos que trabalham para derrotar Jair Bolsonaro na próxima eleição procuram costurar acordos nas cúpulas partidárias, mas também precisam enviar sinais ao público. Como a corrida presidencial é decidida no voto, um candidato depende mais de movimentos de expansão do eleitorado do que de alianças entre os chefes de legenda.

Ruy Castro - Bolsonaro prepara o golpe

- Folha de S. Paulo

Para alguns, isso é óbvio. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, só os profetas enxergam o óbvio

Dos muitos achados de Nelson Rodrigues que entraram para a cultura nacional --"Complexo de vira-lata", "Subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos", "O brasileiro quando não é canalha de véspera é canalha no dia seguinte"--, nenhum é mais atual que "Só os profetas enxergam o óbvio". Nelson criou-o a partir da história de Otto Lara Resende, que, ao ir de carro para a Cidade pelo Aterro do Flamengo, passava todo dia pelo Pão de Açúcar e não o enxergava. Por que não? Porque o Pão de Açúcar era o óbvio.

De repente, Otto o enxergou. Freou no meio da pista, desceu atônito e começou a apontar a pedra para interlocutores imaginários: "Não é possível! De onde saiu???". Outros motoristas pararam para, talvez, socorrê-lo. E, de fato, Otto, que era asmático, foi atacado de falta de ar. "Calma, senhor!", diziam. Alguém o abanou com o Globo. Ele não se conformava: "Ontem não estava aqui!". E Nelson completou: "Foi o encontro do Otto com o óbvio. O óbvio ululante".

Reinaldo Azevedo - Há a mentira que salva e a que mata

- Folha de S. Paulo

As contadas por Bolsonaro ainda agridem instituições e ferem princípios civilizatórios

Todo político mente um pouco. Há nessa frase possível ranço de preconceito. Em algum grau, mentimos todos. Por simpatia, benevolência, etiqueta... Sem o tempero do engano e do autoengano, terminamos na guilhotina ou na fogueira, com os inquisidores, claro!, a rezar por nossa alma em nome do bem, do belo e do justo. Uma mentira aqui e outra ali são uma forma de ajuste social. Garantem o funcionamento do sistema.

Como tudo na vida, também as inverdades estão submetidas a uma escala. Há aquelas que são moralmente irrelevantes, a que o homem ou a mulher que fazem política recorrem para evitar os impasses. Um dos esforços, por exemplo, consiste em evidenciar um pensamento coerente, submetendo as próprias contradições a uma releitura interessada. Assim, a hipocrisia pode ser apanágio da eficácia do discurso.

Imaginem um colegiado de representantes do povo em que ninguém jamais mudasse de ideia ou jamais fizesse concessões. Max Weber já cuidou do assunto ao distinguir a "ética da responsabilidade" da "ética da convicção". Preocupo-me sempre com a formação de um público leitor. Sugiro pesquisa a quem não conhece o autor e a distinção que ele estabelece. Aqueles que o fizerem descobrirão mais um dos caminhos da tolerância e da convivência entre divergentes.

Se notaram, escrevi três parágrafos sobre o que ousaria chamar "hipocrisias de salvação". Elas nos livram de juízos peremptórios e da razia que o moralismo ensandecido costuma produzir, destruindo o meio ambiente político, buscando substituí-lo por suas verdades e virtudes consideradas puras, imanentes e eternas. Afinal, o Savonarola de plantão —mais um nome a pesquisar?— é o verdadeiro pervertido. É sempre ele a nos conduzir para a fogueira e para a terra dos mortos.

E estamos na terra dos mortos, imagem a que tenho recorrido com constância. Quase 500 mil, como sabem. Vacinação, educação e disciplina poderiam tê-las reduzido drasticamente. A ela chegamos por obra daquele moralismo que já não é o túmulo da moral, como escrevi, mas um cemitério superpovoado.
É erro fatal confundir a mentirinha como chave da eficácia com a indústria de manipulação que corrói as instituições e destrói as políticas públicas. Cumpre não igualar desigualdades.

Luiz Carlos Azedo - No rastro da cloroquina

- Correio Braziliense

A CPI da Covid quebrou os sigilos telefônico e telemático de autoridades da Saúde e aprovou as transferências de sigilo bancário e fiscal de empresas de publicidade

A palavra inglesa merchandise significa mercadoria (substantivo) ou também pode ser um verbo que indica o ato de fazer negócio, ou seja, comprar e vender alguma coisa. Como conceito econômico, merchandising é o conjunto de atividades e técnicas mercadológicas que dizem respeito à colocação de um produto no mercado em condições competitivas, adequadas e atraentes para o consumidor. Traduzido para o marketing, é a citação ou aparição de determinada marca, produto ou serviço, sem as características explícitas de anúncio publicitário, em programa de televisão ou de rádio, espetáculo teatral ou cinematográfico etc.

Um “case” de merchandising bem-sucedido é a cena de Pelé amarrando as chuteiras na Copa de 1970. Em 14 de junho, com a famosa camisa 10 do Brasil, o craque do futebol agachou-se no círculo central do gramado do Estádio Jalisco, em Guadalajara, no México, e amarrou pacientemente sua chuteira. A cena foi registrada pelas câmeras de tevê e retransmitida mundo afora. A Copa de 1970 foi a primeira a ser transmitida ao vivo. Em pleno regime militar, no auge do milagre econômico e da repressão à oposição, o Brasil parou para ver na telinha a nossa Seleção ser tricampeã de futebol.

Ao amarrar sua chuteira Puma King, Pelé ajudou a colocar a Puma em evidência, abrindo caminho para que a empresa se tornasse ainda mais conhecida e viesse a assinar contratos com jogadores como Johan Cruyff, Diego Maradona, entre outros, uma revolução no futebol profissional. A principal concorrente da Puma era a Adidas, criada pelos irmãos Adolf (Adi) e Rudolf Dassler, em Herzogenaurach, na Alemanha. Entretanto, por causa da guerra, houve um rompimento entre eles, e Adolf criou a Puma.

Ricardo Noblat - O tal do Queiroga não arredará tão cedo o pé do Ministério da Saúde

- Ricardo Noblat / Metrópole

Por que ele desperdiçaria a maior oportunidade que já teve na vida? Ensaboador de palavras, o ministro vai levando enquanto der

Nas franjas do governo, e em pelo menos um gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto, correu o temor de que o médico cardiologista pedisse demissão do cargo de ministro da Saúde depois que o presidente Jair Bolsonaro o chamou de “o tal Queiroga” e investiu contra o uso de máscara na pandemia.

Qual o quê! Queiroga tirou de letra o deboche de Bolsonaro e o anúncio feito por ele de que encomendou ao ministério um parecer para dispensar o uso de máscara pelos brasileiros que já contraíram o vírus ou foram vacinados. Queiroga orgulha-se de ter tornado obrigatório o uso de máscara dentro do ministério.

Serelepe, à noite, Queiroga foi visto em uma conversa amiga com jornalistas da Rede Record a dizer que o parecer seria elaborado, o que não significa o banimento da máscara. Queiroga destaca-se por sempre afirmar uma coisa e o seu oposto. Ser ministro foi a maior oportunidade da sua vida, e ele não quer desperdiçá-la.

A diferença entre ele e seu antecessor, o general da ativa Eduardo Pazuello, de triste memória, é que o general obedecia às ordens de Bolsonaro porque tinha juízo; Queiroga obedece porque não quer perder o emprego. Pazuello, a exemplo de Bolsonaro, maneja mal as palavras; Queiroga sabe ensaboá-las para criar espuma.

O disparo de Bolsonaro contra a máscara não vai dar em nada. Uma lei aprovada pelo Congresso obriga o uso de máscaras de proteção individual para circulação em espaços públicos e privados acessíveis ao público, em vias públicas e em transportes públicos. Mudanças na lei precisam passar pelo Congresso.

César Felício - De zero para 10%

- Valor Econômico

Mesmo sem fazer sentido, hipótese de golpe é avaliada

Diz o bom senso que o que não faz sentido é improvável. Em se tratando de Brasil, é bom delimitar com clareza a fronteira entre o improvável e o impossível. O cenário de uma ruptura institucional por golpe, por exemplo, por mais que não faça sentido no caso brasileiro, deixou de ser impossível. De acordo com um alto executivo de um dos maiores bancos brasileiros, a possibilidade de Bolsonaro não aceitar passar a faixa para um opositor era avaliada como zero até umas semanas atrás. Hoje é 10%.

Que Bolsonaro gostaria de ser um ditador não se duvida desde o seu surgimento na política, nos anos 80. Mas diversos sinais de alertas foram acesos em 2021.

Há a insistente pregação do presidente contra a legitimidade do processo eleitoral da forma como é realizado hoje no Brasil. Há a incentivo de defensores do governo para a baderna promovida por policiais militares em Pernambuco, Ceará, Paraná, Goiás, Bahia. Há a troca dos comandantes das Forças Armadas e do ministro da Defesa. Há a indisciplina premiada e consentida do general Eduardo Pazuello.

O alto executivo do mercado financeiro menciona apenas uma das duas modalidades de golpe, que é a ditadura aberta, a que implica em não reconhecer o resultado das urnas. A outra, que é a ditadura disfarçada, legitimada pelo voto, presente na Rússia, Turquia, El Salvador, Venezuela, Nicarágua, não foi avaliada.

Como Bolsonaro insiste tanto em dizer que se um adversário ganhar em 2022 é porque terá havido fraude, estende sua desconfiança ao processo eleitoral de outros países, caso que foi o dos Estados Unidos e é o do Peru, convém analisar a primeira hipótese de ruptura.

José de Souza Martins* - Um hoje sem amanhã

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A desobediência e a indisciplina, pelo visto, se transformaram em profissão

Somos um povo imprevidente que tem consciência de sua imprevidência e até gosta dela. Não surpreende, portanto, que tenhamos governos igualmente imprevidentes, que expressam aquilo que culturalmente somos.

Monteiro Lobato definiu o perfil do brasileiro imprevidente na figura do Jeca Tatu. Dá muito trabalho cuidar do amanhã que ainda não chegou. Não vale a pena, dizia o Jeca. Cansa antes de trabalhar. Compreende-se.

Esta sociedade tem suas raízes nas escravidões, a indígena e a africana. O escravo era coisa, e coisas não têm esperança. Quem não tem esperança não pode ser previdente. O amanhã não é dele, mas de quem nele manda. Ser previdente depende de ser pessoa e pessoa livre.

Nosso conformismo com o dia de hoje, nossa cumplicidade com quem manda ou quem pensa por nós, quem de nós usurpa o direito de pensar nosso destino, é herança da escravidão. Inscrita em nossa consciência social e política com o chicote do feitor que sobrevive na mentalidade de muita gente neste país.

Uma das historinhas populares mais contadas entre nós é a da cigarra cantora e a formiga trabalhadeira. Uma variante pós-moderna da história faz da cigarra uma heroína da noite, rica, cantora de boate, bem de vida, casaco de vison nos invernos frios da Europa.

Enquanto isso, a pobre formiga continuava penando à cata das folhas de que nascerá no formigueiro o fungo que vai alimentá-la durante o inverno.

Ao descobrir essa inversão dos valores, numa conversa com a formiga que a visitou, pediu-lhe que, quando fosse a Paris, procurasse o autor da fábula, um tal de La Fontaine, e o mandasse para aquele lugar. A moral da história era enganosa, “fake news”.

O sonho dos brasileiros já foi o de ser a formiga honrada e incansável. Hoje, parece muito mais o da cigarra da vida boa e alegre, sem preocupações com o amanhã, sem pagar por ele o preço do trabalho duro e constante de hoje. Passamos da sociedade do trabalho para a sociedade de consumo e ostentação. Aliás, não adianta chorar sobre o leite derramado. É a vida.

Fernando Abrucio* - As duas estratégias de Bolsonaro para continuar no poder

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Presidente busca reeleição mantendo clima populista-golpista para caso de revés nas urnas

Bolsonaro traçou dois planos para seu futuro político, ambos vinculados à permanência no poder. O primeiro é a aposta na reeleição, com toda uma estratégia para manter sua base mais fiel - próxima de 15% do eleitorado - e ampliar no mínimo mais dez pontos percentuais para garantir uma vaga no segundo turno. Mas o medo em relação à eleição - sobretudo depois da anulação do julgamento do ex-presidente Lula - e a visão autoritária que tem da política levaram o presidente a construir um plano B: é preciso criar um clima populista-golpista no país, seja para mobilizar permanentemente o bolsonarismo-raiz, seja para acuar os adversários, ou então, ainda, como última saída, para inviabilizar a vitória de outro candidato, mantendo-se no Palácio do Planalto a qualquer custo.

Pode parecer uma contradição apostar numa via democrática e, ao mesmo tempo, deixar a porta aberta para um possível golpe. Na verdade, o bolsonarismo se sustenta nesta ambiguidade, porque a pressão constante contra o sistema político tem permitido reduzir paulatinamente vários dos controles sobre o presidente e garantido, ademais, uma base fiel capaz de tudo em nome da liderança máxima, chamada de “mito”.

É claro que essa estratégia também contém seus riscos e gerou perdas políticas ao longo do caminho, mas ela é a que se casa mais com o “mindset” de Jair Bolsonaro: ele sempre concorreu a eleições, mas não gosta de ser controlado e quer ter o poder máximo; prefere as guerras culturais em vez da labuta árdua das políticas públicas; e gosta muito mais de fazer a política para a multidão que o obedece do que junto aos outros políticos eleitos. O presidente abraçou um modelo populista que coloca “o povo contra o sistema”. Desse modo, esse perfil ambíguo em relação à democracia é não só um valor pessoal. Trata-se de uma identidade política que lhe garante, estrategicamente, um lugar competitivo na disputa por eleitores.

Eliane Cantanhêde - Vida e morte

- O Estado de S. Paulo

Marcelo Queiroga tem a hombridade de Mandetta e Teich ou a subserviência de Pazuello?

O governo opera com gabinetes paralelos, acima dos ministérios e com capacidade de fazer a cabeça de Bolsonaro

Não foi por acaso que o auditor Alexandre Figueiredo Costa e Silva Marques plantou um estudo falso no site do Tribunal de Contas da União (TCU), sorrateiramente, num domingo à noite, e já na segunda-feira de manhã o presidente Jair Bolsonaro fazia uso político, e de certa forma imoral, para alimentar sua militância. Foi uma operação casada, deliberada, com inspiração no Planalto. 

É chocante, mas não novidade, já que o presidente é investigado pelo Supremo por ingerência política na Polícia Federal e já foi flagrado manipulando Coaf, Receita, PGR, AGU, Abin, Forças Armadas... E não foi em favor de projetos do governo, mas por interesses dele próprio, dos filhos e de aliados, como Centrão e igrejas evangélicas. 

Fernando Gabeira - Golpe em doses homeopáticas

- O Estado de S. Paulo

Os fundamentos de um governo autoritário já estão sendo estabelecidos no País

Quase todos os o recentes livros que tratam da ameaça à democracia nos últimos anos ressaltam que o golpe já não funciona como antigamente. Não mais pronunciamentos militares e velhos tanques desfilando pelas ruas empoeiradas. Os autores desses livros dizem que a democracia é golpeada por dentro e as instituições vão tombando progressivamente, de forma que quando as pessoas se dão conta o regime autoritário já se instalou no país.

Algo parecido está acontecendo no Brasil. Não me canso de denunciá-lo, correndo o risco de parecer exagerado.

A decisão do Exército de não punir o general Eduardo Pazuello, que subiu num palanque em manifestação pró-Bolsonaro, é um exemplo dramático desse processo. As Forças Armadas foram seduzidas pelo governo e inundaram os cargos públicos federais. Agora, o Exército rasga seu estatuto disciplinar para, segundo alguns, não criar uma crise maior com Bolsonaro.

A participação na pandemia, ocupando o Ministério da Saúde com um general que ignora a doença, o SUS e a própria medicina, já foi uma demonstração de insanidade, complementada pela produção em massa de comprimidos de hidroxicloroquina nos laboratórios do Exército. Abrir mão do estatuto disciplinar é simplesmente capitular. Se a Bolívia quisesse o Acre e a França o Amapá, iríamos conceder o território só para não criar uma crise maior? No domínio simbólico, abrir mão da disciplina para agradar a Bolsonaro é ceder terreno moral, tão grave como abrir mão de território físico para não criar crises maiores.

Vera Magalhães - Voto impresso é a nova cloroquina

- O Globo

Já foi o nióbio, já foi o grafeno. Já tivemos a pílula do câncer. Temos, ainda na crista da onda, a cloroquina e sua prima, a hidroxicloroquina. E temos a maior de todas as cloroquinas bolsonaristas, o voto impresso.

As obsessões de Jair Bolsonaro são sempre acompanhadas de teorias da conspiração e de dados inventados. No caso da pregação pelo voto impresso, a única Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de sua autoria aprovada pelo Congresso em 28 anos como deputado, Bolsonaro sempre bateu na tecla da fraude eleitoral que estaria associada às urnas eletrônicas, sem nunca comprová-la.

A PEC que determinava a impressão de um recibo junto ao voto foi aprovada em 2015 e deixou de ser aplicada na eleição de 2018, sob a alegação da Justiça Eleitoral de alto custo e prazo insuficiente para implementá-la. Depois da eleição de Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a emenda inconstitucional no ano passado. Mas o assunto, claro, não morreu.

A nova proposta, de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF), já foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça em 2019 e tem tudo para passar no plenário da Câmara, embora tudo indique que não conta com um fã-clube tão entusiasmado no Senado.

Em audiência pública na mesma CCJ nesta semana, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, fez uma longa apresentação esgrimindo argumentos técnicos para a inconveniência da proposta, que classificou como “mexer num time que está ganhando”.

Procurou desmontar alguns dos argumentos falsos mais usados pelos bolsonaristas, como dizer que a urna eletrônica seria passível de invasão por hackers e não seria auditável.

Bernardo Mello Franco – Crimes às claras

- O Globo

Bolsonaro desafia CPI e comete crimes ao vivo na TV

Jair Bolsonaro adotou uma estratégia ousada para confrontar as revelações da CPI da Covid. Dispensou o gabinete das trevas e passou a cometer crimes à luz do dia, com transmissão ao vivo na TV.

Ontem o presidente usou uma solenidade sobre turismo para sabotar medidas de proteção e humilhar o ministro da Saúde. “Acabei de conversar com um tal de Queiroga, não sei se vocês sabem quem é”, perguntou, com um sorriso irônico.

Em seguida, ele disse que mandou o ministro liberar do uso da máscara quem já se vacinou ou já se infectou com o coronavírus. A ordem vai na contramão das recomendações médicas e do discurso do “tal de Queiroga”.

Na terça, o ministro disse à CPI que sua primeira atitude foi exigir o uso da máscara na sede da pasta. “Hoje nós temos um Zé Gotinha de máscara e uma família inteira de Zé Gotinhas de máscara”, acrescentou.

A fala de Bolsonaro aumenta a desmoralização do ministro, que já rastejava para se manter no cargo. Mas o ataque ao uso da máscara não foi o único crime de ontem. O capitão também escancarou seu gabinete paralelo e insistiu na falsa tese da supernotificação de mortes por Covid-19.

Pedro Doria - O golpe de Face, Google e Twitter

- O Globo

Prezados Zuck, Sundar e Jack,

Aqui no Brasil, não costumamos escrever a CEOs como vocês, de Facebook, Google e Twitter, chamando pelo apelido ou prenome. Mas vou me permitir escrever assim, na informalidade americana que é tão típica do Vale do Silício. É para ser mais direto.

É preciso que vocês prestem atenção à política brasileira. Agora.

Em 6 de janeiro, uma turba invadiu o Capitólio, em Washington. A Polícia Legislativa não acreditava que seria possível. Dá para entender. Numa democracia longeva, que não interrompeu o ciclo de eleições regulares nem com uma guerra civil, como seria possível imaginar que cidadãos americanos invadissem o Parlamento para interromper a homologação de um pleito? Mas aconteceu. Pessoas foram radicalizadas a esse ponto em ambientes digitais e aí insufladas por um presidente que desprezava a ideia de uma sociedade livre.

No Brasil, a história nos obriga a imaginar essa possibilidade.

Minha geração de jornalistas aprendeu o ofício com colegas 15 ou 20 anos mais velhos que enfrentaram, na condição de repórteres e editores, a ditadura mais recente. Alguns desses amigos, que ainda trabalham nas redações, gente por quem temos afeto, foram exilados, presos e torturados pelo exercício das liberdades políticas essenciais — de pensar, se expressar, se manifestar, publicar e se reunir para debater.

Donald Trump segue persona non grata em várias das redes. A decisão de excluí-lo seguiu um princípio que qualquer democrata endossa: o paradoxo da tolerância, descrito pelo filósofo austríaco Karl Popper. No limite, uma sociedade aberta não pode abrir espaço para que intolerantes usem dessas liberdades para ameaçar o regime democrático.

A República brasileira nasceu com um golpe militar, em 1889. De lá para cá, houve golpes de Estado em 1891, 1930, 1937, 1945, 1955 e 1964. Só um deles, o de 1955, fracassou. Em rigorosamente todos esses episódios, a ruptura de regime começou no momento em que foi quebrada nas Forças Armadas a exigência da disciplina que proíbe militares de se envolver na política.

Flávia Oliveira - No luto há luta

- O Globo

Não quero ser a comentarista que chora e se desespera e brada contra a necropolítica de segurança nossa de cada dia. Os assassinatos de Kathlen Romeu, oitava grávida abatida a tiros no Grande Rio em cinco anos, e do bebê que ela nem teve a chance de descobrir se era Maya ou Zayon me alcançaram intimamente. Sou filha da mãe negra, como a jovem gestante cuja vida foi interrompida no quarto mês de gestação. Como Jaqueline Lopes, sou mãe da filha negra nascida em 1996. Como dona Sayonara de Oliveira, sou avó de uma criança negra. Cresci num conjunto habitacional do subúrbio, conheço o medo da violência cometida por criminosos e policiais. Experimentei a mobilidade social pela educação e festejei o diploma de minha cria, tal como os parentes da moça recém-formada em design de interiores, agora silenciada.

Das coincidências que atravessam a vida das famílias negras brasileiras, brotaram as lágrimas que não pude controlar em participação ao vivo no “Estúdio i” da GloboNews. Chorei porque dor e indignação não foram suportáveis a olhos secos. Desabei porque o Rio de Janeiro tornou-se estado de luto permanente. Sendo uma jornalista dedicada à cobertura de economia e temas sociais, por dever cidadão, mais que profissional, precisei me enfronhar nos indicadores de segurança pública. Se o Brasil é o país em que todo mundo é um pouco ministro da Fazenda e técnico de futebol, é hora de sermos também secretários de Segurança. A violação do direito à vida, o mais importante dentre todos, alcançou nível inaceitável, em particular entre a população negra e favelada. Tem pele preta ou parda a maioria das vítimas de letalidade violenta, mortes por intervenção de agentes do Estado, feminicídio. A sociedade que se emocionou com os protestos contra o assassinato do negro George Floyd, nos EUA, tem o dever de se indignar e exigir mudanças aqui, porque asfixiados também estamos nós.

Jorge Henrique Cartaxo* - Os revolucionários da vez

Gianroberto Casaleggio, Steve Bannon e Arthur Finkelstein. Estes nomes não são, isoladamente, os responsáveis diretos pela feição tenebrosa da era do insulto, do preconceito, do racismo, da estupidez como estilo, da mentira como argumento, da produção do medo e da disseminação do ódio como método que, neste início de século, vêm refazendo nossas feições, sentimentos e palavras nas brumas do espaço público contemporâneo. Mas são deles os arranjos, mais ousados e fundadores, na organização e produção deste mal que parece ter cravado sua estaca no coração do espírito do tempo.

Nascido em uma família judia de classe média baixa, em 1945, criado no Brooklyn’s Oriental, em Nova Iorque, estudando em escolas públicas, Arthur Finkelstein conquistou os diplomas em economia e ciências políticas na Universidade de Columbia, em 1967. Depois de uma rápida experiência como produtor de programas de rádio, ele montou sua empresa com especialidade em pesquisas, estratégia, mensagens, mídia, publicidade e aconselhamento sobre gerenciamento de campanhas políticas. Com esse perfil, passou 40 anos assessorando o Partido Republicano, com destaque para as campanhas e os governos de Nixon e Reagan. Assim, ele torna-se uma lenda no mundo conservador americano e o mais notável spin doctor (manipulador de notícias) da sua geração, refinando uma técnica que se tornaria eficaz na política americana e, posteriormente, decisiva nas eleições de George W. Bush e Donald Trump.

Em 1996, depois da morte violenta de YItzhak Rabin, o establishment de Israel preparava-se para eleger, como substituto do antigo líder, o Prêmio Nobel da Paz Shimon Peres. Respeitado mundialmente, moderado, acreditava-se que obteria uma vitória fácil nas urnas. Foi, nesse cenário, que Finkelstein desembarcou em Tel Aviv para fabricar a vitória do, até então, pouco conhecido Benjamin Netanyahu. O bruxo americano impôs uma inédita campanha difamatória no mundo político de Israel, colocando Peres como um traidor da pátria. Finkelstein convenceu os israelenses que Peres queria dividir Jerusalém, dando a metade da cidade sagrada aos palestinos. Netanyahu venceu e consolidou uma liderança, nesse padrão, só interrompida há poucos dias num famoso mar de lamas.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Valor Econômico

CPI e inquéritos desvelam ‘buracos negros’ do governo

A CPI e os inquéritos no STF reúnem elementos que podem motivar processos contra o presidente

O governo de Jair Bolsonaro é cheio de buracos negros, que vão sendo descobertos aos poucos. O presidente pratica uma forma diferente de loteamento do Estado. Sem deixar de preencher os cargos burocráticos bem remunerados, com militares de preferência, os indicados nem sempre, em alguns casos quase nunca, têm o poder de fazer aquilo para o qual foram contratados. O ministro da Saúde, por exemplo, se transformou com Eduardo Pazuello em um cargo quase decorativo, em meio a uma pandemia que já matou quase 500 mil brasileiros. Os nomeados para cargos de confiança do governo não exercem funções de confiança, que cabe a redes nem sempre identificáveis de influência.

O “paralelismo” do aparato bolsonarista, ao lado do aparelho de Estado, é uma tática manjada para tentar fugir ou se blindar das responsabilidades legais. A Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, por exemplo, revelou o que já era sabido, a existência de uma penca de palpiteiros, alguns com diploma de médicos, outros não, tendo acesso direto aos ouvidos do presidente e orientando-o na mais grave crise sanitária da história brasileira. O melhor que conseguiram fazer foi sugerir outros fins terapêuticos para a cloroquina, acentuando o fracasso trágico do negacionismo governista.

Muitos desses conselheiros informais foram à CPI para encobrir a responsabilidade do presidente e, se possível, a sua própria. O presidente da República pode ouvir quem quiser para tomar decisões, inclusive em questões de saúde, ainda que seja estranho que os ministros da área, como Luiz Mandetta e Nelson Teich, tenham sido os menos consultados e suas opiniões, as mais desrespeitadas. A CPI, ao alvejar um “gabinete paralelo” tem ao menos um objetivo pedagógico - desvendar as raízes do curandeirismo militante de Bolsonaro. Todos têm direito a expressar as sugestões mais malucas e o presidente pode aceitá-las - como pessoa física. O presidente é obrigado por lei a garantir o direito à vida e não o fez.

João Cabral de Nelo Neto - O Fim do Mundo

No fim de um mundo melancólico
os homens lêem jornais
Homens indiferentes a comer laranjas
que ardem como o sol

Me deram uma maçã para lembrar
a morte. Sei que cidades telegrafam
pedindo querosene. O véu que olhei voar
caiu no deserto.
https://sb.scorecardresearch.com/p?c1=8&c2=6035191&c3=193891&cj=1&rn=1623357947902


O poema final ninguém escreverá
desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim me preocupa
o sonho final.